O desejo no budismo é uma força complexa, sendo frequentemente apontado como a origem do sofrimento. Contudo, a tradução única para “desejo” simplifica a riqueza conceitual presente nos termos páli taṇhā e chandā. Taṇhā representa a sede insaciável, o anseio que aprisiona, enquanto chandā expressa a aspiração saudável. Este artigo analisa essa distinção fundamental, demonstrando que a natureza e a intenção do desejo são cruciais para compreender o seu papel no caminho budista.
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Tanha (o desejo prejudicial)
O termo páli taṇhā, ou tṛ́ṣṇā em sânscrito, significa literalmente “sede”, evocando uma sensação de anseio e secura. A sua etimologia remonta à raiz proto-indo-europeia *ters-, relacionada com a ideia de secura. Esta metáfora da sede ilustra a natureza insaciável e urgente de tanha, que procura incessantemente a satisfação sem nunca a alcançar plenamente.
O Buda identificou três formas principais de tanha, como por exemplo no Dhammacakkappavattana Sutta (SN 56.11) e Mahāsatipaṭṭhāna Sutta (DN 22): kāma-taṇhā (desejo por prazeres sensoriais), bhava-taṇhā (desejo por existência ou vir a ser) e vibhava-taṇhā (desejo por não-existência). Kāma-taṇhā refere-se ao anseio por objetos sensoriais agradáveis, como formas visíveis, sons, cheiros, sabores e sensações táteis, mas também abrange o desejo por riqueza, poder e até mesmo o apego a ideias, opiniões, teorias e crenças, por vezes referido como dhamma-taṇhā. Este desejo não se limita apenas aos prazeres físicos, estendendo-se às formas mais subtis de apego mental. Bhava-taṇhā manifesta-se como o desejo de ser algo, de se unir a uma experiência, frequentemente impulsionado pela visão errónea do eternalismo e por um anseio por permanência e uma identidade fixa. Este desejo está intrinsecamente ligado à noção de um “eu” duradouro e à busca por uma existência contínua e específica. Por último, vibhava-taṇhā representa o desejo de não experienciar coisas desagradáveis, incluindo o desejo de auto-aniquilação ou de cessação da existência, sendo frequentemente motivado pela visão errónea do aniquilacionismo. Embora pareça um desejo negativo, ainda é uma forma de apego à ideia de um “eu” que procura evitar o sofrimento a todo o custo.
No contexto das Quatro Nobres Verdades, tanha desempenha um papel crucial. No Dhammacakkappavattana Sutta (SN 56.11), tanha é identificada como a segunda Nobre Verdade, a causa fundamental do sofrimento (dukkha). Esta “sede” que leva ao renascimento, acompanhada de paixão e deleite, encontrando prazer aqui e ali, é a origem da insatisfação inerente à existência. A terceira Nobre Verdade, por sua vez, oferece a cessação de tanha como a própria cessação do sofrimento, indicando que a libertação do ciclo de renascimentos e da dor só é possível através da erradicação desta sede insaciável.
No dia a dia, tanha manifesta-se de inúmeras maneiras. O desejo exacerbado e insaciável por bens materiais, a busca incessante por reconhecimento social e a procura constante por experiências sensoriais agradáveis são exemplos práticos de como esta sede se expressa na vida contemporânea. A busca sedenta por um novo smartphone, o anseio por elogios nas redes sociais ou a dependência de certos alimentos ou substâncias ilustram a natureza persistente e muitas vezes frustrante de tanha.
A relação entre tanha e dukkha é intrínseca. A busca incessante por satisfação através de tanha inevitavelmente leva a dukkha devido à natureza impermanente da realidade. Uma vez que todos os fenómenos estão em constante mudança, qualquer satisfação obtida através do apego aos desejos é, por natureza, transitória e incapaz de proporcionar uma felicidade duradoura. A frustração de desejos não satisfeitos, a perda do que se deseja e o medo de perder o que se tem são fontes constantes de insatisfação e sofrimento, demonstrando como tanha alimenta o ciclo de dukkha. Tanha nos aprisiona, sempre leva à perda de liberdade e ao sofrimento. Porém, estes desejos surgirão, não é “pecaminoso” e não temos que nos culpar por isso. Quando eles surgirem precisamos os identificar, assim como as suas causas. Conforme formos praticando, gradualmente eles perderão a sua força.
Chanda (o desejo hábil)
O termo páli chandā é traduzido de diversas formas, incluindo intenção, aspiração, inclinação, interesse, desejo de agir ou mesmo zelo. Ao contrário de tanha, chanda é considerado um fator mental eticamente variável, o que significa que a sua qualidade moral depende do contexto e da intenção subjacente.
Dentro do budismo, distinguem-se diferentes tipos de chanda. Kusala-chanda refere-se ao desejo hábil ou virtuoso, baseado em raízes saudáveis como a não-ganância (alobha), a não-aversão (adosa) e a não-ilusão (amoha). Este tipo de desejo leva a estados mentais positivos e promove o progresso espiritual. Exemplos de kusala-chanda incluem o desejo de seguir os preceitos éticos, a aspiração pela libertação do sofrimento e a vontade de desenvolver qualidades benéficas como a compaixão e a sabedoria. Em contraste, akusala-chanda é o desejo não-hábil ou não-virtuoso, enraizado em qualidades negativas como a ganância (lobha), o ódio (dosa) e a ilusão (moha). Este tipo de desejo partilha semelhanças com tanha e pode levar a ações prejudiciais e ao sofrimento. Um tipo específico de kusala-chanda é dhamma-chanda, que se refere ao desejo, interesse ou zelo pela prática e estudo do Dhamma, sendo considerado fundamental para o progresso no caminho espiritual.
Kusala-chanda desempenha um papel crucial no caminho espiritual. É a motivação virtuosa que impulsiona o praticante a iniciar e manter a prática do Nobre Caminho Óctuplo. Sem um desejo hábil de progredir, de cultivar qualidades positivas e de abandonar as negativas, o caminho para a libertação torna-se árduo.
Além disso, chanda está intrinsecamente ligado ao conceito dos iddhipada, as quatro bases do poder espiritual. Os iddhipāda são explicados em vários suttas, mas algumas das principais referências estão no Iddhipāda-Saṃyutta (SN 51), especialmente no Apāra Sutta (SN 51.1) e no Chandasamādhi Sutta (SN 51.13). O Buda explica que chanda (neste contexto, chandiddhipada ou aspiração, vontade, desejo de fazer) é o primeiro dos quatro iddhipada, juntamente com viriya (esforço ou energia), citta (mente ou consciência) e vīmaṃsā (investigação ou sabedoria). Um desejo forte e bem direcionado, quando acompanhado de esforço, atenção e investigação, pode ser uma base poderosa para o desenvolvimento espiritual e a realização.
Existem inúmeros exemplos práticos de chanda benéfico. O desejo de meditar regularmente, a intenção de cultivar a compaixão para com todos os seres, o interesse em estudar e compreender os ensinamentos budistas e a vontade de ajudar os outros são todas manifestações de kusala-chanda. Estes desejos promovem o bem-estar próprio e dos outros, alinhando-se com os princípios éticos e espirituais do budismo.
“As apresentações ocidentais dos ensinamentos budistas frequentemente levam ao entendimento de que o sofrimento surge por causa do desejo, e portanto você não deveria desejar nada. Enquanto que, na verdade, o Buda falou de dois tipos de desejo: desejo que surge da ignorância e ilusão, que é chamado de taṇhā – ânsia – e o desejo que surge da sabedoria e inteligência, que é chamado de kusala-chanda, ou dhamma-chanda, ou mais simplesmente chanda. Chanda não significa exclusivamente isso, mas neste contexto particular estou usando chanda para representar o desejo e as motivações sábias e inteligentes, que, segundo o Buda, são fundamentais para avançar no Caminho Óctuplo.”* – Ajahn Jayasaro
Distinções importantes
A distinção entre tanha e chanda é fundamental para uma compreensão correta do papel do desejo no budismo. A tabela abaixo resume as principais diferenças entre estes dois conceitos:
Característica | Taṇhā | Chandā |
Natureza/Essência/Propriedade | Sede insaciável, avidez, apego | Intenção, aspiração, interesse, desejo de agir (variável) |
Raiz | Ignorância (avidyā), ilusão (moha) | Sabedoria, inteligência (em kusala-chanda) |
Resultado | Sofrimento (dukkha), ciclo de renascimentos | Crescimento espiritual, libertação (em kusala-chanda) |
Função | Apego a experiências e objetos impermanentes | Motivação para ações (éticas ou não) |
Ética | Invariavelmente não-hábil (akusala) | Pode ser hábil (kusala) ou não-hábil (akusala) |
Relação com o Dhamma | Obstáculo ao progresso espiritual | Fundamental para o progresso no caminho |
Essa tabela é uma ferramenta útil para entender as diferenças básicas entre estes dois conceitos, mas deve-se ter em mente que a realidade descrita nos suttas é mais nuançada.
Mas a diferença crucial reside na motivação e nas consequências dos dois tipos de desejo. Enquanto tanha é impulsionada pela ignorância e leva ao apego e ao sofrimento, chanda, quando hábil, é cultivada com sabedoria e discernimento, conduzindo ao desenvolvimento espiritual e à libertação.
Na prática, identificar a diferença entre tanha e chanda requer auto-observação e atenção às emoções associadas ao desejo. Tanha geralmente é acompanhada de agitação, insatisfação e uma sensação de falta constante, enquanto que kusala-chanda tende a gerar entusiasmo, clareza, leveza, e uma sensação de propósito. Observar a relação do desejo com o apego e analisar as suas consequências a longo prazo também pode ajudar a discernir a sua natureza.
A meditação desempenha um papel essencial neste processo de discernimento. Ao cultivar a atenção plena, é possível observar os desejos à medida que surgem, sem julgamentos ou reação automática. Esta observação atenta permite compreender a origem do desejo, as emoções que o acompanham e o seu impacto na mente e no corpo, facilitando a distinção entre tanha e chanda.
Aplicação prática
Trabalhar com os diferentes tipos de desejo começa com o reconhecimento da sua presença e da sua natureza. É importante estarmos consciente das manifestações de tanha na vida quotidiana e esforçarmo-nos por cultivar kusala-chanda, direcionando a energia do desejo para objetivos espirituais. A energia inerente ao desejo pode ser redirecionada para o desejo de libertação do sofrimento (dukkha), para o desejo de cultivar qualidades positivas ou para o desejo de beneficiar os outros.
O Caminho do Meio, ensinado pelo Buda, oferece uma abordagem equilibrada ao desejo, evitando os extremos da indulgência sensual, que está intimamente ligada a tanha, e da auto-mortificação. Este caminho promove a moderação e o discernimento, utilizando tanto o prazer quanto a dor como ferramentas para o desenvolvimento espiritual, sem nos apegarmos a nenhum dos dois.
As práticas específicas do Nobre Caminho Óctuplo contribuem significativamente para a gestão e transformação do desejo. A Visão Correta (sammā-ditthi) envolve compreender a natureza do sofrimento e a sua causa no desejo. A Intenção Correta (sammā-saṅkappa) incentiva a cultivarmos intenções de não-apego, boa vontade e não-violência. O Esforço Correto (sammā-vāyāma) implica esforçarmo-nos para abandonarmos estados não-hábeis e cultivarmos estados hábeis. A Atenção Plena Correta (sammā-sati) permite observar os desejos sem sermos controlados por eles. A Concentração Correta (sammā-samādhi) desenvolve a estabilidade mental necessária para discernirmos a natureza dos desejos. Cada um dos oito passos oferece um guia prático para cultivarmos kusala-chanda e reduzirmos a influência de tanha.
A contemplação das desvantagens do desejo (ādīnava) é uma prática poderosa para enfraquecer o poder de tanha. Ao refletirmos sobre as consequências negativas do apego e da avidez, como a insatisfação, o sofrimento e o ciclo de renascimentos, é possível desenvolvermos uma maior motivação para abandonarmos estes padrões de pensamento e comportamento.
Cultivar o contentamento (santuṭṭhi) com o que se tem é outro antídoto eficaz contra a natureza insaciável de tanha. Ao aprendermos a apreciar e a encontrarmos satisfação no presente, a necessidade de buscar constantemente mais através de tanha diminui.
Diversas práticas meditativas são relevantes para compreendermos e libertarmo-nos de tanha. A meditação da atenção plena da respiração ajuda a acalmar a mente e a observar os pensamentos e emoções, incluindo os desejos, sem julgamentos. A contemplação (anupassanā) dos fenómenos desenvolve a visão clara (vipassanā) sobre a natureza impermanente (anicca) e insatisfatória (dukkha) de todos os fenómenos, incluindo os desejos. A contemplação sobre o não-eu (anatta) ajuda a desidentificarmo-nos das ilusões de um “eu” permanente que está na base de muitos desejos egoístas.
Na busca pela superação de taṇhā, o desenvolvimento de estados mentais positivos através da meditação – incluindo o surgimento de pīti (alegria) – desempenha um papel crucial ao enfraquecer essa sede insaciável. Pīti, ao oferecer uma “alegria não-sensual”, contrasta com os prazeres sensoriais que alimentam taṇhā, contribuindo para a diminuição da dependência desses estímulos. Ademais, como um dos bojjhaṅgā dos Fatores de Iluminação, pīti integra o caminho que leva à cessação de dukkha, evidenciando como estados meditativos podem facilitar uma transformação mental.
Geralmente, quando as pessoas têm menos desejos (tanha) são mais felizes e mais confiáveis, quando as pessoas têm fortes desejos costumam ser menos confiáveis porque estão mais propensas a cometer ações negativas. Devemos analisar os nossos desejos e perceber a origem deles, se o resultado de os satisfazermos vai ser benéfico, não-benéfico ou neutro. Se temos plenitude, contentamento interior, temos menos desejo sedento, quando estamos completamente dominados pelos desejos e luxurias, é porque internamente não estamos bem, não estamos com plenitude. Liberdade não é fazermos o que queremos, mas ter a capacidade para seguir ou não os desejos, é termos a capacidade para fazermos também o que não queremos. Importante referir que nós não somos Budas, não somos iluminados, então invariavelmente vamos ter tanha, e dependendo da intensidade é normal e aceitável, mas a prática budista ajuda a diminuir.
Conclusão
No budismo existe uma distinção essencial entre os desejos tanha e chanda. Enquanto tanha representa o desejo insaciável enraizado na ignorância, que inevitavelmente conduz ao sofrimento e ao ciclo de renascimentos, chanda abrange uma gama mais ampla de desejos, podendo ser uma força positiva quando direcionada de forma hábil. A compreensão desta diferença é fundamental para a prática espiritual. Ao reconhecer a natureza prejudicial de tanha e ao cultivar kusala-chanda, os praticantes podem direcionar as suas intenções e esforços para o caminho da libertação. O Nobre Caminho Óctuplo, com as suas práticas de ética, disciplina mental e sabedoria, oferece um guia prático para transformar os desejos não-hábeis em aspirações virtuosas. Este conhecimento não só beneficia a prática meditativa formal, mas também oferece ferramentas valiosas para gerir os desejos de forma mais consciente na vida quotidiana, contribuindo para a redução do sofrimento e o cultivo de uma paz interior duradoura.
Referências: Chanda (Encyclopedia of Buddhism); Taṇhā (Wikipedia); Chanda (Buddhism) (Wikipedia); Iddhipada (Wikipedia); Three Kinds of Dukkha Explained (Lion’s Roar); Tanha definitions (Wisdom Library); Chanda definitions (Wisdom Library); Chapter 12 – Zeal, Cetasikas by Nina van Gorkom (Wisdom Library); Santutthi definitions (Wisdom Library). Four Steps to Magical Powers (Buddha-Nature – Tsadra Foundation); Introduction | Discernment: The Buddha’s Strategies for Happiness II (Dhamma Talks).
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