A prática espiritual não está livre de armadilhas, e é muito fácil o praticante cair numa delas e pensar que está progredindo quando na verdade não está. É fácil o praticante se deixar enganar pela sua própria mente.
Até mesmo pessoas com vários anos de prática e em grupos bem orientados podem sofrer de alguns dos desvios expostos de seguida, e a tendência é se agravar naqueles que não têm um bom acompanhamento.
Para se evitar cair nestas armadilhas ou identificar quando se está numa e sair mais facilmente, é importante que a pessoa tenha seriedade na prática e, no caso dos budistas, siga escolas e professores autênticos de budismo.
1. Materialismo Espiritual
O termo foi cunhado pelo mestre budista Chögyam Trungpa nos anos 70. O materialismo espiritual são os inúmeros desvios que levam a uma distorção egocêntrica da espiritualidade. É a ilusão de que se está desenvolvendo espiritualmente quando na realidade se está fortalecendo o egocentrismo por meio de técnicas espirituais.
O praticante vai por exemplo acumulando livros, objetos, palestras, aulas, retiros e viagens espirituais, mas em vez de progredir espiritualmente, vai alimentado a sua vaidade, surge um senso de superioridade e torna-se num narcisista espiritual. Usa constantemente todo o tipo de linguajar associado à espiritualidade como “namastê”, “energia” entre tantos outros jargões, apenas para reforçar a sua “máscara espiritual”. Consome todo o tipo de moda espiritual, sem entender realmente o propósito e sem qualquer real benefício. A pessoa se diz espiritualizada, mas está tão ou mais iludida que qualquer outra pessoa.
Não se está a criticar o praticante por adquirir livros, fazer retiros, viajar, etc. Esse esforço tem a sua importância. Ao longo dos séculos os budistas tiveram mesmo de viajar milhares de quilómetros para receberam os ensinamentos budistas. Livros, retiros, viagens, etc, tudo isso são ferramentas e meios hábeis uteis para a prática, algumas muito importantes, outras menos importantes. Também é normal que existam mudanças no estilo de vida do praticante. O problema está quando a utilização dessas ferramentas e a adoção de certo estilo de vida está a servir para alimentar a vaidade e o egocentrismo.
Este problema é tão comum que um estudo da Universidade de Southampton e da Universidade de Mannheim, publicado recentemente no Psychological Science Journal, mostrou que a maioria dos praticantes de yoga e meditação estudados, tendem a ser mais egocêntricos. Os investigadores testaram 93 praticantes de yoga, tendo utilizado para isso alguns testes, como um Inventário de Personalidade Narcisista, o teste mais usado para medir egocentrismo e o narcisismo. Os resultados mostraram uma vaidade e egocentrismo muito maior naqueles que fizeram recentemente aulas de yoga em comparação aos que não tiveram qualquer tipo de aula. Um outro estudo avaliou 162 pessoas praticantes de meditação, tendo o resultado sido semelhante.
O materialismo espiritual pode-se manifestar de uma forma grosseira ou às vezes mais subtilmente. Uma grande parte dos praticantes passaram ou passarão por algum nível de materialismo espiritual.
Saiba mais sobre o este tópico no post:
Materialismo Espiritual, um perigo à espreita
2. Desvio Espiritual
Este termo foi cunhado pelo psicoterapeuta John Welwood nos anos 80. Desvio Espiritual e Materialismo Espiritual estão relacionados entre si, ambos são amplos e abarcam vários aspetos; mas neste caso é enfatizada a supressão de emoções e sentimentos, originando a possibilidade da ocorrência de problemas a nível da saúde mental.
O praticante desviado espiritualmente se engana a si próprio não reconhecendo as suas emoções negativas e o seu lado mais escuro. Contorna esse lado negro criando uma “personagem santificada” que não existe. Quando esse tipo de supressão se manifesta a longo prazo, poderá eventualmente dar origem a consequências psicológicas.
Cair neste tipo de desvio também é bastante comum, seja de uma forma mais grosseira ou mais subtil, uma grande parte dos praticantes passa ou passará por esta situação.
Saiba mais sobre este tópico no post:
Desvio Espiritual: a supressão de sentimentos e emoções e a falsa positividade
Algumas das seguintes armadilhas, na verdade também já estão contendias dentro do Materialismo Espiritual e Desvio Espiritual, mas são aqui expostas separadamente para ficarem mais destacadas.
3. Compaixão burra
A compaixão está entre os ensinamentos mais importantes do budismo, mas a compaixão e a sabedoria andam juntos. Ter compaixão não significa ser tolo e deixar que os outros “pisem” em nós. Além disso a compaixão também se pode manifestar de forma irada, como por exemplo dar um grito a uma criança para evitar que ela se magoe por algum motivo, esse não é um momento para falinhas mansas. E quando se está a ser vitima de algum tipo de agressão, para o bem do agredido e do próprio agressor, é necessário atitudes para resolver a situação.
A motivação por detrás do ato compassivo também pode não ser a mais correta. Se existe uma busca de reconhecimento ou se serve para engradecer o ego, não é uma motivação pura, é uma ato de vaidade e estamos perante o materialismo espiritual.
Saiba mais sobre este tópico no post:
Ter compaixão implica deixar que “pisem” em nós?
4. Não avaliar e seguir todo o tipo de coisa considerada “espiritual”
Hoje em dia proliferam todo o tipo de ideias espirituais, todo o tipo de aulas e cursos relacionados com espiritualidade e meditação. Muitas dessas ideias, aulas e cursos são credíveis, mas também existe muita coisa de fraca qualidade, que não trazem qualquer beneficio, que levam ao materialismo e desvio espiritual, que apenas serve para enriquecer alguns e enganar outros. E se existir uma fé cega a situação ainda se pode complica mais. É por isso importante avaliar e ter consciência do que se está a seguir.
Sobre a legitimidade de escolas budistas consulte o post:
Sinais que estamos perante uma legítima e boa escola budista ou uma má escola budista
5. Fé cega
No budismo a fé ou confiança no ensinamento, professor e instituição, é importante, mas essa fé deve surgir fruto de uma investigação e avaliação. O professor ou mestre deve estar qualificado para ensinar budismo, não deve deturbar os ensinamentos e deve seguir uma conduta ética adequada.
Quando o professor ou a professora budista não está a ter um comportamento adequado e quando existe uma fé cega, o aluno ou aluna pode ser vitima de vários tipos de abusos ou receber ensinamentos incorretos.
Saiba mais sobre este tópico nos posts:
Investigue a fundo, Cuidado com as seitas e cultos e Os 4 níveis de Fé (ou confiança)
6. Desapego equivocado
O praticante avançado pode conseguir ter uma maior imperturbabilidade mental, mas o desapego não significa que a pessoa seja apática, indiferente ao mundo, a pessoas, que não possa possuir nada, etc. Ideias como estas surgem fruto de um não entendimento dos ensinamentos sobre desapego e equanimidade, e podem levar ao desvio espiritual e a uma relação desajustada com o mundo material, como veremos no tópico seguinte. Também existe a situação da pessoa fabricar um desapego, fingir o desapego para reforçar a sua imagem espiritual, isso é materialismo espiritual.
Saiba mais sobre este tópico no post:
Desapego e Apego
7. Desenvolver uma relação negativa com o dinheiro e os bens materiais
O dinheiro em si não é bom nem mau, é apenas uma ferramenta de organização social. É legitimo que a pessoa queira seguir um caminho monástico e se libertar o mais possível das coisas mundanas, mas para o praticante leigo, também é legitimo a posse de riqueza. O praticante leigo que possui riqueza, pode mesmo trazer grandes benefícios para a sociedade e comunidade budista. A riqueza bem utilizada não é um problema, a pessoa não precisa de não ter nada para ser “espiritual.”
Saiba mais sobre este tópico no post:
Budismo e o Dinheiro
8. Entender erroneamente os ensinamentos e o contexto
O entendimento erróneo dos ensinamentos e do contexto em que foram proferidos, levam a que se cai em desvios espirituais, que não se evolua ou que se regrida, ou que se tenha condutas inapropriadas.
Vejamos mais um exemplo, e trago este exemplo porque um dos preceitos budistas é não mentir e hoje em dia se fala muito na frontalidade. Mas o que significa a frontalidade e a honestidade? Imagine que encontra um velho amigo que já não o via há muito tempo, ao encontrá-lo reparava como ele estava envelhecido, eram notórios os problemas de saúde. Sendo uma pessoa que evita mentir, frontal e honesta, diz ao velho amigo que notou como ele está velho, que já não se aguenta em pé, que parece uma chaga andante e que já deve estar com os pés para a cova. Tudo isso pode ser verdade, mas será que é apropriado o dizer? Muitas vezes a frontalidade é uma desculpa para se atacar o outro, neste exemplo não se entendeu corretamente o preceito de não mentir, faltou sabedoria e compaixão.
BÓNUS: Como se tornar ultra-espiritual | vídeo humorístico
Depois do exposto acima, se você quer se tornar ultra-espiritual, deixe-se inspirar pelo seguinte vídeo humorístico 🙂
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“Ouvir a voz da própria consciência” costuma dar certo para quem se predispõe a escutá-la. Muito barulho abafa os suas intuições e alvitres, sempre à disposição de quem mergulha no silencio de si mesmo em momentos de dúvida ou de dor, afim de ouv-i-la. Quem costuma seguir essa voz interior, harmoniosa e branda, dificilmente erra e raramente cai enquanto sempre APRENDE.
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Mas muitas vezes também nos enganamos a nós mesmos.
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