Amor e Relacionamentos

A prática do Dharma nas relações românticas: uma reflexão

É tentador que os ensinamentos do Buda fiquem entre os limites do zafu: é mais fácil e dá menos trabalho. No entanto, não é assim que a prática espiritual budista está desenhada. Para um praticante budista, a prática do Dharma deve permear todos os aspetos da vida, inclusive as relações interpessoais. Só assim podemos praticar autenticamente e de um modo que enriqueça de facto a nossa vida e a dos outros.

Por Manuel Sanches, para o Olhar Budista.

O meu principal professor do Dharma aconselhou-me, uma vez, que eu encarasse a minha parceira romântica como fazendo parte do Sangha, mesmo que a pessoa em questão não seja budista e não pratique uma via espiritual. Daí inferi e compreendi que devia igualmente considerar a relação romântica com uma parceira amada como uma prática espiritual, um profundo treino da sabedoria e da ética. Uma relação romântica é um verdadeiro teste, pois permite verificar se e como o Dharma se tem vindo a integrar na nossa vida: se face à intensidade da relação íntima com o outro, praticamos realmente aquilo que dizemos praticar. Isto pode ser uma enorme lição de humildade. As relações românticas podem ser fontes de felicidade abundante e profunda, mas também podem trazer muito sofrimento às nossas vidas. Penso que devemos aproximá-las como um exercício contemplativo e com a mesma atitude não-reativa, altruísta e descentrada do “eu” com que nos sentamos a meditar, e tendo como maior aspiração a felicidade profunda de todos sem qualquer exceção. Na minha experiência, uma relação romântica é uma fonte de infinitos insights, lições e sabedoria que brotam através da experiência, através do sucesso e do erro. Permite-nos ver se estamos a ser íntegros na nossa prática ou, se por outro lado, estamos a ser hipócritas e iludidos. O espelho que é uma relação romântica permite-nos ver tal como somos enquanto indivíduo e enquanto casal, toda a luz e toda a sombra, como somos condicionados pelos que mais amamos, e condicionamos a sua vida para o bem, para o neutro, e para o mal.

Enquanto praticante leigo e parceiro romântico, quais são os valores mais importantes do Dharma que podem ser praticados para manter uma relação feliz, saudável, respeitosa e pura? Nesta breve reflexão apesento cinco virtudes budistas que considero serem de benefício extremo para uma relação.

1. As Quatro Brahmaviharas (As Quatro Incomensuráveis)

O quarteto das Quatro Incomensuráveis (ou brahmaviharas, em pali) é um conjunto de quatro qualidades consideradas de importância extrema na prática espiritual budista. São geralmente referidas no contexto da relação imparcial do praticante com todos os seres, sem qualquer exceção. Ainda assim, o nosso parceiro romântico faz parte de “todos os seres” e a reflexão e treino das brahmaviharas pode ser extremamente útil para que uma relação amorosa não perca a sua autenticidade. Sem elas, a relação romântica torna-se egoísta e possessiva e será motivada pelo automatismo conformado, pela insegurança mesquinha, e pelo desejo de possuir o outro, colocando a sua felicidade e bem-estar em segundo plano. Com elas, surge o amor verdadeiro, respeitoso, amigável, saudável e puro.

Metta e Karuna (a bondade amorosa e a compaixão)

Metta, em pali, é a primeira brahmavihara. Refere-se à bondade-amorosa, ou seja o desejo genuíno e sincero de que os outros sejam incondicionalmente felizes. Karuna, a compaixão, é a segunda das Quatro Incomensuráveis. É o desejo genuíno e sincero de que os outros estejam plenamente livres de sofrimento, seja de que maneira for. A bondade amorosa e a compaixão são lados opostos da mesma moeda e são os pilares mais básicos que sustentam qualquer relação interpessoal baseada no amor e respeito mútuo, seja familiar, de amizade, entre professor e aluno, ou romântica. Não é possível ter uma relação de sucesso sem que o seu núcleo seja o desejo de que o outro esteja feliz e livre de sofrimento. Se esta não for a motivação principal por detrás da nossa relação, está tudo perdido. Arriscamo-nos a ser motivados pelo desejo de possuir o/a nosso/a parceiro/a para fins utilitários dos nossos desejos egoístas. Não nos iremos preocupar realmente com o seu bem-estar e iremos entrar num modo autocentrado e defensivo de nos relacionar-mos com o outro. Sem metta e karuna não pode haver verdadeiramente aquilo a que chamamos amor.

Mudita (a alegria empática)

A alegria empática, ou mudita, em pali, é a capacidade de nos alegrar-mos profundamente e sinceramente com a felicidade do outro. Uma das maiores alegrias da companhia romântica é ter alguém com quem partilhar a nossa vida, as nossas histórias do passado e as novidades, as nossas derrotas e as nossas conquistas. Partilhar e demonstrar alegria genuína pelos feitos e vitórias da pessoa que amamos – mesmo que a pessoa esteja a ter sucesso de maneiras que nos causam inveja ou outro tipo de desconforto menor – é um indicador muito positivo de uma relação romântica baseada na amizade profunda.

Upekha (a equanimidade)

A equanimidade, a quarta e última das Quatro Incomensuráveis, é a capacidade da consciência de receber de modo imparcial e igual estímulos desejáveis e indesejáveis, agradáveis e desagradáveis, sem discriminar ou escolher entre um ou o outro. É claro que todos procuramos a felicidade, e ainda bem que é assim. Ninguém deseja o sofrimento. Todavia, ao longo da nossa vida diária e a longo prazo, uma certa dose de dor é inevitável.

Uma relação nem sempre é fácil, e implica necessariamente algum tipo de sofrimento. É importante refletir que as causas e condições que nos satisfazem numa relação romântica são impermanentes e estão sujeitas a mudança constante, sejam elas fenómenos específicos, ou a própria relação em si, como um todo. Qualquer relação está, à partida, destinada a terminar na separação do casal: mesmo que uma relação corra perfeitamente e sem qualquer problema durante uma vida inteira – e sabemos que nem sempre é assim – a morte eventualmente irá separar o casal que se ama.

Estar numa relação com equanimidade implica o exercício não assim tão fácil – mas extremamente recompensador, quando o conseguimos praticar – de estar disponível tanto para os sentimentos do amor, do carinho, do respeito, da conexão, do apoio, da amizade e da companhia, como também para as suas possíveis sombras, algumas das quais inevitáveis: o apego, a saudade, o ciúme, a insegurança, o medo da separação, o rancor, o entitlement, e muitos outros. Dentro do razoável e do saudável, estes sentimentos negativos são naturais. Todavia, identificarmo-nos com estas sombras e agir a partir delas e da perturbação que criam traz e perpetua certamente muito sofrimento a ambos os parceiros. É de enfatizar a importância da equanimidade, que nos pode permitir viver internamente e integrar as nossas qualidades mais autocentradas e negativas (e as dos nossos parceiros, quando estas emergem) sem agir sob o seu controlo e sem as exteriorizar de maneiras que causem sofrimento. A equanimidade permite também que vivamos uma relação plenamente, pois é inevitável viver apenas as partes desejáveis de uma relação sem ter de lidar com os seus opostos complementares mais indesejáveis, as sombras que mencionei. Viver plenamente uma relação romântica, dentro do razoável e do saudável, é viver também as dores inevitáveis que a ela são inerentes.

2. Sati (a atenção plena)

A atenção plena é a qualidade mais básica necessária para que a meditação possa ser praticada. No entanto, esta qualidade deve ser, idealmente, aplicada fora do contexto formal de meditação, no dia-a-dia do praticante. A atenção plena é a capacidade de estar atento ao momento presente de uma forma não-reativa, sem julgamentos, e compassiva. Numa relação, a atenção plena pode ser de extrema relevância para nutrir um ambiente de comunicação aberta e honesta. Ouvir as preocupações do nosso parceiro sem reagir, sem julgar e com o coração aberto pode ser muito útil para compreender as suas necessidades e fazê-lo/a sentir-se ouvido/a. Sati pode também ser muito útil para ganhar espaço de manobra durante inevitáveis momentos mais intensos, por exemplo, discussões. Ficar presente à situação de uma forma imparcial e não-reativa pode ser a margem de manobra que precisamos para evitar dizer ou fazer algo impulsivamente do qual nos arrependamos no futuro.

3. Dana (a generosidade)

A generosidade, quando motivada por amor genuíno – e não pela expectativa de receber algo em troca – é fundamental para as relações românticas por duas razões: primeiro, porque permite garantir a satisfação de necessidades básicas da pessoa com quem estamos (e também das nossas), sejam ambientais, emocionais, psicológicas ou físicas; e segundo, porque permite o enriquecimento da felicidade da outra pessoa para além das suas necessidades básicas. Oferecer uma prenda, elogiar a pessoa, disponibilizarmo-nos para a ouvir ou ajudar, surpreendê-la com a sua comida preferida ou planear atividades que a pessoa goste são maneiras generosas de lhe mostrar que a conhecemos, que nos importamos com ela, e que a queremos ver feliz e saudável. É igualmente importante partilhar o que é nosso com o outro, o que pode ser extremamente eficiente a fortalecer laços com a pessoa e a libertar-nos do nosso apego e do auto-centramento. Qualquer ato de generosidade trará também alegria a nós próprios, especialmente ao ver o rosto do outro sorrir.

4. Sacca (a verdade)

Porque é que procuramos companhia romântica? Pode haver muitas razões, mas o que me parece, na maior parte dos casos, é que a busca pelo amor é motivada pelo desejo de encontrar uma conexão verdadeiramente genuína e profunda com outro ser. Num mundo repleto de ilusões e máscaras, a ligação verdadeira e autentica com o outro pode mesmo assumir uma dimensão sagrada nas nossas vidas. Queremos alguém que nos conheça e aceite exatamente como somos, e queremos amar e oferecer bem a alguém que conheçamos, aceitemos e amemos exatamente como é. Para isto, é necessário que a honestidade e o apreço pela verdade sejam valores importantes para o casal. A capacidade de comunicar honestamente, abertamente e sem julgamento é um pilar de qualquer relação saudável e de sucesso. Não só permite a expressão sincera e completa do amor que sentimos pela outra pessoa, o que irá fortalecer o nosso laço com ela, como permite abordar com maturidade e eficiência qualquer problema que surja na relação. É quando até os problemas mais difíceis são abordados com sinceridade e abertura total que a conexão com o outro é verdadeiramente profunda e baseada num amor genuíno.

5. Kataññu (a gratidão)

Quanto estamos numa relação que nos faz profundamente felizes a longo prazo, há a forte possibilidade de Mara nos tentar com uma das suas melodias matreiras: a canção da garantia, a música que nos faz tomarmos por garantida a relação especial que temos com a pessoa e todas as suas ações, das mais pequenas às maiores, que todos os dias nos fazem felizes. Algumas dessas ações podem ser sacrifícios, e assumi-las na nossa vida sem as valorizar pode ferir profundamente a pessoa com quem estamos e colocar em causa a própria relação. Todas as coisas que o/a nosso/a parceiro/a faz por nós tornam-se o nosso direito de nascença, que o ego acha que merece e que sempre mereceu. Isto pode fazer com que deixemos de nos esforçar para fazer a pessoa com quem estamos feliz e acreditemos que a pessoa vai estar cá para sempre a satisfazer incondicionalmente todas as nossas necessidades. Este tomar por garantido é um dos maiores venenos para qualquer relação a longo prazo. A qualquer momento todas as causas e condições na relação que nos fazem felizes podem desaparecer sem deixar rasto, sobretudo se as tomarmos por garantidas. Há que aproveitá-las plenamente enquanto estão presentes, porque podemos ter a certeza que não vão estar cá para sempre. Ninguém gosta de ser tomado por garantido, e uma pessoa que se sente assim rapidamente parará de investir no amor, abandonará a relação, ou se não a abandoar ficará miserável nela.

 O antídoto contra esta melodia venenosa de Mara, que é um dos valores mais enfatizado no budismo, é a gratidão, ou kataññu, em pali. Devemos refletir todos os dias acerca de todas as maneiras passivas e ativas como a pessoa com quem estamos nos faz feliz, das mais pequeninas e aparentemente insignificantes, às maiores e mais importantes. Todas as palavras, todos os gestos de carinho, todos os momentos em que estamos juntos. Quando uma pessoa se vai embora, podemos mesmo sentir falta de coisas nela que nos arreliavam ou deixaram desconfortáveis: os seus hábitos mais irritantes revelam-se como tesouros preciosos, como a fonte de uma nostalgia arrependida e irónicos objetos de saudade. O desagradável do passado pode tornar-se no desejo do presente. Há também que relativizar o nosso desconforto face a estas situações e cultivar gratidão total pelos momentos impermanentes de felicidade que temos com a pessoa, mesmo quando aparentam ser inconveniências menores. Devemos apreciar todos os sacrifícios que a pessoa faz por nós com gratidão, todos os momentos que passa connosco, e todas as maneiras como tenta ser feliz connosco e fazer-nos felizes.

A gratidão irá também aprofundar o afeto que sentimos pela pessoa e a vontade de cultivarmos a sua felicidade. Tudo é impermanente e sujeito à mudança, e manter um amor puro e saudável numa relação exige esforço e dedicação constante. A gratidão é um belo lembrete que nos relembra das razões pelas quais nos devemos esforçar para todos os dias tentarmos fazer a pessoa que amamos feliz.

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