“Visto de fora, sua fortuna, sua fama e o status de guru pode parecer equipá-lo para lidar com os problemas da vida muito melhor que a maioria de nós. Mas na verdade, o contrário agora parecia verdadeiro.”
Trecho do livro “A Gata do Dalai Lama” de David Michie. Editora: Lúcida Letra.
Todos em Mcleod Ganj sabiam que alguém especial estava chegando quando o imenso Range Rover preto subiu imponente a colina para o templo de Jokhang. Moradores e turistas olhavam fixamente aquela aparição enorme, reluzente e cara, tão fora de sintonia com o local que mais parecia ter se materializado de outro planeta. Quem exatamente estava por trás daqueles vidros escuros? O que é preciso fazer para ser transportado de maneira tão secreta e extravagante? […]
Reconheci o visitante no momento em que ele entrou na sala de Sua Santidade. Afinal, ele era um dos primeiros gurus de autoajuda a tornar-se um dos mais conhecidos do mundo. Seu rosto estava estampado nas capas de milhões de livros e DVDs. Percorrera capitais do mundo inteiro, falando para multidões nos maiores locais de eventos das grandes cidades. Era seguido por personalidades de Hollywood, conhecera presidentes americanos, e aparecia regularmente nos principais programas de entrevistas.
Entretanto, meu mais profundo senso de discrição me impede de contar quem ele era — principalmente à luz das revelações bombásticas que ele estava prestes a fazer, e que, certamente, não tinham a intenção de atingir um público maior. No momento em que entrou pela porta, foi possível perceber sua presença controladora. Era como se o simples fato de estar ali obrigava o resto de nós a olhar para ele.
Certamente, o Dalai Lama também possui uma presença poderosa — mas de natureza completamente diferente. No caso de Sua Santidade, não se trata de uma presença pessoal, mas sim de um encontro com a Bondade. Desde o primeiro momento na presença dele, ficamos absortos em um estado de ser no qual todos os nossos pensamentos e preocupações corriqueiras desaparecem na irrelevância, e, curiosamente, nos lembramos de que nossa própria natureza essencial é feita de amor ilimitado e, sendo assim, tudo está bem.
Nosso convidado — vamos chamá-lo de Jack — entrou na sala a passos largos, presenteou Sua Santidade com uma echarpe, como manda a tradição, e logo estava sentado ao seu lado na poltrona reservada para visitantes. Esses eram os mesmos gestos feitos pela maioria dos visitantes, mas, o modo como Jack os executava, conferia a eles um ar mais poderoso, como se cada palavra, cada gesto estivesse imbuído de significado. A conversa dos dois começou com amenidades, então Jack entregou a cópia do seu novo livro à Sua Santidade. As histórias sobre sua turnê pelo mundo no ano anterior eram hipnotizantes. Era fácil imaginar o carisma de Jack na tela do cinema enquanto ele descrevia sua participação em um filme.
Mas, depois de dez minutos, a conversa deu lugar ao silêncio. Sua Santidade sentou-se em sua cadeira, relaxado, atento, com um sorriso gentil no rosto. Parecia que, mesmo com toda sua poderosa autoconfiança, estava sendo difícil para Jack chegar ao motivo real de sua visita. Por fim, ele começou a falar novamente. Mas, enquanto falava, algo de extraordinário começava a acontecer.
— Sua Santidade, como o Senhor sabe, trabalho com desenvolvimento pessoal por mais de 20 anos. Ajudei milhões de pessoas ao redor do mundo a encontrar suas paixões, realizar seus sonhos e ter uma vida de sucesso e abundância.
As palavras saíam sem esforço, mas algo se tornava diferente nele à medida que falava. Algo difícil de identificar.
— Ajudei pessoas a encontrar satisfação em todos os aspectos de suas vidas, não apenas material — Jack continuou. — Dei a elas motivação para desenvolverem seus talentos individuais e suas habilidades. A criar relacionamentos bem-sucedidos.
A cada frase, ele parecia perder pouco a pouco sua polidez. Foi diminuindo, quase que fisicamente, em sua cadeira.
— Criei a maior empresa de desenvolvimento pessoal dos Estados Unidos, possivelmente do mundo. — Disse isso como se admitisse um fracasso.
— Durante esse processo, me tornei um homem muito bem-sucedido e muito rico.
Essa última frase teve o maior impacto de todas. Ao dar voz à realização de tudo o que tinha a intenção de alcançar, ele também parecia estar confessando o quão pouco aquilo o havia lhe servido. Ele se inclinou para frente, seus ombros caídos e cotovelos nos joelhos. Parecia triste. Quando levantou o olhar para Sua Santidade, sua expressão era de súplica.
— Mas não está funcionando para mim.
Sua Santidade fitou-o com empatia.
— Em nossa última turnê mundial, ganhei 250 mil dólares por noite. Lotamos os maiores espaços de convenções da América. Mas nunca antes havia me sentido tão vazio. Motivar as pessoas a serem ricas e bem-sucedidas e a conseguirem um bom relacionamento de repente me pareceu tão sem sentido. Pode ser que isso já tenha sido um sonho meu, mas não é mais.
— Fui para casa e disse a todos que precisava de um tempo. Parei de trabalhar. Deixei a barba crescer. Passei muito tempo em casa lendo e cuidando do jardim. Bree, minha mulher, não gostou daquilo. Ela ainda queria passar fins de semana com celebridades, ir a festas e aparecer nas páginas da coluna social. No começo, ela pensou que eu pudesse estar tendo uma crise de meia idade. Mas aí as coisas pioraram. Nosso relacionamento foi ficando cada vez pior, até que ela pediu o divórcio. Isso foi há três meses. Agora, estou tão confuso que não sei o que fazer.
— E sabe o que é pior? Na verdade, me sinto mal por estar mal. Todo mundo acredita que estou vivendo o meu sonho. Imaginam que minha vida é completamente realizada e feliz. Eu os encorajei a pensar assim, porque realmente acreditava nisso. Mas estava errado. Não é verdade. Nunca foi.
A autoridade controladora havia desaparecido, o carisma havia se dissolvido, deixando apenas um homem triste e machucado. Era impossível não sentir pena dele. A diferença entre o personagem que ele projetou e o homem que estava sendo revelado não poderia ter sido maior. Visto de fora, sua fortuna, sua fama e o status de guru pode parecer equipá-lo para lidar com os problemas da vida muito melhor que a maioria de nós. Mas na verdade, o contrário agora parecia verdadeiro.
Sua Santidade inclinou-se para frente em sua cadeira.
— Lamento que o que você está enfrentando seja tão doloroso. Porém, há outra maneira de enxergar a situação. O que você está passando agora é muito útil. Talvez mais tarde você veja isso como a melhor coisa que já lhe aconteceu. A insatisfação com o mundo material é — como é mesmo que se diz? — “vital para o desenvolvimento espiritual”, não é assim?
A noção de que sua atual infelicidade era de alguma forma útil pegou Jack de surpresa. Mas a resposta de Dalai Lama também o perturbou.
— O Senhor não está dizendo que há algo errado com a riqueza, está?
— Oh, não — disse Sua Santidade. A riqueza é uma forma de poder, uma energia. Pode ser mais benéfico quando usada para o bem. Mas, como você pode ver, não é a verdadeira causa da felicidade. Algumas das pessoas mais felizes que conheço têm muito pouco dinheiro.
— E a concretização dos nossos sonhos pessoais? — Jack retomou mais uma de suas crenças anteriores. O Senhor está dizendo que isso também não leva á felicidade?
Dalai Lama sorriu.
— Todos nós temos nossas predisposições. Alguns pontos fortes. Cultivar essas habilidades pode ser muito útil. Mas, — da mesma forma que o dinheiro — o que importa não são as habilidades, mas como as utilizamos.
— E o romance, o amor? Agora, Jack estava raspando o fundo do barril da sua antiga crença, seu próprio ceticismo veio à tona.
— Você tem um relacionamento feliz com sua mulher há muito tempo?
— Dezoito anos.
— Então — Sua Santidade virou as palmas da mão para cima — mudança. Impermanência. É a natureza de todas as coisas, especialmente dos relacionamentos. Eles certamente não são a verdadeira causa da felicidade.
— Quando o Senhor se refere à “verdadeira causa”, o que quer dizer?
— Uma causa na qual se pode confiar. Uma que sempre funciona. O calor quando aplicado à água é uma causa verdadeira de vapor. Não importa quem o aplica, ou como ele vai ser aplicado, o resultado é sempre vapor. No caso do dinheiro, do status ou do relacionamento — Sua Santidade sorriu — podemos ver claramente que não são causas verdadeiras da felicidade.
Enquanto a verdade evidente do que o Dalai Lama acabara de dizer era confirmada pela própria experiência de Jack, a simplicidade e a clareza de suas palavras pareciam ter assustado nosso visitante.
— E pensar que todos esses anos eu venho pregando o Evangelho do Desenvolvimento Pessoal, mas entendi tudo errado.
— Não seja tão duro consigo mesmo — disse Sua Santidade. Se você ajuda as pessoas a levarem uma vida mais positiva, que beneficia também aos demais, isso é uma coisa boa. Muito boa. O perigo é que esse desenvolvimento pessoal pode nos levar a mais autocentramento, ensimesmamento, à vaidade. Essas não são as verdadeiras causas da felicidade, mas o oposto.
Jack parou um momento para processar a próxima pergunta:
— Então, as verdadeiras causas da felicidade. Nós mesmos temos que descobrir quais são ou há princípios básicos? Devemos virar as costas ao mundo material?
Ele não conseguiu dizer mais nada antes de o Dalai Lama começar a gargalhar.
— Ah, não! Se tornar um monge não é uma causa verdadeira da felicidade também! — A seguir, assumindo uma expressão mais séria, continuou:
— Cada um de nós precisa encontrar nossos métodos pessoais de cultivar a felicidade, mas há princípios gerais. Duas importantes causas da felicidade: primeiro, o desejo de fazer o outro feliz, o que os budistas definem como amor, e a segunda, o desejo de libertar o outro do descontentamento ou do sofrimento, que definimos como compaixão.
— A mudança principal, como você vê, é substituir o eu no centro de nossos pensamentos pelo outro. É — como vocês dizem? — um paradoxo que quanto mais pudermos focar nossos pensamentos no bem-estar do outro, mais felizes ficamos. O primeiro a se beneficiar é você mesmo. Eu chamo isso de ser egoísta com sabedoria.
— Uma filosofia interessante, ponderou Jack. Egoísmo com sabedoria.
— Deveríamos testar esses princípios usando nossa própria experiência para ver se são realmente verdadeiros. Por exemplo, pense nas vezes em que experimentou um grande contentamento. Talvez descubra que estava pensando em outra pessoa. Então compare. Pense nos momentos de grande infelicidade, de raiva. Em quem estava pensando naquele momento?
Nosso visitante considerava o que acabara de escutar quando Sua Santidade continuou:
— A pesquisa científica nos ajuda muito. Testes de ressonância magnética foram feitos em praticantes de meditação enquanto pensavam em várias coisas. Achamos que os praticantes são mais felizes quando suas mentes estão completamente calmas e relaxadas. Mas o córtex prefrontal, a parte ligada à emoção positiva, se ilumina quando as pessoas meditam pensando na felicidade dos outros. Portanto, quanto mais outro-centrados formos, mais felizes poderemos ser.
Jack concordava com a cabeça.
— Desenvolvimento Pessoal nos leva apenas até certo ponto. Daí em diante é preciso que haja o Desenvolvimento do Outro.
O Dalai Lama uniu as mãos e abriu um sorriso.
— Exatamente.
Jack fez uma pausa antes de dizer:
— Agora entendo porque o Senhor disse que algo de útil pode vir com essa experiência.
— Há uma história, uma metáfora, que talvez você possa achar útil, disse Sua Santidade. Um homem chega em casa e vê que despejaram em seu jardim um monte de esterco de ovelha. Ele não encomendou o esterco. Ele não quer aquilo. Mas de qualquer maneira, lá está o esterco, sua única opção agora é decidir o que fazer com ele. Ele poderia colocar um pouco no bolso e andar o dia todo reclamando com todos sobre o que aconteceu. Mas, se fizer isso, depois de um tempo as pessoas vão começar a evitá-lo. Melhor seria se espalhasse o esterco pelo jardim.
— Todos nós enfrentamos a mesma escolha ao lidarmos com problemas. Não pedimos por eles. Não os queremos. Mas a maneira com a qual lidamos com os problemas é o mais importante. Se formos sábios, os maiores problemas podem nos levar às maiores descobertas.
*
Sinopse do Livro: Uma gatinha frágil e faminta é resgatada das ruas de Nova Deli por Sua Santidade, o Dalai Lama, e torna-se a companheira preferida do líder espiritual tibetano. Esta é a sua história — contada na primeira pessoa, pela própria gata. Na nova casa, um mosteiro com vista deslumbrante sobre os picos nevados dos Himalaias, a gata do Dalai Lama testemunha encontros com estrelas de Hollywood, mestres budistas, professores de universidades de topo, filantropos e muitas outras pessoas que procuram os conselhos do seu dono. São estas as histórias que a gatinha nos conta, de modo divertido, irreverente e sábio, proporcionando ensinamentos sobre como encontrar a felicidade e o significado da vida num mundo tão intenso e materialista.
David Michie nasceu no Zimbabué, estudou na África do Sul e viveu durante uma década em Londres. Casado, vive atualmente em Perth, na Austrália. Conhecido pelos seus livros de inspiração budista, dá-nos a conhecer com a sua obra os princípios do budismo. A Gata do Dalai Lama foi inspirado na gata do autor, que o acompanhava na meditação e nas aulas sobre budismo tibetano, já que ela gostava de meditar. Se por acaso chegava atrasada, espreguiçava-se na porta até que alguém a deixasse entrar. A gata morreu antes de o autor terminar o livro, mas continua a ser a sua musa inspiradora. Este romance tornou-se rapidamente um êxito estrondoso e já está traduzido em dezoito línguas.
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