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Desvio Espiritual: a supressão de sentimentos e emoções e a falsa positividade

O desvio ou esquiva espiritual, também conhecido como bypass espiritual, é algo bastante comum nos praticantes espirituais, pode surgir até em grupos bem orientados, e tem tendência a agravar-se mais naqueles que não têm um bom acompanhamento. O termo foi criado nos anos 80 pelo psicoterapeuta John Welwood, ao reparar que muitas pessoas da sua comunidade budista estavam a usar ideias e práticas espirituais de forma desajustada.

As características do desvio espiritual incluem:

  • Utilização de ideias e práticas espirituais para contornar ou evitar emoções e sentimentos;
  • Não trabalhar com os sentimentos e emoções de forma honesta;
  • Não lidar honestamente com as feridas psicológicas, medos e problemas;
  • Reprimir os impulsos negativos e não trabalhar com eles de forma honesta;
  • Evitar enfrentar problemas emocionais não resolvidos e feridas psicológicas;
  • Evitar desafios difíceis ou dolorosos para proteger o ego;
  • Supressão de aspetos da identidade;
  • Estagnação do desenvolvimento emocional;
  • Atrofia emocional;
  • Fuga emocional;
  • Confundir o desapego e equanimidade com indiferença;
  • Sentimento de superioridade em relação aos outros;
  • Ver tudo com um filtro de positividade e felicidade inexistente (negligência que os aspetos mais obscuros da vida e do mundo não desaparecem só porque são ignorados, e devido a isso muitas vezes até aumentam; se você plantar sementes de laranjeira, bem pode pensar positivo com o objetivo de nascer um limoeiro, mas o resultado vai ser uma laranjeira).

Ou seja, o praticante espiritual coloca uma “máscara espiritual”, está com uma cegueira, a se enganar a si próprio e a negligenciar a realidade. E é muito fácil a pessoa se enganar e engendrar todo o tipo de justificação.

“Quando estamos desviados espiritualmente, muitas vezes usamos o objetivo de despertar ou liberação para racionalizar o que chamo de transcendência prematura: tentar nos elevar acima do lado cru e confuso da nossa humanidade antes de enfrentá-la totalmente e fazer as pazes com ela”, afirmou John Welwood.

Barry Magid, professor budista da escola Soto Zen e psicanalista, diz que é possível até mesmo para pessoas com uma visão espiritual profunda ficarem presas a comportamentos prejudiciais nas suas vidas pessoais. Isso acontece quando os insights são isolados numa espécie de bolha e não integrados à vida cotidiana e aos relacionamentos. Até mesmo professores budistas de renome caíram nesse desvio e foram protagonistas de escândalos, nomeadamente escândalos sexuais.

Os médicos na area da psicologia não consideram o desvio espiritual prejudicial quando acontece de forma temporária para lidar com situações emocionais, o problema é quando esse desvio se manifesta a longo prazo. As consequências negativas de ignorar ou suprimir problemas de saúde mental podem incluir:

  • Necessidade de controlar excessivamente os outros e a si mesmo;
  • Vergonha;
  • Ansiedade;
  • Fobia da raiva;
  • Pensamento dicotómico,
  • Confusão emocional;
  • Tolerância exagerada a comportamentos impróprios;
  • Codependência;
  • Bondade compulsiva ou compaixão cega;
  • Obsessão ou vício;
  • Narcisismo espiritual;
  • Isolamento;
  • Fidelidade cega a professores carismáticos;
  • Desprezo pela responsabilidade pessoal (por exemplo a pessoa chega sempre atrasada ao emprego e justifica com “nada acontece por acaso, o universo já é perfeito assim, tudo é ilusão, sou um espirito livre”; nos vários tipos de relacionamentos quando há conflitos coloca sempre a responsabilidade nos outros e não olha para a sua cota-parte de responsabilidade; não assume as suas responsabilidades e não se melhora);
  • Julgamento debilitante sobre a própria negatividade;
  • Delírios por ter alcançado um “nível superior de ser”;
  • Incorporar uma personagem que não existe (é como estar a desempenhar na vida real um papel de ator de um filme ou peça de teatro);
  • Desenvolvimento desequilibrado (inteligência cognitiva muito à frente da inteligência emocional);
  • Os impulsos, sentimentos e emoções negativas suprimidas continuam no inconsciente empurrando a pessoa para ações negativas.

Em alguns casos muito extremos, as pessoas ficam tão perdidas nas suas bolhas espirituais que as suas vidas se tornam uma fantasia iluminada. Elas podem exibir sintomas de psicose ou se envolverem em comportamentos de risco pensando que o seu poder espiritual as protegerá.

Provavelmente, todos nós nos envolvemos ou nos envolveremos num desvio espiritual em algum momento, em menor ou maior grau. Quando estivermos nessa situação, iremos reconhecê-la? E como podemos evitar entrar nessa situação?

Se a sua compostura espiritual se quebra facilmente em momentos de stress, se os seus relacionamentos outrora saudáveis se estão desintegrando, se vê apenas um “mundo cor-de-rosa”, se identificou em si algumas das características desviantes referidas acima, é um sinal de alerta.

No budismo a iluminação não significa que você não se vai molhar na chuva e não precisa de uma vacina contra doenças. Existe uma diferença entre por exemplo sentir raiva e conseguir manter uma atitude equânime, e sentir raiva e ser arrastado pela raiva, dominado pela raiva, e alimentar a raiva, chegando ao ponto de cometer ações não virtuosas. Quando ficamos dominados pelas emoções negativas, a prática budista ajuda a sairmos delas mais facilmente e mais rápido, a não ficarmos tanto tempo prisioneiros dessas emoções, mas até o Dalai Lama afirma que sente raiva. Nós não somos robots, sentir emoções negativas faz parte do ser humano. É necessário as reconhecer e perceber o que elas estão tentando nos dizer. Além disso, nós somos meros praticantes, ainda não somos Budas.

Gostemos ou não, as partes feias da nossa humanidade são onde o crescimento pode ocorrer. A monja budista Pema Chödrön afirma que: “Sentimentos como deceção, vergonha, irritação, ressentimento, raiva, ciúme e medo… são realmente momentos muito claros que nos ensinam onde é que estamos nos segurando. Eles são como mensageiros que nos dizem, com uma clareza assustadora, exatamente onde estamos presos.”

Muitas emoções servem como bandeiras indicando uma oportunidade para aprendermos. Desafio, tristeza, dor, mudança, desconforto, conflito, ódio, depressão e ansiedade são caminhos para o crescimento e a mudança. Nós como humanos também cometemos erros, e às vezes é preciso mesmo passar por esses erros, ainda que isso não deva servir como desculpa para continuarmos a cair sempre no mesmo. É necessário reconhecer os nosso erros a fim de aprender com eles, é necessário reconhecer os sentimentos e olhar para essas emoções de forma corajosa e honesta. Ser humano significa enfrentar o sofrimento.

Referências: Wikipédia, Learn Religions, Huffpost, Human Parts.

Leitura complementar:

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1 comment

  1. Certo. “Ser humano significa enfrentar o sofrimento “. Sabemos disso, a maioria sabe que precisa reagir, sacudir a poeira e dar a volta por cima. No entanto existe um limite de resistência para a corda mais grossa. Mesmo para os ombros mais fortes, existe uma cruz mais pesada que não suportará. Não estamos preparados para flutuar à tona de todos os naufrágios nem permanecermos indefinidamente firmes na árvore salvadora enquanto observamos as tsunamis levarem o mundo de roldao e todos nele.
    Existe um limite até onde se podem eclodir todas as dores, se despedaçar todos os ossos e se experimentar todas as mortes. Além disso é o caos ou a ressurreição.

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