Música Opinião e Perspetivas

Análise de “Estou Além”, de António Variações, segundo a perspetiva budista

De acordo com o Buda, qual é a solução para este mal existencial que António Variações expressa na sua célebre canção?

Por Manuel Sanches, para o Olhar Budista.

A música de António Ribeiro, de nome artístico António Variações, não é desconhecida por nenhum português. Com êxitos como Canção de Engate, O Corpo É Que Paga, e P’ra Amanhã, a excentricidade e talento musical do célebre autor são ainda hoje ícones da música portuguesa. Variações floresceu e deixou a sua marca em Portugal na década de oitenta, pasmando e ultrajando as gerações anteriores com a sua estética vibrante e atitudes pouco convencionais, e criando uma legião de fãs e admiradores por onde quer que passasse. Em 2019 foi honrado com Variações, um filme dedicado à sua biografia enquanto pessoa e enquanto artista.

Estou bem, aonde não estou, porque eu só quero ir, aonde não vou

Uma das suas músicas mais famosas (ou mesmo a mais famosa de todas) chama-se Estou Além. Mesmo que muita gente não associe o nome à canção, já todos certamente ouvimos os icónicos versos: “Estou bem, aonde não estou, porque eu só quero ir, aonde não vou.” Apesar do ritmo e acordes alegres, a letra desta música dedica-se a uma realidade perturbadora: António Variações expressa uma insatisfação inquieta e ávida que o assombra e que é, possivelmente, de familiaridade extrema para muitos de nós. Apesar da melodia alegre, é impossível não criar uma ligação empática com o sentimento de desespero que o autor expressa:

Não consigo dominar
Este estado de ansiedade
A pressa de chegar
P'ra não chegar tarde

Variações descreve um estado mental que o impede de estar contente com as companhias que mantém, mantendo-o numa busca constante por alguma satisfação prolongada nas suas relações interpessoais, sempre na expectativa de conseguir o objeto idealizado da sua ânsia, que “nunca viu”:

Não sei do que é que eu fujo
Será desta solidão?
Mas porque é que eu recuso
Quem quer dar-me a mão?

Vou continuar a procurar
A quem eu me quero dar
Porque até aqui eu só

Quero quem, quem eu nunca vi
Porque eu só quero quem
Quem não conheci

(…)

FOMO (fear of missing out), o medo de ficar de fora

Esta ânsia impede-o, igualmente, de se sentir satisfeito nos lugares em que se encontra. Na base desta insatisfação há uma incerteza profunda, uma confusão gerada pela dúvida e ignorância de “não saber do que é que foge” e de “não conseguir compreender” o que sente. Ainda assim, mesmo sabendo que não percebe porque é que age da maneira que age, Variações cede à volatilidade constante que o move, motivado pela sensação de estar a perder algo, ou que algo falta. O que o artista expressa nas seguintes estrofes é, de algum modo, muito semelhante à ansiedade a que hoje chamamos FOMO (fear of missing out):

Esta insatisfação
Não consigo compreender
Sempre esta sensação
Que estou a perder

Tenho pressa de sair
Quero sentir ao chegar
Vontade de partir
P'ra outro lugar

“Querer sentir ao chegar vontade de partir para outro lugar” sugere também uma espécie de conformismo face a este “estado de ansiedade,” um prazer perverso na agitação constante da busca perpétua por algum tipo de objeto de prazer ou satisfação. Nas estrofes que se seguem, mais uma vez, o autor vê-se vinculado à expectativa de um objeto de desejo idealizado, neste caso, um lugar perfeito, que não é capaz de encontrar e assim saciar a sua avidez:

Vou continuar a procurar
O meu mundo
O meu lugar
Porque até aqui eu só

Estou bem aonde eu não estou
Porque eu só quero ir
Aonde eu não vou

(…)

Esta última estrofe do refrão é repetida várias vezes ao longo da letra, enfatizando a inquietação frenética do autor face à sua insatisfação. Este estado mental sentido por António Variações pode ser facilmente comparado a algumas questões centrais dos ensinamentos mais básicos do budismo face à insatisfação humana. O Buda não falou deste tipo de sentimento apenas como mais um estado mental, mas sim como uma espécie de doença existencial inerente à condição humana, a insatisfação constante que a maior parte de nós experiencia diariamente. Será que podemos dizer que temos tudo o que queremos, e que estamos satisfeitos com o que temos? Ao dizermos que sim, se o dissermos, será que estamos a ser sinceros connosco próprios? O que parece caracterizar a vida da maior parte das pessoas é uma insatisfação constante como a descrita em Estou Além de António Variações.

Ignorância (avijjā), desejo obsessivo (tanha) e insatisfação (dukkha), conceitos budistas no sentimento de Variações

O sentimento acerca do qual o artista canta pode ser dividido em três elementos principais, tendo em conta alguns conceitos do budismo.

O primeiro é uma ignorância face aos mecanismos que motivam este modo de viver. Como Variações diria, é um “não saber de que se foge” e “não conseguir compreender” a nossa insatisfação. Em pali chama-se avijjā a esta ignorância ou, literalmente, “não-visão.” A não-visão está relacionada com a incompreensão das leis naturais da realidade, como a impermanência e a insubstancialidade dos fenómenos. Será que qualquer objeto de desejo, seja um estado mental agradável, a companhia de uma pessoa querida, ou um carro novo, é fenómeno cuja satisfação dele resultante pode durar para sempre? E será que as situações ou causas do nosso sofrimento, sejam internas ou externas, podem ser evitadas indefinidamente e constantemente? Será que qualquer fenómeno tem substância própria, enquanto entidade permanente, perpetuamente satisfatória, singular ou não-composta, e existindo independentemente de tudo o resto? Querer tirar satisfação estável exclusivamente de certos fenómenos específicos que são, por natureza, impermanentes e insubstanciais é avijjā. Segundo o Buda, a ignorância é a raiz do sofrimento, juntamente com as duas outras raízes prejudiciais que dela se originam: o apego ao desejável, e aversão ao indesejável.

O segundo elemento é a sede constante por um objeto de satisfação, o combustível que mantém a busca perpétua pelo prazer do agradável e pelo evitamento do desagradável. Como o cantou Variações, é uma “pressa de chegar,” um “continuar a procurar,” um “sentir ao chegar vontade de partir para outro lugar.” Quando finalmente conseguimos o objeto que tanto procuramos, podemos constatar que a satisfação que nos dá é impermanente, seja pela sua impermanência natural ou pela dimensão de desinteresse que o objeto ganha uma vez que deixa de ser novo. “Não, afinal não é isto que me vai fazer realmente feliz,” podemos constatar. O que se segue?

No seu livro Direct Realization, Ajahn Sumedho conta a história de um brinquedo que desejou muito quando era uma criança, e das conclusões que tirou da sua relação com ele:

“I remember as a child wanting a certain toy. I told my mother that if she got me that toy I’d never want anything ever again. It would completely satisfy me. And I believed it, I wasn’t telling her a lie; the only thing that was stopping me from being really happy then was that I didn’t have the toy I wanted. So my mother bought the toy and gave it to me. I managed to get some happiness out of it for maybe five minutes… and then I had to start wanting something else. So in getting what I wanted I felt some gratification and happiness, but then desire for something else arose. I remember this so vividly because at that young age I really believed that if I got that toy I wanted, I would be happy forever… only to realize that ‘happiness forever’ was an impossibility.”
Ajahn Sumedho, Direct Realization: The Anthology, Volume 3 (Hertforshire, England: Amaravati Publications, 2014), 10.

(Lembro-me, enquanto criança, de querer um certo brinquedo. Eu disse à minha mãe que se ela me desse aquele brinquedo, eu nunca mais iria querer mais nada. O brinquedo satisfazer-me-ia completamente. E eu acreditei nisso, não estava a mentir; a única coisa que me estava a impedir de ser realmente feliz, naquela altura, era não ter o brinquedo que queria. Então a minha mãe comprou-me o brinquedo e deu-mo. Eu consegui tirar alguma felicidade dele por talvez cinco minutos… e depois comecei a querer outra coisa. Por isso, em conseguir o que queria, eu senti alguma gratificação e felicidade, mas depois o desejo por outra coisa surgiu. Lembro-me disto tão vividamente porque naquela jovem idade eu acreditei realmente que se eu conseguisse aquele brinquedo, seria feliz para sempre… apenas para perceber que ‘felicidade para sempre’ era uma impossibilidade.)

Se pensarmos nas nossas memórias de infância, talvez nos passamos relacionar diretamente com o que Ajahn Sumedho descreve. A conclusão da sua história é muito pertinente, e é algo que podemos verificar com a nossa própria experiência. Querer só coisas boas na nossa vida ou querer estar sempre feliz não parece realista. Projetamos a felicidade total num futuro idealizado: “Não, quando eu tiver x é que eu vou ser realmente feliz.” E depois x chega, e afinal não era aquilo… E podemos passar a nossa vida inteira nesta busca neurótica, como um cão a perseguir a sua própria cauda sem nunca a conseguir apanhar. Buda chamou taṇhā a esta “sede,” esta ânsia. Como o diria Variações, é o “só se querer quem nunca se viu” e o “só se estar bem onde não se está.”

É inegável que este desejo tem o seu lugar nas nossas vidas, e o budismo não problematiza o desejo em si. Sem ele, os nossos antepassados não teriam sobrevivido. O desejo por comida, bebida, abrigo, sexo e outras coisas importantes é inegavelmente fundamental para a sobrevivência de qualquer espécie. Também o desejo de fazer coisas boas pelos outros e por nós mesmos é algo muito positivo na perspetiva do budismo. O problema surge quando o desejo se transforma nesta “sede” autocentrada e se desenvolve demasiado. Aí surgem consequências funestas: uma desesperante insatisfação constante e o sentimento ilusório de que algo está, fundamentalmente, em falta.

Em algumas tradições budistas, esta avidez é representada iconograficamente através dos preta. Os preta são criaturas da mitologia budista cujo nome, geralmente, se traduz como “espíritos famintos.” São seres ávidos que estão num estado constante de insatisfação extrema – uma versão hiperbolizada da condição humana da ânsia ávida. São representados com barrigas gigantescas e bocas muito pequenas, com pescoços muito compridos dentro dos quais a comida que ingerem entra em combustão e desaparece antes de chegar aos seus estômagos. Estes seres estão constantemente cheios de fome e, independentemente da quantidade de comida que consumam, não conseguem saciar-se.

O terceiro elemento do sentimento de Variações e, de algum modo, o culminar da ignorância e da ânsia ou do desejo obsessivo, é a própria insatisfação, à qual em pali se chama dukkha, por vezes também traduzida como “sofrimento.” É o “estado de ansiedade” constante acerca do qual Variações canta, “esta insatisfação” que Variações não consegue compreender, a “sensação de que está a perder” constantemente. No seu primeiro discurso, o Buda diz o seguinte em relação a dukkha:

“Now this, bhikkhus, is the noble truth of suffering: birth is suffering, aging is suffering, illness is suffering, death is suffering; union with what is displeasing is suffering; separation from what is pleasing is suffering; not to get what one wants is suffering; (…)
Now this, bhikkhus, is the noble truth of the origin of suffering: it is this craving which leads to renewed existence, accompanied by delight and lust, seeking delight here and there; that is, craving for sensual pleasures, craving for existence, craving for extermination.”
SN 56.11 “Dhammacakkappavattana Sutta,” In The Connected Discourses of the Buddha: A New Translation of the Saṃyutta Nikāya,volume II, translated by Bhikkhu Bodhi (Somerville, MA: Wisdom Publications, 2000), 1844-1845.

(Esta, monges, é a Nobre Verdade do sofrimento: o nascimento é sofrimento, o envelhecimento é sofrimento, doença é sofrimento, a morte é sofrimento; união com o que é desagradável é sofrimento; separação do que é agradável é sofrimento; não se ter o que se quer é sofrimento; (…)
Esta, monges, é a Nobre Verdade da origem do sofrimento: é a ânsia que leva à renovação da existência, acompanhada de prazer e desejo, procurando prazer aqui e ali; isto é, ânsia por prazeres sensuais, ânsia por existência, ânsia por aniquilação.)

A solução proposta pelo Buda para o mal existencial de António Variações

De acordo com o Buda, qual é a solução para este mal existencial que António Variações expressa na sua célebre canção? É a terceira Nobre Verdade, a Verdade da cessação do sofrimento, a extinção da chama da insatisfação a que Buda chamou nibbāna, em pali, ou nirvāṇa, em sânscrito. Esta libertação espiritual pode ser realizada praticando a quarta Nobre Verdade, que é o Nobre Caminho Óctuplo. Este Caminho é o conjunto de práticas formuladas pelo Buda para os seus discípulos. É a própria prática do budismo na sua base, que implica o desenvolvimento de sabedoria, de uma disciplina ética, e da prática da meditação. Um dos grandes objetivos do desenvolver deste Caminho é o treino da equanimidade, ou upekkhā, em pali.

Equanimidade é a habilidade de receber com igual abertura coisas agradáveis e coisas desagradáveis. Grande parte da meditação sentada é um treino formal da equanimidade: habituar a mente a não reagir com apego ou aversão aos diferentes fenómenos que vão surgindo na consciência. A equanimidade não é uma indiferença nem uma neutralidade fria face à vida, mas sim a capacidade de viver numa plenitude tão profunda que permita também a integração e a experiência plena de fenómenos desagradáveis, como a insatisfação constante de António Variações, e as causas internas e externas dessa mesma insatisfação, como algo que faz parte da vida. É também um silenciar desta própria insatisfação, uma aceitação radical de tudo o que surge na vida sem julgar ou discriminar a experiência presente com base numa busca constante do que poderia ser melhor. Isto separa-nos de tudo o que já está bem aqui e agora. Para além de tudo isso, é a sabedoria de reconhecer todos os fenómenos (incluindo os desagradáveis) como impermanentes. Qualquer insatisfação, dor, desejo, ânsia, ou sofrimento humano é, por natureza, impermanente. Surge, manifesta-se, e desaparece. Nada dura para sempre, porque a natureza da realidade condicionada é transformação e mudança. O problema não são os fenómenos interpretados por nós como causas de dor e do desconforto em si. É o apego que os identifica como eternos e realmente substanciais que perpetua a experiência do sofrimento. A tendência para a busca em si não é algo problemático, pois é um mecanismo básico e natural da mente pensante. Mesmo numa prática espiritual, a procura é um elemento saudável e essencial. Viver sem procurar coisas que nos tragam benefícios colocar-nos-ia numa posição de conformismo ao que está mal, tanto a um nível individual como social e ambiental. Viver sem desejo, como mencionei, arriscaria a própria sobrevivência de qualquer ser vivo. O verdadeiro problema é quando os impulsos da mente são levados demasiado a sério e tomados por realidades pessoais importantíssimas, quando a busca ou os seus objetos de desejo se tornam numa obsessão. É o que acontece com a grande maioria de nós. A boa notícia é que aqui e agora, segundo o budismo, já há razões para se estar satisfeito e contente, não é preciso procurar noutro lugar. Basta aprendermos gradualmente a reconhecer isso. A atitude do budismo face a esta questão poderia ser expressa mais ou menos desta seguinte maneira:

Não preciso de dominar
Este estado de ansiedade (porque se eu não me apegar a ele com aversão e o reconhecer enquanto impermanente e o receber com equanimidade, ele dissolver-se-á por si só)
Não há pressa de chegar
Não há onde chegar tarde

A insatisfação é do que eu fujo
O sentimento de incompletude, de solidão
Mas não é preciso recusar
O que me causa aversão

Não é preciso desesperar
A procurar a quem eu me quero dar
Porque já, aqui, eu…

Posso estar bem, com quem eu já vi
Porque eu não preciso absolutamente de
Quem não conheci

(…)

Esta insatisfação
Há que a estudar e compreender
Esta sensação
De estar a perder

Mas não há pressa de sair
Podemos sentir ao chegar
Vontade de partir
Mas não é preciso ir para outro lugar

Não é preciso continuar a procurar
O meu mundo
O meu lugar
Porque aqui eu já

Estou bem aonde eu já estou
Porque não é preciso ir
Aonde eu não vou

(…)

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