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Julgamentos e Dualidade

Quando julgar e quando não julgar? Na espiritualidade existe muito a ideia do não-julgamento, de que não se deve julgar, o que esta certo até certo ponto, mas pelo menos dentro da perspetiva budista, não é totalmente certo. Existem situações e coisas que não devem e nem precisam ser julgadas, principalmente quando estamos “rotulando” pessoas, sendo que não vivemos a vida dessas pessoas. Mas a realidade é que também precisamos julgar muitas coisas e situações. Precisamos discernir o certo e o errado, precisamos avaliar para tomarmos decisões. Temos é de ter em mente que muitos dos nossos julgamentos podem estar incorretos e precisamos de ter compreensão, compaixão, empatia e equanimidade na hora de julgar.

Sobre este tema segue de seguida a tradução de um artigo do Bhante Shravasti Dhammika, um texto de Charlotte Joko Beck, e algumas notas de uma palestra do Monge Genshô sobre a dualidade e os julgamentos. Também são partilhados links com informações adicionais.


Julgamentos

Tradução do artigo “Judgements” de Bhante Shravasti Dhammika. Publicado no site Guide To Buddhism A To Z. | Ver original.

Fazer um julgamento (vinicchaya) é tirar uma conclusão ou tomar uma decisão sobre algo. De acordo com o Buda, as pessoas fazem julgamentos de uma das quatro maneiras – (1) de acordo com a aparência externa (rupappamana), (2) de acordo com a opinião de outros (ghosappamana), (3) de acordo com o status económico (lukhappamana) ou ( 4) de acordo com a realidade (dhammappamana, A.II, 71). Normalmente fazemos julgamentos em dois contextos – quando chamados a arbitrar entre duas ou mais partes, ou no primeiro encontro com uma pessoa ou ao vê-la se comportar de uma determinada maneira. Nesse primeiro contexto, faremos o nosso julgamento com conhecimento das partes envolvidas e com a esperança de que ele amenizará qualquer desacordo entre as partes.

Fazer julgamentos sobre as pessoas com quem entramos em contacto geralmente é feito na privacidade das nossas próprias mentes. No entanto, vai influenciar a forma como pensamos sobre elas – quer seja com respeito ou desprezo, confiança ou suspeita, gosto, desgosto ou indiferença. E, é claro, a opinião que formamos sobre elas a partir dos nossos julgamentos, por sua vez, influenciará como as tratamos. Sendo esse o caso, devemos ter cuidado ao fazer julgamentos sobre os outros, especialmente os críticos.

Talvez seja apropriado mencionar também um tipo de julgamento que diz respeito principalmente aos budistas. Há um certo tipo de budista que tem considerável interesse em pontificar sobre que tipo de kamma uma pessoa deve ter feito para renascer nas suas circunstâncias atuais, ou sobre onde renascerá como resultado de como está agindo agora. Essa especulação só pode ser, na melhor das hipóteses, um palpite ruim. O Buda disse que tentar resolver o funcionamento subtil e interconectado do kamma seria o suficiente para enlouquecer uma pessoa comum (A.II, 80). Isso não ocorre porque o funcionamento do kamma é ambíguo, mas porque nunca podemos realmente saber o que está acontecendo na mente das outras pessoas, seus motivos ou mesmo a gama completa das suas ações. Quando o Buda ouviu que o discípulo leigo Migasala estava afirmando confiantemente que várias pessoas que haviam morrido recentemente renasceram em certas circunstâncias, ele disse: “Quem é este Migasala para conhecer a complexidade do caráter humano?” Depois acrescentou: “Não julgue os outros, não julgue os outros. Quem julga os outros só se prejudica a si mesmo” (A.III, 351).

Além da clara possibilidade de que os julgamentos que fazemos sobre as pessoas podem estar errados, julgar os outros também pode ser um sintoma de, ou dar origem à, presunção e hipocrisia. Pode até ser uma forma de desviar a atenção das nossas próprias fraquezas e falhas morais. No entanto, existem muitas situações na vida em que somos obrigados a fazer julgamentos sobre as pessoas – se uma babysitter é competente para cuidar do nosso filho, se a pessoa que nos pede o dinheiro realmente pretende devolvê-lo, se o mecânico que diz que consegue consertar o nosso carro realmente consegue. O que podemos fazer para garantir que os nossos julgamentos reflitam a realidade para que possamos fazer escolhas mais inteligentes? O Buda ofereceu este sensato conselho: “Fazer um julgamento apressadamente não significa estar certo. O sábio olha os dois lados da questão, com justiça, imparcialidade, zelando pela verdade, com sabedoria e sem pressa. Essa pessoa é chamada de justa” (Dhp.256-7).

A primeira coisa que o Buda recomendou aqui é não fazer julgamentos precipitadamente ou impulsivamente (asāhana). A maioria das coisas, incluindo as pessoas, são multifacetadas e levam tempo para se revelarem totalmente a nós. Da mesma forma, o conhecimento sobre algo geralmente vem ao fim de um processo de acumulação de dados. Consequentemente, é seguro dizer que qualquer julgamento feito à pressa provavelmente estará errado, ou pelo menos parcial. Se as coisas são multifacetadas, segue-se que podem parecer diferentes de acordo com a perspetiva a partir da qual são observadas e, portanto, o Buda nos aconselhou a “olhar para os dois lados da questão”(attham anatthan ca ubho niccheyya). Obter a opinião das diferentes partes numa disputa, levando em consideração os pontos positivos de uma pessoa e não apenas os seus defeitos, considerando que a pessoa que foi rude connosco pode ter tido um dia mau e que normalmente não é assim, são alguns exemplos. As qualidades de justiça (dhammena) e imparcialidade (sama) nem sempre são fáceis de definir, mas um elemento importante de ambas é a igualdade de tratamento. É sempre prudente não enfatizar demais alguns factos mais do que outros, levar em consideração todas as evidências e pesar tudo cuidadosamente.

Na Índia do Buda, como em muitas outras culturas, a balança (tula) foi usada como um símbolo de deliberação justa e imparcial (Dhp.268). Ao fazermos julgamentos sobre qualquer assunto, é fácil sermos influenciados de uma forma ou de outra pelos nossos desejos, por aquilo que desejávamos que fosse verdade. Os vigaristas costumam enganar os outros porque estimulam a sua ganância, sabendo que a ganância obscurece o julgamento. A pessoa sábia tenta manter os sentimentos pessoais sob controlo ao fazer julgamentos, e permanece “vigilante da verdade” (dhammassa gutto), ou seja, dos factos.

Talvez pudéssemos acrescentar uma última coisa ao sábio conselho do Buda, um ponto destacado no Payasi Sutta (D.II, 347-8). Tendo feito um julgamento da melhor maneira possível, é sempre bom continuar a manter a mente aberta. Dessa forma, se a experiência posterior ou factos adicionais mostrarem que o nosso julgamento inicial estava errado, seremos capazes de ajustá-lo. Um preconceito é uma opinião insuscetível de mudança e os preconceitos são a causa de muitos problemas interpessoais e sociais.

Não Julgar

Trecho do Cap. Não Julgar, do livro “Nada de Especial, Vivendo Zen“, de Charlotte Joko Beck.

Existe a seguinte passagem no Dhammapada, verso 50: “Que ninguém encontre defeitos nos outros. Que ninguém enxergue as omissões e as fraquezas alheias. Mas que cada um veja seus próprios atos, feitos ou não”. Esse é um aspecto central de nossa prática. Embora a prática possa nos tornar mais cônscios de nossa tendência a julgar os outros, na vida comum ainda agimos assim. Por sermos humanos, julgamo-nos uns aos outros. Alguém faz algo que nos parece grosseiro, indelicado ou insensato, e não podemos deixar de reparar nisso. Muitas vezes por dia vemos pessoas fazendo coisas que parecem de alguma maneira defeituosas.

Não é que todos ajam o tempo todo da maneira apropriada. As pessoas em geral apenas fazem aquilo que não queremos. Quando fazem o que fazem, no entanto, não é necessário que as julguemos. Não sou imune a isso; percebo-me julgando os outros também. Todos fazemos isso. Por isso recomendo uma prática para nos ajudar a nos flagrar no ato de julgar: sempre que pronunciarmos o nome da outra pessoa devemos observar o que acrescentamos a esse nome. O que dizemos ou pensamos a cerca da pessoa? Que espécie de rótulo usamos? Inserimos a pessoa em alguma categoria? Ninguém deveria ser reduzido a um rótulo e, no entanto, em razão de nossas preferências e aversões, fazemo-lo assim mesmo.

Suspeito que se você entrar nessa prática descobrirá que não consegue passar cinco minutos sem julgar. É surpreendente. Queremos que o comportamento da outra pessoa seja apenas aquilo que queremos – e quando não é, nós a julgamos. Nossa vida em vigília é repleta desses julgamentos.

Poucos de nós agredimos fisicamente os outros. O meio mais comum de agredir é com a nossa boca. Como alguém disse: “Existem dois momentos em que se deve manter a boca fechada – nadando e quando você está zangado”. Quando julgamos que os outros estão errados, acabamos estando com a razão e – gostamos disso.

Como diz a passagem, deveríamos atentar para o nosso próprio comportamento em vez de julgar. “Mas que cada um veja seus próprios atos, feitos ou não.” Em vez de olhar à volta constantemente e julgar todo mundo, vejamos as nossas próprias condutas: o que fizemos e o que não fizemos. Não precisamos nos julgar, mas basta observar o ato. Se começamos a nos julgar, estipulamos um ideal, um certo modo que pensamos deva ser o nosso. Isso também não ajuda. Precisamos enxergar nossos verdadeiros pensamentos, tomar consciência do que é de fato verdadeiro para nós. (…)

(não) Dualidade e (não) Julgamento

Monge Genshô na palestra “Dualidade” publicada no YouTube, fala sobre a dualidade, não-dualidade, julgamentos, não-julgamento, o bem e o mal. Seguem algumas notas do que foi referido na palestra.

O sensei afirma que a vida quotidiana é dualidade. Quando se diz para um aluno se sentar (meditar) e não julgar o aluno pensa que não deve julgar nunca, o que é um absurdo. Todo o tempo é preciso julgar, isto é bom, isto é ruim, isto é certo, isto é errado. Os preceitos budistas estão falando de dualidade, estão falando de certo e errado. É errado fazer certas coisas porque isso vai-nos perturbar a nós e aos outros, é necessário exercer o julgamento. Isso é julgamento e é dualidade, existe o certo e o errado, o bom e ruim, o bem e mal. Isso é a vida quotidiana.

A não-dualidade, o facto de em termos absolutos não existir nem bem nem mal, é algo bem avançado, que está além da prática dos preceitos. A maioria dos praticantes está no 1º estágio, de tentar seguir os preceitos.

O 1º estágio é seguir os preceitos, é o caminho da virtude, é uma escolha entre o bem e o mal.

No 2º estágio, se se desenvolve uma mente compassiva, a mente de bodhicitta, naturalmente os preceitos estão incorporadas. Por exemplo você não vai enganar porque não é egoísta e quer o bem do outro, você não vai roubar porque isso causaria sofrimento a outras pessoas, você vai evitar matar no máximo possível porque causa sofrimento a outros seres, você não vai usar mal a sua sexualidade porque se for mal usada causa sofrimento a outras pessoas, você não vai usar drogas porque vai causar prejuízo a você, a todos os seres e a toda a sociedade.

O 3º estágio da prática é a não-dualidade, quando bem e mal foram ultrapassados e uma visão equânime olha todas as coisas. Mas essa é uma condição muito alta, não é a condição do praticante normal, é a condição daqueles que atingiram um grande esclarecimentos.

É preciso ter cuidado para não incorporar o conceito da não-dualidade que se lê e estuda, não se pode pensar que é aplicável no mundo relativo. O mundo relativo é o mundo do bem e do mal. Só no mundo absoluto é que estamos falando de não-dualidade. E isso às vezes causa engano aos praticantes do Zen que leram sobre dualidade e querem aplicar em tudo. Que dizem que não existe bem e mal e então deduzem que tudo é permitido e que podem agir de qualquer maneira. Essa noção frequentemente aparece em praticantes do Zen, mas é completamente sem sentido, usa-se isso como desculpa para não cumprir os preceitos, por pessoas que estão completamente mergulhadas no mundo e querem usar a não-dualidade como desculpara para a licenciosidade.

Saiba mais (links externos):

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