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O Samsara, a Roda da Vida e os 6 Reinos da Existência Cíclica

O Samsara é um dos conceitos mais importantes do budismo e descreve a perambulação de todos os seres pelos 6 reinos da existência (que também podem ser subdivididos em 31). O samsara faz parte da doutrina de todas as escolas budistas. A Roda da Vida é um diagrama que representa esta perambulação e faz parte principalmente das escolas budistas tibetanas. De seguida veremos o que alguns professores do Dharma têm a dizer sobre estes conceitos, assim como a sua importância.


Conteúdo:


O Samsara

Samsara significa “perambular” ou “dar voltas”. Este termo está relacionado com o ciclo de renascimentos e morte. O Prof. do Dharma Henrique Pires diz* que o termo descreve o problema central explicado pelo Buda: “o sofrimento repetido ao qual todos os seres estão sujeitos. Trata-se de uma condição regida por ignorância e apego, onde vida após vida continuamos a perpetuar os mesmos enganos e a dar voltas inúteis num processo altamente insatisfatório. Vida após vida, assim, as mesmas dores e frustrações seriam repetidamente experimentadas.” O samsara seria a antítese da liberdade. A ideia de “samsara” não descreve apenas o comportamento iludido no tempo da vida presente. Reflete também uma realidade profunda expressa por Buda: a de que todos os seres renascem e morrem, renascem e morrem, renascem e morrem… Repetida, contínua e indefinidamente. Por essa razão o termo é também traduzido como “Ciclo de Nascimento e Morte”. Esse processo se dá de modo compulsório, sem controle, até que conquistemos profunda sabedoria e nos libertemos dos apegos que nos tolhem. Quando tivermos êxito nessa tarefa, ensina o Buda, teremos conquistado a maior e mais valiosa liberdade possível – a paz do Nirvana.

“Samsara tem o sentido literal de ‘perambulação.’ Muitas pessoas pensam que esse é o nome Budista para o lugar em que vivemos no momento – o lugar que abandonamos quando vamos para nibbana. Mas nos textos Budistas mais antigos samsara é a resposta, não para a pergunta, “Onde nós estamos?” mas para a pergunta, “O que estamos fazendo?” Ao invés de um lugar, é um processo: a tendência de ficar criando mundos e depois se mudando para dentro deles. À medida que um mundo se desintegra, você cria um outro e lá se instala. Ao mesmo tempo, você dá de cara com outras pessoas que também estão criando os seus próprios mundos. (,,,) O Buda tentou encontrar o caminho para parar essa ‘samsar-ização’. E uma vez que ele o encontrou, ele encorajou outros a seguí-lo também.”
– Ajaan Thanissaro

A Prof. Francesca Fremantle diz* que o Samsara é a vida como a vivemos sob a influência da ignorância, o mundo subjetivo que cada um de nós cria para si mesmo. Este mundo contém bem e mal, alegria e dor, mas são relativos, não absolutos; eles só podem ser definidos em relação uns aos outros e estão continuamente se transformando nos seus opostos. Embora o samsara pareça ser todo-poderoso e onipresente, ele é criado pelo nosso próprio estado de espírito, como o mundo de um sonho, e pode ser dissolvido no nada como o despertar de um sonho. Quando alguém desperta para a realidade, mesmo que por um momento, o mundo não desaparece, mas é experimentado em sua verdadeira natureza: puro, brilhante, sagrado e indestrutível.

A chave para a realização do ensinamento do Buda é a compreensão da causalidade, porque é somente quando conhecemos a causa de algo é que podemos realmente acabar com ela e evitar que ela surja novamente. Na sua busca pela origem do sofrimento, o Buda descobriu que precisava voltar ao início, ao primeiro lampejo de autoconsciência individual. Também na sua prática espiritual, ele sempre foi mais e mais longe, nunca satisfeito com os estados de conhecimento, paz e bem-aventurança que alcançou sob a orientação dos seus professores. Ele sempre quis conhecer a causa deles e ver o que havia além. Desta forma, ele superou os seus professores e finalmente alcançou o seu grande despertar.

O Buda despertou para um estado de iluminação perfeita, que ele descreveu como o imortal, não-nascido e imutável. Se não fosse por isso, disse ele, não haveria como escapar do nascimento e da morte, da impermanência e do sofrimento. Existe de facto uma condição de paz, bem-aventurança, conhecimento e liberdade suprema, mas para alcançá-la, devemos primeiro entender o ciclo da existência condicionada em que estamos aprisionados. Samsara é como uma doença; o Buda, que era chamado de Grande Médico, oferece uma cura; mas o paciente deve reconhecer a doença, com as suas causas, os seus sintomas e os seus efeitos, antes do processo de cura poder começar.

“A maioria das pessoas se sente confortável o suficiente no samsara. Eles realmente não têm a aspiração genuína de ir além do samsara; eles só querem que o samsara seja um pouco melhor. É bastante interessante que “samsara” tenha se tornado o nome de um perfume. E é assim. Isso nos seduz a pensar que está tudo bem: o samsara não é tão ruim; cheira bem! A motivação subjacente para ir além do samsara é muito rara, mesmo para pessoas que vão aos centros de Dharma. Há muitas pessoas que aprendem a meditar e assim por diante, mas com o motivo subjacente de que esperam se sentir melhor. E se isso acaba fazendo com que eles se sintam pior, em vez de perceberem que isso pode ser um bom sinal, eles pensam que há algo errado com o Dharma. Estamos sempre procurando nos sentir confortáveis ​​na prisão.”
– Jetsunma Tenzin Palmo

Leitura Complementar (links externos):

A Roda da Vida

Extraído do antigo site Dharmanet (o site já não existe)

A Roda da Vida (sânsc. Bhavachakra), também conhecida com a Roda da Existência, Roda do Devir e do Vir-a-ser, foi criada pela extinta escola Sarvastivada, precursora do buddhismo Mahayana. Este diagrama geralmente é encontrado nas portas de entrada dos monastérios tibetanos. Suas ilustrações representam simbolicamente os doze elos da existência interdependente, os seis reinos da existência cíclica e os três venenos da mente. Segundo a tradição, a Roda da Vida foi desenhada pela primeira vez na época do Buddha Shakyamuni. Depois de pedir um conselho ao Buddha, o diagrama teria sido desenhado por ordem do rei Bimbisara de Magadha. Ele o enviou ao rei Udayana em retribuição a um manto de jóias preciosas que tinha recebido de presente. O rei Udayana teria atingido uma profunda realização espiritual após estudar este diagrama.

Mandalas | Budismo Tibetano

A assustadora figura que segura a roda é Yama, o demônio da morte da mitologia indiana. Aqui, sua terrível presença simboliza a impermanência; nenhum ser vivo pode escapar de suas garras. Entretanto, o Buddha está flutuando no céu e apontando para a lua cheia; isto representa que os seus ensinamentos apontam o caminho para a liberação.

A maioria das pessoas vive negando a morte; praticantes [buddhistas] vivem com a constante consciência de sua existência. A morte, para eles, é uma poderosa diretriz para encontrar o significado essencial da vida. Na prática Vajrayana tibetana, os símbolos da morte — copas de crânio, tambores de crânio, trombetas de fêmur, malas [rosários] de osso, dançarinos em indumentárias que simbolizam esqueletos — nos relembram nitidamente de sua proximidade.

A utilização de tais implementos durante os rituais não quer dizer que os praticantes Vajrayana sejam insensíveis à morte, ou que não se aflijam com a morte de familiares e amigos, porém o cheiro e a textura de ossos envelhecidos, por exemplo, evocam o pensamento: “Sim, eu também terminarei como ossos espalhados ou cinzas num cemitério. Possa eu usar bem este corpo e não desperdiçar o tempo que me resta”.

(Chagdud Khadro, Práticas Preliminares do Budismo Vajrayana)

Os 12 elos da existência condicionada

Na borda da roda, doze ilustrações representam os elos da existência condicionada:

  • Uma velha mulher cega, andando com uma bengala, representa a ignorância;
  • Um oleiro fazendo um pote representa a vontade;
  • Um macaco pulando de galho em galho representa a consciência;
  • Um barco com duas pessoas representa o nome e forma;
  • Uma casa com seis janelas representa o conjunto dos seis sentidos;
  • Um casal se abraçando representa o contato;
  • Um homem dramaticamente ferido por uma flecha no olho representa a sensação;
  • Um homem tomando bebida alcoólica representa o desejo;
  • Um homem ou um macaco agarrando uma fruta em uma árvore representa o apego;
  • Uma mulher grávida representa a existência;
  • Uma mulher dando à luz representa o nascimento;
  • Uma pessoa carregando um cadáver representa o envelhecimento e morte.

Os 6 reinos da existência cíclica

A parte principal da roda é dividida em seis partes, representando os seis reinos da existência cíclica (sânsc. samsara).

Na parte de baixo, estão os três reinos inferiores:

  • seres dos infernos (sânsc. naraka, nairayika);
  • fantasmas famintos (ou espíritos carentes, sânsc. preta);
  • animais (sânsc. tiryak, tiryagyona).

Na parte de cima, estão os três reinos superiores:

  • deuses (sânsc. deva);
  • semideuses (ou antideuses, deuses invejosos, demônios covardes, titãs, sânsc. asura);
  • humanos (sânsc. manushya).

Em cada reino há um buddha: Yama Dharmaraja no reino dos infernos; Jvalamukha no reino dos fantasmas famintos; Simha no reino dos animais; Indra no reino dos deuses; Vemachitra no reino dos semideuses; e Shakyamuni no reino dos seres humanos.

Em alguns sistemas, o reino dos semideuses também é considerado um reino inferior, tornando-se um dos “quatro estados miseráveis” (infernos, fantasmas famintos, animais e semideuses). Em outros sistemas, contam-se apenas cinco reinos (infernos, fantasmas famintos, animais, humanos e deuses), sendo que os semideuses são divididos entre o reino dos fantasmas famintos e o dos deuses.

Existem seis reinos onde nós podemos ter renascimento, um deles é o reino humano. Cada reino tem um âmbito de experiência específico, ainda assim podemos vivenciar em corpo humano — embora com muito menos intensidade — as experiências dos seis reinos. Por exemplo, o reino dos infernos é vivido por nós através da experiência de que todas as pessoas que nos cercam são ruins, o filho, o marido, o chefe… Para todo lado que olhamos as coisas são difíceis e só há sofrimento. Através da raiva e da aversão nos conectamos com esse reino. No reino dos seres famintos há uma experiência de carência incessante, eles têm sempre muito pouco diante do que sentem que necessitam. Nos conectamos a essa experiência através da avareza e aquisitividade. Assim como nos infernos, esses seres também não praticam. Os seres nos infernos dizem: “estou sofrendo, tudo é horrível, como eu vou praticar?” Os seres famintos dizem “eu preciso disso e disso, como posso praticar?”. Depois há o reino dos animais, eles não praticam porque tão logo eles estejam com suas necessidades satisfeitas, de barriga cheia, dormem. Assim, também não ouvem o Dharma.

Entre os reinos superiores, há os deuses. Não é o reino de Deus, mas dos deuses. No reino humano isso corresponde àqueles que andam de carro importado, jatinho, não tem problemas de dinheiro, desfrutam de todas felicidades do mundo material. Os deuses tem corpos específicos sutis, se deslocam no espaço e produzem benefícios para os seres humanos em dificuldades. O problema é que são benefícios condicionados, e não do tipo que produz liberação. Esse reino é o que os seres humanos buscam em seus sonhos, é a sua perdição… Vivemos almejando chegar lá, trabalhando para isso, ou sonhando com isso. Nos conectamos com esse reino através do orgulho.

Já os semi-deuses têm poder, mas são competitivos e invejosos; passam o tempo todo combatendo. A conexão se dá através da inveja. Os deuses não praticam porque estão imersos em facilidades e felicidades, então, por quê praticar? Os semi-deuses, como estão sempre guerreando, também não têm tempo para praticar.

(Padma Samten, Prática na Vida Cotidiana)

Não é um processo que necessariamente precise ser monitorado. As ações se desenrolam do seu próprio modo, sem que ninguém controle o resultado. Não é como se alguém tivesse que contabilizar tudo para que cada qual fosse parar no reino certo, etc. As ações de cada ser determinam as experiências futuras desse ser. […]

A idéia de que podemos vivenciar estes reinos de sofrimento que chamamos de infernos deixa muitas pessoas céticas ou enraivecidas. Elas não acreditam em inferno; pensam que este conceito não passa de uma tática que algumas religiões empregam para assustar e controlar as pessoas. Em certo sentido, é verdade que o inferno não existe. Se fizermos uso de toda a tecnologia do mundo para tentar chegar ao centro da Terra, nunca acharemos o inferno. No entanto, muitos seres estão sofrendo no reino dos infernos neste exato momento.

O inferno é o fluxo dos enganos e fantasias da mente, dos pensamentos e interações raivosos, e das palavras e ações nocivas que eles produzem. Se não forem controlados, não há como deixarmos de vivenciar o inferno. […] Algumas pessoas experimentam o inferno mesmo enquanto contam com um corpo humano. Muitas delas ocupam nossos hospitais. […] Poderíamos estar sentados no mesmo quarto que elas, e não enxergar nada do que sofrem. Ao mesmo tempo, podemos estar bem ao lado de um grande meditador que vivencia o céu, a terra pura, sem que nós mesmos enxerguemos isso. […]

Embora grandes meditadores consigam vislumbrar outros reinos, nós não temos prova absoluta sequer de que o nosso mundo fenomênico humano exista além das nossas mentes individuais e coletivas. Ainda assim, da mesma forma que tomamos nossos sonhos como reais enquanto estamos dormindo, consideramos real o nosso reino humano. E os cinco outros reinos são tão reais para os seres que neles existem quanto a nossa experiência é para nós. O inferno parece tão real para um ser no inferno, o reino dos fantasmas famintos tão real para um fantasma faminto, quanto o reino humano para nós. Em última análise, o sofrimento provém não dos fenômenos desses reinos, mas do fato dos seres conferirem realidade a eles.

Assim, não é contraditório dizer que nossa experiência é real ou verdadeira, e ao mesmo tempo falsa. Nem é contraditório dizer o mesmo de qualquer outro reino. Se insistimos que o reino humano é real, então todos os demais reinos são reais, porque os seres que neles existem os experimentam como reais. […]

Quando tomamos consciência do sofrimento e das limitações da existência cíclica, passamos a ter motivação para encontrar uma saída, da mesma forma que, quando nos damos conta de que estamos doentes, buscamos algum remédio. Ao compreender que a virtude e a não-virtude determinam se a nossa experiência será de felicidade ou tristeza, prazer ou dor, cabe-nos uma escolha: podemos mudar nossas ações e cultivar qualidades virtuosas, buscando a liberação para nós mesmos e para os outros seres, ou podemos continuar a criar não-virtude, perpetuando sofrimento sem fim.

(Chagdud Tulku Rinpoche, Portões da Prática Budista)

Os 3 venenos da mente

No centro da roda há três animais que representam os três venenos (sânsc. klesha) da mente, a origem dos seis reinos e dos doze elos: o desejo (apego) é representado por um galo; o ódio (aversão) é representado por uma serpente; e a ignorância (conhecimento errôneo), a fonte dos outros dois venenos, é representada por um porco ou javali. O galo e a serpente geralmente aparecem saindo da boca do corpo, indicando que o apego e a aversão surgem da ignorância. Ao transcendermos estes três venenos, podemos nos libertar do sofrimento dos seis reinos e extinguir os doze elos que nos prendem a ele.

Ao redor do círculo com estes três animais, há dois semicírculos que representam a virtude e a não-virtude. O semicírculo negro representa o karma negativo, que conduz aos reinos inferiores. O semicírculo branco representa o karma positivo, que conduz aos reinos superiores.

Os 4 pensamentos que transformam a mente

Observando a roda da vida, é possível contemplar os quatro pensamentos que transformam a mente: a preciosidade do nascimento humano, a impermanência, o karma e o sofrimento. Esta contemplação é muito eficaz para despertar a compaixão, o amor, a alegria e a equanimidade.

Os humanos têm maior vantagem. As nossas felicidades e sofrimentos não são tão duradouras. E quando cruzamos de uma felicidade para uma infelicidade, buscamos os ensinamentos. Isso é a vida humana comum. Ainda assim ela é muito rara. Se comparamos a nossa vida com outros seres, eles são muito mais numerosos. O corpo humano é raro e improvável. Como nós somos geridos pelo karma, o nosso renascimento é construído pela nossa condição kármica. Nós não conseguimos dirigir esse processo. É como a tartaruga cega, que a cada cem anos vêm à superfície do oceano, de águas revoltas, onde há um aro boiando. O renascimento humano é tão improvável quanto esta tartaruga, justamente no momento em que sobe à superfície, conseguir colocar sua cabeça dentro do aro que estava boiando.

A nossa condição humana hoje é favorável. Os seres humanos têm a possibilidade de praticar. Temos a liberdade de olhar nossos impulsos e perceber aspectos mais sutis. Temos tempo livre. Isso significa méritos. Já a “vida humana preciosa” tem características peculiares que transcendem em muito a vida humana típica.

Quando vivemos em épocas em que os seres de luz não se manifestam, nos sentimos perdidos e a vida parece sem sentido. Na época atual os seres de sabedoria vieram; vieram e deram ensinamentos que foram guardados e transmitidos. Esses ensinamentos chegaram até nós e estamos numa região onde esses ensinamentos existem. Além disso, temos sensibilidade para ouvi-los. Dizem que há uma vida humana preciosa quando, além desses fatores, estamos engajados em transformar a nossa vida a partir dos ensinamentos dos seres de sabedoria. Se estivéssemos sob domínio de seres negativos, ou se tivéssemos um modo de ação incorreta, não conseguiríamos ouvir os ensinamentos. Se não estamos sob essas condições, isso completa as características da vida humana preciosa. Se a vida humana é numerosa como as estrelas no céu noturno, a vida humana preciosa é tão rara quanto estrelas que são vistas no céu diurno. A pessoa está engajada em produzir benefícios para todos os seres.

O segundo pensamento é sobre a impermanência. Todas as coisas são impermanentes. Nós estamos sempre buscando o que é estável, mas nos enganamos. Onde estão os meus amigos “inseparáveis” da escola? A gente nem sabe onde eles estão hoje. Onde está a casa da nossa infância? A nossa mãe, pai, irmãos? O primeiro namorado, que foi maravilhoso, mas sumiu. A nossa experiência é de instabilidade e transformação constantes. Se diz no buddhismo que o planeta Terra vai desaparecer. O que dizer então das nossas pequenezas? Estamos aqui por um curto espaço. Esse ensinamento vem para aprendermos a olhar com o olho correto à cada momento. O olho incorreto é pensar que tudo é estável. Quando entendemos a preciosidade da nossa vida, e a usamos para produzir benefícios aos outros seres, este é o sinal de que os ensinamentos produziram as transformações que buscávamos.

A seguir, o karma. Estamos sujeitos a impulsos internos com os quais não podemos lidar. Esses impulsos produzem as dez ações não-virtuosas ou as correspondentes dez ações virtuosas. As ações virtuosas vão produzir experiências favoráveis — isso também é karma, karma favorável ou positivo, mérito. São experiências de felicidade condicionada.

O karma se manifesta em quatro níveis: imediato, a curto, médio e longo prazo. Por exemplo, se desejamos que alguém morra, naquele exato instante estamos esquecidos da nossa condição búddhica, luminosa, perfeita, e isso já é sofrimento. O de curto alcance, é que de novo e de novo vemos a morte de alguém como solução para nossos problemas. O de médio alcance vai se prolongar por essa vida e por outras: a pessoa não se sente digna, sente-se impura por dentro, inferior, e tem uma marca de aversão pelos outros.

Pior que pensar é planejar como fazer. Aí a perturbação se intensifica. A pessoa vai ter sentimentos mais perturbadores, pode começar a ter pesadelos. Se fez isso e executou, a experiência que é muito intensa, vai haver uma intranqüilidade muito grande. E se o ser morreu, é pior ainda. Ela vai se sentir perseguida. Por um longo tempo vai sofrer. Então temos essas quatro etapas kármicas que acompanham cada ação.

Nós temos uma multiplicidade de possibilidades tanto positivas quanto negativas. Tanto uma quanto outra são condicionadas, podem flutuar, estamos sempre pulando de um ponto para outro. Estamos presos nisso, é automático. Esses impulsos estão a nosso serviço, mas quando eles começam a andar por si, são karma. Temos vários mecanismos condicionados, o nosso cabelo cresce, as unhas crescem, sem que a gente faça alguma coisa. E por causa do karma surge a etapa seguinte, o quarto pensamento, que é o sofrimento. Sempre que operamos com referenciais duais, o sofrimento é inevitável. Aí surge o pensamento final que é: eu gostaria de me liberar disso, revelar minha natureza luminosa, usar de forma positiva as relações que estou vivendo, beneficiar os seres.

Em meio às confusões do mundo e tendências kármicas, toda vitória que podemos ter é como vitória no campo de futebol, frágil, impermanente. Agora mudamos, queremos descobrir a nossa natureza completa. Quando olhamos na vida, a nossa vontade de mudar é testada várias vezes, isso é prática espiritual. Aí nossa paisagem ao redor se transforma de samsara, lugar de sofrimento e enganos, em terra pura, que é onde praticamos, recebemos ensinamentos e nos sentimos protegidos pelos seres de sabedoria.

Os buddhas olham o que chamamos de samsara e vêem a perfeição que ali existe. Somos como formigas num palácio, não conseguimos reconhecê-lo com nossos olhos de formiga. Há, então, uma longa etapa de transformação dos nossos olhos, até que possamos reconhecê-lo. Em geral, não conseguimos perceber o valor do benefício real que estamos recebendo.

Paralelamente ao processo de transformação das tendências kármicas, o Buddha ensinou a prática ininterrupta das quatro qualidades incomensuráveis, que são o método positivo de manifestação no cotidiano solucionando as confusões e conflitos.

A primeira é a compaixão, o desejo que os seres realizem sua natureza interna e se livrem de suas complicações. Essencialmente é o desejo que o outro supere suas dificuldades e possa melhorar. Atenção: compaixão é diferente de “pena”. Quando temos pena, estamos validando a imagem que a pessoa faz de si mesmo, e justamente por isso ela está mal. Compaixão é reconhecer no outro a sua natureza estável, perfeita, de luz, sua condição verdadeira, quebrando o encanto dos jogos que estão produzindo as complicações. A segunda é o amor, o desejo que o outro seja feliz, completamente. Não exclui ex-maridos, ex-esposas, ex-sócios… Depois a alegria, a capacidade de se alegrar com as alegrias e vitórias dos outros, pequenas ou grandes. É um poderoso antídoto contra a inveja. Finalmente a equanimidade: perceber as flutuações das alegrias e tristezas da vida; num momento se tem uma grande alegria, em outro aquilo mesmo vira uma grande tristeza. Surge uma serenidade estável frente a essas flutuações e uma fé permanente, inabalável na natureza de todos os Buddhas, que é a sua própria natureza.

O Buddha ensinou também os meios de produzir felicidade nas relações humanas: casamento, namoro, filhos, trabalho, estudo. Em primeiro lugar, ao invés de pensar “o quê vou obter do outro”, pensar “o que posso oferecer”. Alegrar-se em oferecer! Se estamos na dependência do comportamento do outro para obter felicidade, eventualmente pode até funcionar, mas quando surgir a impermanência e o outro flutuar, entramos em crise. S.S. o 14º Dalai Lama, prêmio Nobel da Paz, sempre brinca, “que tipo de amor é o de vocês, aquele que só existe se o outro sorrir?” Esse tipo de amor está baseado em quanto estamos recebendo e, por isso, é frágil.

Praticando assim, podemos usar a vida cotidiana como caminho espiritual, superando os conflitos internos e trazendo benefícios a todos os seres. Alegria!

(Padma Samten, Prática na Vida Cotidiana)

Lembre-se que, nos infernos inferiores, os seres queimam como o sol, e que nos infernos superiores, eles congelam. Lembre-se de como os fantasmas e espíritos sofrem com a fome, a sede e o ambiente. Lembre-se de como os animais sofrem as conseqüências de sua estupidez. Abandone as causas kármicas de tais misérias e cultive as causas da alegria. A vida humana é rara e preciosa; não faça dela uma causa para o sofrimento. Tome cuidado; use-a bem.

(Nagarjuna, citado em Path to Enlightenment)

Leitura complementar (links externos):

A importância da confiança na existência de outros reinos

por Ajahn Jayasāro (publicado pelo próprio em grupo de Whatsapp)

O Buddha muitas vezes enfatizou que seus ensinamentos sobre os vários reinos da existência não eram baseados em crenças comuns ou princípios filosóficos, mas na experiência direta. Ele dizia, por exemplo, que era capaz de revelar como diferentes ações volitivas do corpo, fala e mente levam ao renascimento em vários reinos do céu ou do inferno por “ter conhecido por mim mesmo, visto por mim mesmo, observado por mim mesmo”. Ele considerava vital que seus discípulos depositassem confiança na existência de outros reinos.

O Buddha, no entanto, não exigia fé cega neste assunto. De fato, suas críticas às falhas inerentes à fé cega são encontradas ao longo dos discursos. O Buddha, porém, encorajava o cultivo de uma confiança baseada, inicialmente, na convicção em sua sabedoria e compaixão. A importância que ele deu à aceitação da existência de outros reinos pode ser vista a partir de sua inclusão na Visão Correta, o primeiro componente do Caminho Óctuplo. A conclusão a ser tirada aqui é que sem a aceitação de outros reinos, pelo menos como hipótese de trabalho, a compreensão dos praticantes da lei do kamma nunca será profunda o suficiente para sustentar uma prática que culmine na liberação.

Diagrama dos 31 reinos ou planos de existência

Veja também:

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