Meditação

Satipatthana: As 4 Bases da Atenção Plena

A prática de meditação tem crescido consideravelmente no Ocidente nas últimas décadas, e muitas das técnicas mais populares entre os ocidentais são de origem budista. Muitos iniciantes à meditação já ouviram falar em “mindfulness” e provavelmente sabem que está ligado de algum modo ao budismo. No entanto, esse conceito foi desvirtuado do seu amplo significado original: a atenção plena, ou mindfulness, é muito mais do que uma prática secular de contexto terapêutico ou simplesmente para relaxar. Embora há que dizê-lo, o mindfulness secular deu contributos importantes para a popularização da meditação e tem aspetos muito positivos, mas, dentro do contexto budista a meditação vai mais além e não deve ser desintegrada de outros aspetos importantes da prática budista. Tanto a atenção plena, ou sati, em pali, assim como a meditação vipassana estão intimamente ligadas ao tópico a que este artigo se dedica: as Bases da Atenção Plena, ou satipatthana, em pali.

Por Manuel Sanches, com a orientação de Miguel Carmo.

As Bases da Atenção Plena são um conjunto de fenómenos típicos da experiência humana – o corpo, os sentimentos ou sensações, a mente e os dhammas – que podem ser usados como objeto de contemplação e reflexão na prática de meditação. São doutrinalmente desenvolvidas e explicadas em algumas das primeiras instruções budistas sobre meditação. No Cânone Pali são explicadas em dois suttas principais: o Satipatthana Sutta (Majjhima Nikaya 10), o “Discurso das Bases da Atenção Plena”; e o Anapanasati Sutta (Majjhima Nikaya 118), o “Discurso da Atenção Plena na Inspiração e na Expiração,” um texto que formula um desenvolvimento progressivo das Bases da Atenção Plena na prática meditativa da atenção plena na respiração. Esta técnica de dezasseis passos está dividida em quatro tétrades, sendo que cada tétrade correspondendo a uma das Bases da Atenção Plena. Um dos mais célebres autores monásticos contemporâneos a dedicar grande parte do seu estudo e várias publicações a estas técnicas é o venerável Bhikkhu Analayo, e os seus livros são uma boa aposta para quem tem interesse em aprofundar a teoria da meditação satipatthana.

Satipatthana é uma poderosa, ampla, e versátil técnica de vipassana. No seu significado original e segundo o budismo inicial, vipassana significa “visão penetrante.” A prática de vipassana é também conhecida como meditação de insight. Consiste num vasto leque de abordagens que, através de uma análise desidentificada da realidade, pretendem fazer surgir momentos espontâneos de sabedoria intuitiva – aos quais se chama, geralmente, insights.

O que é a atenção plena?

A atenção plena (sati, em pali) é a base mais fundamental da meditação de acordo com o budismo inicial. Enquanto qualidade mental, é o pilar no qual a prática as Bases da Atenção Plena assenta. É a capacidade de estar recetivo à realidade do momento presente com uma atitude disponível, imparcial, não-reativa, não-julgadora, não-discriminadora, compassiva e sensível.

O corpo: a primeira Base da Atenção Plena

O corpo, ou forma (rupa, em pali) refere-se à forma física humana. No Satipatthana Sutta, várias contemplações no corpo são sugeridas pelo Buda.

A atenção plena na respiração, mencionada anteriormente, é, cronologicamente, a primeira sugestão. Trata-se da meditação no fluxo da respiração no corpo, que gradualmente, ao longo das várias etapas progressivas, vai expandindo o foco de atenção e abrangendo cada vez mais aspetos da experiência presente.

 Outra possível prática de atenção plena no corpo é a contemplação das quatro posturas: a posição a andar, a posição de pé, a posição sentada, e a posição deitada. A ideia é que o praticante fique presente a estes posturas quando está nelas e as experiencie tal e qual como se apresentam.

A atenção plena nas atividades do corpo é a meditação informal em todas as atividades em que o corpo se vai envolvendo no dia-a-dia. O Buda explica no Satipatthana Sutta que o monge deve permanecer em “full awareness” nos atos de ir e voltar, olhar para perto e para longe, ao fletir e esticar os membros, ao vestir-se e transportar os robes e a malga, ao comer, beber, defecar e urinar, ao andar, ao estar de pé, ao sentar-se, ao adormecer, ao acordar, ao falar e ao estar em silêncio.

A contemplação nas partes anatómicas do corpo é uma prática que pretende desapegar a mente da ideia do corpo como algo não-composto. A ideia é desconstruir o corpo com a mente nas suas diferentes partes anatómicas, como se fosse um saco cheio de conteúdos diferentes. O Buda apresenta a símile do corpo humano como um saco cheio de grãos e leguminosas de vários tipos, para este exemplificar atitude deste exercício. O praticante pode fazer um body scan em que tenta identificar aquilo que compõe o seu corpo: cabelos, pelos, unhas, dentes, pele, carne, tendões, ossos, medula, rins, um coração, um fígado, um diafragma, um baço, pulmões, intestinos, bolo alimentar, fezes, bílis, catarro, pus, sangue, suor, a gordura, lágrimas, óleos, saliva, ranho, óleo das articulações e urina. Daí pode inferir que o corpo que tipicamente identificamos com o próprio “eu” e que consideramos geralmente como uma unidade indivisível é, na verdade, composto por várias partes e não tem uma essência própria.

Outra possível contemplação do corpo é a contemplação nos elementos físicos que constituem a realidade interior e exterior: a terra, a água, o fogo, e o ar. Os quatro elementos são simbólicos e não devem ser interpretados literalmente. O elemento terra não é literalmente terra e o elemento fogo não é literalmente uma chama. Os quatro elementos representam qualidades da realidade física do corpo e do ambiente à sua volta: o elemento terra é a solidez e a estabilidade do mundo material; o elemento água é a flexibilidade e a coesão; o elemento fogo é a temperatura e a transformação, por exemplo através da digestão e do envelhecimento; e o elemento ar é o movimento. Pode ser contemplado que o corpo que tomamos, geralmente, como algo com uma essência sólida, é na verdade composto por vários elementos. É possível contemplar quais são as partes do corpo onde cada elemento está mais presente: a terra nos ossos, a água no sangue e no suor, etc. Nesta meditação é igualmente possível refletir que os elementos do corpo não são realmente diferentes dos elementos no ambiente – qual é a diferença entre o elemento terra no nosso crânio ou numa pedra na floresta? Podemos contemplar a dependência total do corpo físico pelos elementos no exterior: sem alimentos sólidos, água, o calor do sol ou ar para respirar o corpo morre. E, por fim, podemos contemplar que, após a nossa morte, os elementos interiores do corpo irão voltar a unir-se com os elementos exteriores do ambiente à sua volta dos quais, na verdade, nunca estiveram separados. As contemplações de cemitério são a última técnica sugerida no sutta para meditar no corpo. Referem-se à observação (literal ou imaginária) de um cadáver nas suas várias fases de decomposição e na consequente reflexão de que é exatamente esse o destino do nosso próprio corpo, que é da mesma natureza impermanente, degradante, e composta que o cadáver.

Os sentimento ou sensações: a segunda Base da Atenção Plena

Os sentimentos, ou vedana, em pali, (tal como o corpo ou forma) são um dos cinco agregados (khanda) do composto psicofísico, o complexo ilusório e essencialmente vazio de uma essência própria que constitui aquilo a que chamamos o “eu.” A categoria dos sentimentos refere-se às sensações ou sentimentos mais básicos da experiência humana num espetro de atração, indiferença, e aversão; agradável, neutro, e desagradável; “gosto,” “é-me indiferente,” “não gosto.” Estes sentimentos estão geralmente ligados a sensações ou volições específicas da experiência: “não gosto de ter esta dor nas pernas”; “gosto desta sensação agradável nos lábios.” O Satipatthana Sutta distingue-os também entre mundanos e não mundanos – o prazer de comer um bolo é diferente do prazer de um estado meditativo de absorção. Estes sentimentos podem ser observados em contexto de meditação de modo a compreender o que os causa, quais os seus efeitos, e se é possível não reagir automaticamente à sua carga emocional e aos impulsos por eles estimulados. Será possível treinarmo-nos a não seguir automaticamente tudo aquilo que nos atrai, mesmo que seja mau para nós? E a não fugir daquilo que não gostamos, mas que não podemos evitar? Será que ceder ao desejo do que é agradável nos dá realmente mais prazer? E será que é mais sensato fugir do indesejável ou será vantajoso ficar presente à sua experiência?

A mente: a terceira Base da Atenção Plena

A mente, ou citta, em pali, é a terceira satipatthana. Neste contexto, “a mente” refere-se ao estado de espírito presente, o estado geral da mente. Na meditação satipatthana, a atmosfera mental geral deve ser analisada, assim como os estados emocionais nela presentes: a mente está influenciada pelo desejo, ou não? E pela aversão? Estará afetada pela ilusão? Está distraída? Está concentrada, ou não? A mente está liberta, ou não está liberta? Esta tranquila ou irrequieta?

Os dhammas: a quarta Base da Atenção Plena

A palavra dhamma, em pali, ou dharma, em sânscrito, tem vários significados não só no contexto budista mas também no contexto geral do pensamento indiano. Dhamma, como em “os dhammas,” não deve ser confundida com “Dhamma” com inicial maiúscula. “Dhamma” ou “Dharma” com inicial maiúscula, refere-se à doutrina do Buda, todos os seus ensinamentos, ou seja, o próprio budismo. “Dhammas” no plural e com minúscula, refere-se à categoria abrangente de fenómenos condicionados. No contexto mais específico das satipatthana são geralmente referidos como objetos mentais. A sistematização e desenvolvimento doutrinal deste conceito podem ser principalmente encontrados no Abhidhamma Pitaka, o “Terceiro Cesto” de tratados filosóficos e comentários à doutrina do Buda. Das quatro Bases da Atenção Plena, esta é a que tem um significado menos óbvio e é a mais difícil de entender.

No contexto das satipatthana, os dhammas referem-se, de facto, a alguns fenómenos ou objetos mentais da experiência humana. No entanto, segundo o que está descrito no Satipatthana Sutta, estes são bastante mais abstratos e variados do que simplesmente o corpo, os sentimentos, ou a mente.

O primeiro conjunto de dhammas a serem contemplados de acordo com o Satipatthana Sutta são os cinco obstáculos. O objetivo é averiguar a presença destes impedimentos à meditação, dos seus fatores de surgimento e de desaparecimento, e de antídotos para os abandonar e evitar que surjam de novo. Os cinco impedimentos são o desejo sensual, a aversão, a preguiça e torpor, a agitação e a dúvida.

 De seguida é sugerida a contemplação nos cinco agregados. Os cinco agregados, ou khanda, em pali, são os cinco elementos psicofísicos que compõem o sentido ilusório da identidade individual: o corpo ou forma física, os sentimentos, as perceções sensoriais, as volições mentais e a consciência ou cognição. O objetivo desta contemplação é desconstruir o sentido falso do eu enquanto entidade absolutamente existente – pelo menos  enquanto algo permanente, satisfatório, não-composto, e independente do seu ambiente.

 As seis esferas sensoriais também podem ser usadas como objeto de análise contemplativa. São os cinco canais dos sentidos – a visão, a audição, o olfato, o paladar e o tato – mais a mente, que é considerada o sexto sentido que processa os estímulos mentais. A ideia é contemplar cada um dos seis órgãos sensoriais, a forma como este apreende os estímulos da sua área de influência, e como se forma um grilhão entre as esferas sensoriais e os estímulos.

Outro conjunto de dhammas a contemplar são os sete fatores do Despertar. Tratam-se de sete qualidades que são propícias à libertação espiritual: a atenção plena, a investigação dos dhammas, a energia, a alegria extática, a tranquilidade, a concentração e a equanimidade. Devem ser igualmente contempladas as suas causas, os seus efeitos, como fazê-los surgir como mantê-los presentes.

As Quatro Nobres Verdades são o último conjunto de dhammas apresentados no Satipatthana Sutta enquanto possíveis objetos de contemplação. A ideia não é que as Verdades sejam refletidas puramente como abstrações conceptuais, mas sim que possam ser observadas diretamente no fluxo de fenómenos mentais do praticante. Como um todo, tratam-se do ensinamento mais elementar da tradição budista que se dedica ao sofrimento, à sua origem, à sua cessação, e ao caminho que leva à sua cessação.

A Primeira Nobre Verdade refere-se à existência do sofrimento ou insatisfação na vida: nascer, envelhecer, ficar doente e morrer implica sofrimento, assim como sermos separados daquilo que gostamos ou sermos obrigados a conviver com aquilo de que não gostamos. Onde é que o sofrimento existe na nossa experiência do presente? Será possível identificá-lo?

A Segunda Nobre Verdade refere-se à origem do sofrimento: a ânsia por prazeres sensuais, por existência ou por aniquilamento; a ignorância face à natureza da realidade e o consequente apego ou aversão aos fenómenos impermanentes que nela fluem. Neste preciso momento, na nossa experiência tal e qual como é, qual é a origem do nosso sofrimento? Que ânsia é que nos move? Que tipo de ignorância é que estamos a perpetuar? Ao que é que estamos agarrados? O que é que estamos a tentar evitar? Será possível abandonar as causas do nosso sofrimento?

A Terceira Nobre Verdade refere-se à cessação do sofrimento. A cessação do sofrimento é possível, se as suas causas forem abandonadas. Por vezes, isto é uma simples questão de observação desidentificada. Tudo é impermanente, incluindo o próprio sofrimento. Com alguma paciência, será possível testemunhar a cessação do sofrimento presente?

A Quarta Nobre Verdade refere-se ao caminho que leva à cessação do sofrimento: as disciplinas da sabedoria, da ética, e da meditação formuladas pelo Buda nos oito aspetos do Nobre Caminho Óctuplo.

Apesar de todos estes dhammas serem mencionados na versão pali do satipatthana, apenas os cinco impedimentos e os sete fatores do Despertar são mencionados nas outras versões do texto, por exemplo a versão dos agamas chineses. Concluindo, a meditação satipatthana é um método eficiente, amplo e versátil para desenvolver insights na verdadeira natureza dos fenómenos de modo a nos libertarmos ao seu apego.

Bibliografia:
– Ajaan Lee Dhammadharo. “Fundamentos da Atenção Plena.” Em Acesso ao Insight. , acedido a 12/03/2024.
– Analāyo, Bhikkhu. Satipaṭṭhāna Meditation: A Practice Guide. Cambridge, UK: Windhorse Publications, 2018.
– Satipaṭṭhāna Sutta, Majjhima Nikāya 10. Em The Middle Lenght Discourses of The Buddha: A New Translation of the Majjhima Nikāya. Traduzido por Bhikkhu Ñāṇamoli e Bhikkhu Bodhi. Boston: Wisdom Publications, 1995, 145-155.

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