Opinião e Perspetivas

Representações erróneas do budismo em “Os Simpsons”

Os Simpsons são um clássico da história da televisão, com personagens icónicas reconhecidas em todo o globo. Devido à popularidade de obras como essa, os ocidentais têm o primeiro contacto com o budismo, o que pode levar a uma visão errada do que é realmente o Budadharma. Em vários episódios de Os Simpsons o budismo é retratado de forma imprecisa e superficial, misturando conceitos e simbologia de diferentes tradições.

Por Manuel Sanches, para o Olhar Budista.

Desde o fim dos anos 90 que a comédia animada Os Simpsons tem solidificado o seu lugar como clássico de televisão. Com já mais de 30 temporadas, a família americana é sem dúvida um dos conjuntos de personagens mais icónicos e reconhecíveis por todo o globo.

Exatamente por esta questão e pela popularidade intemporal da série, grande parte dos ocidentais têm o seu primeiro contacto com a cultura asiática através de representações satíricas em séries como Os Simpsons. Isto pode levantar algumas questões problemáticas. O documentário The Problem With Apu, de 2017, mostra como esta representação satírica, embora inofensiva nas suas intenções, pode influenciar de maneiras negativas a representação de outras culturas na visão ocidental, neste caso, como a caracterização de Apu, o personagem indiano da série, ajudou a perpetuar estereótipos negativos e contribuiu para o fomento do racismo contra as comunidades com origens na Ásia do Sul nos EUA.

Neste breve artigo, dedicar-me-ei a algumas das representações erróneas que Os Simpsons fazem em relação à cultura budista. Penso que é importante refletir no impacto que o entretenimento disseminado em massa tem na nossa maneira de pensar e na maneira como pode simplificar ou reduzir os grupos que pretende representar, mesmo com o objetivo genuíno e altruísta de fazer rir. É ótimo haver a liberdade de expressão para se poder rir e gozar livremente com qualquer tópico. Por vezes as piadas mais engraçadas são as que lidam com os tópicos mais sérios – como a religião – e pode ser muito saudável rir destes temas mais pesados nos quais nem todos se atrevem a tocar. O humor é sem dúvida é importante, mas fazer humor ou abordar certos temas de uma maneiras mais leve para fins cómicos não significa que se deva pôr de parte a minuciosidade ao representá-los. Rir de ou gozar com uma tradição religiosa é algo legítimo e pode ser extremamente valioso em termos de crítica social, mas fazer humor com base em representações imprecisas de um movimento religioso faz com que os comediantes percam totalmente a sua credibilidade.

She of Little Faith – Temporada 13, Episódio 6

Este é, sem dúvida, o episódio mais densamente recheado com conteúdo relacionado com o budismo. O Dharma é um tópico central neste episódio, pois é aqui que Lisa Simpson abandona a sua fé cristã e se torna budista, algo que desde aí se tornou canónico na continuidade da série.

Ao procurar uma nova fé, Lisa visita o templo budista de Springfield. A representação do templo neste episódio é muito inconsistente e mostra um conhecimento muito superficial acerca da tradição budista. Lá Lisa é recebida por Lenny e Carl, dois amigos do seu pai Homer e Richard Gere – uma celebridade que é, de facto, famosamente budista.

No altar do templo está uma gigante estátua de Budai, uma figura do budismo chinês tipicamente confundida com o Buda Gautama e pouco provável de encontrar enquanto estátua principal no altar de qualquer tradição budista.

Lenny e Carl praticam meditação com as mãos viradas para cima e sobre os joelhos com os indicadores e polegares juntos – um mudra associado ao Yoga, e não ao budismo. Fazem-no sem zafu (almofada de meditação), um apoio usado em quase todos os centros budistas, e têm as pernas numa posição muito instável na qual seria difícil estar sentado durante muito tempo. Richard Gere está a cuidar de um jardim Zen de areia, embora não seja claro que este templo pertença à tradição Zen: não há sinais de elementos visuais desta tradição japonesa e o ambiente no templo é desorganizado e casual, o que contrasta com a disciplina tradicional e meticulosamente organizada da tradição Zen.

Depois do Dalai Lama surgir como tópico de conversa, Carl diz que o Dalai Lama é “The 14th reencarnation of the Buddha Avalokiteshvara” (A décima quarta reencarnação do Buda Avalokiteshvara). Existem dois problemas com esta frase: a primeira é que, geralmente, não se fala de reencarnação no budismo, mas sim de renascimento. Estar a fazer uma distinção tão meticulosa entre os dois pode parecer mesquinho ou pretensioso, mas tem a sua razão de ser. Um dos ensinamentos principais do budismo é a doutrina do não-eu, que defende que a identidade individual é uma ilusão, assim como qualquer possibilidade de uma alma individual, eterna, singular, e indestrutível. A reencarnação implica uma alma que reencarna (ou seja, literalmente, que se torna carne de novo) ao longo de várias vidas e mortes. Segundo o Buda, o que renasce não é uma alma individual semelhante ao que se fala no sentido tradicional cristão ou hindu, mas sim um conjunto de várias causas e condições que resultam nos vários processos e fenómenos que constituem o ser pessoal e que vão renascendo ao longo das várias vidas segundo a visão tradicional do samsara. O segundo problema é que apesar do Dalai Lama ser, de facto, tradicionalmente considerado pelos tibetanos como uma manifestação do compassivo Avalokiteshvara, este não se trata de um Buda mas sim de um bodhisattva. Um bodhisattva é um ser que, movido pela compaixão, recusa o Despertar total para poder ajudar a aliviar o sofrimento dos seres no samsara. Ou seja, ainda não é um Buda, é aquele que será um Buda e está a caminhar para isso, mas ainda não o é.

The Simpsons-Lisa Becomes a Buddhist HQ 4:3

Ao voltar para sua casa Lisa lê um panfleto que Richard Gere lhe ofereceu. O panfleto, que Lisa lê alto, contêm informação que não está errada, para todos os efeitos. Está no entanto um pouco desorganizada ou incompleta. Por exemplo, Lisa lê “Nirvana is achieved through right views and right speech” (O Nirvana é atingido através de visões corretas e fala correta). Apesar de esta frase não estar propriamente incorreta de acordo com a doutrina budista, soa estranha. Parece ser o início ou parte da formulação do Nobre Caminho Óctuplo, mas fica apenas por dois dos elementos, um dos quais é mencionado no plural.

Há no entanto alguns pormenores que não estão incorretos e que dão algum charme ao episódio. Lisa decide plantar a sua própria árvore Bodhi no quintal e é possível observar como os artistas desenharam as pontas das folhas alongadas, tal como uma figueira indiana verdadeira.

500 Keys – Temporada 22, Episódio 21

No episódio 500 Keys Lisa descobre uma divisão secreta na sua escola. Antes de decidir entrar, exclama: “Get thee behind me, Namuche!” (Põe-te atrás de mim, Namuche!). De seguida, vira-se para um colega e explica “That’s the Buddhist Satan” (É o Satanás budista). Apesar deste ser um título dado ao “Satanás Budista” – por exemplo, em pali, “Namuci” – é muito estranho que os argumentistas da série tenham-no escolhido, pois o “diabo” budista é transversalmente e principalmente conhecida por “Mara.” Esta questão, assim como outras entradas neste artigo, mostra que os argumentistas limitaram-se a uma pesquisa superficial acerca da mitologia budista.

Simpsons season 22 episode 21 “500 keys”

Buda Gautama representado como Budai

Ao longo de vários episódios da série, o Buda Gautama aparece várias vezes para efeito cómico. No entanto, ele é sempre representado visualmente como Budai, o “Buda gordo.” As duas figuras são tipicamente confundidas no mundo ocidental, mas é de enfatizar que o Buda Gautama enquanto figura principal do budismo e o “Buda gordo” não são a mesma pessoa. Para compreender esta questão a fundo, visite: O Buda era gordo? Qual a origem do Buda sorridente?

No episódio de Natal Tis The Fifteen Season (temporada 15, episódio 7), o Buda aparece numa fantasia de Homer. A sua aparência é a de um homem gordo, careca e com feições da Ásia oriental. Está a conduzir um descapotável com uma camisola natalícia e diz: “Presents are material goods, and attachment to material goods kills the soul” (Os presentes são bens materiais, e o apego aos bens materiais mata a alma), antes de começar a acelerar, fugindo à polícia.

What Would Buddha Do ?

A absurdidade da situação atinge o efeito cómico, mas esta fala revela a tendência limitada das representações dos ensinamentos do Buda no entretenimento ocidental como algo quase exclusivamente dedicado ao problema do apego aos bens materiais. Isto é redutor, porque na tradição budista a questão do apego é muito mais ampla e complexa do que isso. Adicionalmente, como foi referido antes, o Buda negou a existência de uma alma, logo pode ser contraditório que em Os Simpsons ele diga que “o apego aos bens materiais mata a alma.” No entanto, é claro que “alma” aqui pode referir-se simplesmente ao caráter, por exemplo. No episódio She Used To Be My Girl (temporada 16, episódio 4), quando confrontada com um desastre natural, em pânico, Lisa reza ao Buda, a Jesus, e ao Spongebob.

The Simpsons – Buddha, Jesus, SpongeBob

Os três aparecem depois juntos sobre as nuvens no Céu. Mais uma vez, Buda está representado como um homem gordo, careca, de tronco nu e com feições da Ásia oriental, alguns dos atributos de Budai.

Noutros episódios Homer, o pai da família (que sofre de obesidade) é comparado várias vezes ao Buda. No episódio Goo Goo Gai Pan (temporada 16, episódio 12) os Simpsons visitam a China, e Homer disfarça-se de estátua de “Buda” (ou Budai, na verdade) de modo a distrair os guardas de um edifício onde a família precisa de entrar. Nessa cena Homer parece estar a fazer um mudra geralmente associado ao Buda Amithaba.

Golden Budha Homer

No episódio E My Sports (temporada 30, episódio 17) os Simpsons viajam à Coreia do Sul, onde visitam um templo budista. Mais uma vez, Homer é incorretamente comparado pelos monges ao Buda, quando este está sentado junto à estátua principal do templo (de Budai). Há também outras inconsistências neste episódio, por exemplo, no templo fazem-se e destroem-se mandalas de areia, uma prática associada sobretudo ao budismo tibetano, e não necessariamente às tradições coreanas.

https://youtu.be/CpbrdzOBKbY

No episódio Todd, Todd, Why Hast Thou Forsaken Me? (temporada 31, episódio 9) o Buda é apresentado – talvez pela primeira vez na história da série – de uma maneira precisa e adequada, na sua forma iconográfica tradicional. “He’s lot weight!” (Ele perdeu peso!), explica Lisa. A sua personalidade é hilariantemente apresentada como a de um homem agressivo, impaciente e grosseiro. Quando Lisa o desilude ao não conseguir converter o seu vizinho Todd Flanders ao budismo e lhe pede mais uma oportunidade para conseguir um novo seguidor, o Buda ralha-lhe, dizendo: “Do you think I got to be Buddha by being patient?!” (Achas que eu cheguei a Buda sendo paciente?!).” Esta situação só por si poderia ser uma inconsistência: o Buda proibiu que o Dharma fosse partilhado sem que um ouvinte interessado em questão o pedisse, logo a conversão não é propriamente uma prática do budismo, pelo menos desta maneira. No entanto, reconheço o bom humor desta situação e penso que esta questão resulta enquanto elemento cómico, sobretudo emparelhada com a hilariante impaciência grosseira da versão do Buda deste episódio. Lisa tenta desculpar-se mostrando ao Buda que conseguiu converter Ralph Wiggum – o excêntrico e pateta filho do chefe da polícia Clancy Wiggum. Ao início Buda fica frustrado, mas depois Ralph exclama “Everything is nothing!” (Tudo é nada!) ao que o Buda responde, espantado: “Kid, you just blew my mind!” (Puto, agora impressionaste-me!). Penso que este é um excelente exemplo de uma sátira ao budismo bem conseguida, engraçada e perspicaz na sua absurdidade, visualmente consistente e esteticamente apelativa.

The Simpsons – Todd, Todd, Why Hast Thou Forsaken Me

My Way Or The Highway to Heaven – Temporada 30, Episódio 3

Neste episódio, na catequese, Lisa conta a história da princesa Siddmartha, uma versão feminina de Siddhartha Gautama. No entanto, esta narrativa contada por Lisa imita apenas muito superficialmente a história da vida do Buda, e fica muito aquém da narrativa original e das suas implicações simbólicas e morais, mesmo na sua estrutura básica. Apesar do esforço e precisão dos animadores e dos argumentistas neste episódio ser consideravelmente maior do que no passado, existem ainda assim bastantes inconsistências. O estilo visual da história que, supostamente, se passa no tempo do Buda, está um algo inconsistente, misturando elementos visuais e iconografia de várias tradições asiáticas diferentes – da Índia, da China, e do Tibete, por exemplo – de um modo imperfeito e ligeiramente desleixado. O ambiente geográfico do episódio é montanhoso e remete para os Himalaias, o que faz sentido visto que Siddhartha Gautama nasceu no atual Nepal.

 Quando Lisa vai visitar a versão desta história do Professor Frink, o cientista de Springfield – que parece ser um astrólogo – na parede do seu observatório é possível ver um pintura semelhante ao bhavachakra (a roda da vida), uma pintura tradicional budista-tibetana que representa vários tópicos da doutrina budista. Nesta época, em que ainda não havia propriamente budismo (porque Buda ainda era o príncipe Siddhartha) e a origem do budismo tibetano ainda estaria a vários séculos, seria impossível que um bhavachakra estivesse em exposição numa parede na Índia antiga. Adicionalmente, esta versão está distorcida e imprecisamente representada, sendo que a roda está dividida num número de secções superior aos seis reinos da existência tradicionalmente representados. Trata-se de uma imitação da bhavachakra, pois vê-se claramente a cabeça de Mara, no topo, mas a pintura parece integrar nas secções da roda vários animais, talvez do zodíaco chinês – que nada tem a ver com o budismo, especialmente desta época. Contraditoriamente, junto à lareira do salão de jantar do palácio dos Simpsons, existem já duas estatuetas de Buda, uma de cada lado – e aqui, sim! Trata-se de facto da representação tradicional do Buda Gautama, apesar de estarem de joelhos, uma posição incomum destas representações. No entanto, isso seria impossível nesta fase da história da Índia, até porque as estátuas tradicionais do Buda são de origem helénica, e por esta altura os gregos e os indianos não teriam tido contacto, ou pelo menos não de uma forma significativa.

Mais uma vez, neste episódio, as ideias em torno do budismo estão excessivamente focadas na ligação com os bens materiais, um tópico que é de facto desenvolvido e que tem um lugar importante na tradição budista, mas que não é a questão central e fica muito aquém do que o budismo pretende ensinar.

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