Theravada Trechos

A revelação da compaixão: da motivação fútil ao altruísmo na jornada de um monge

Ajahn Amaro compartilha uma lição comovente da sua vida monástica. Quando era um jovem monge, durante uma profunda sessão de meditação, sentiu que a iluminação estava próxima. Porém, foi interrompido por uma crise de um novato. Enquanto ajudava o novato, Ajahn Amaro pensava apenas em retornar para a sua meditação, até que finalmente percebeu o egoísmo da sua busca e a importância do altruísmo na prática. Essa experiência aprofundou a sua compreensão dos ensinamentos Mahayana e das limitações da busca pela iluminação pessoal.


Trecho do livro “Small Boat, Great Mountain: Theravadan Reflections on the Natural Great Perfection“, de Ajahn Amaro. Amaravati Publications, 2012. Pag. 75-79.
Tradução de Manuel Sanches para o Olhar Budista.

Nota introdutória: Este breve texto é um excerto do livro Small Boat, Great Mountain. Esta obra foi publicada com base nas palestras de Ajahn Amaro num retiro feito em parceria com Tsoknyi Rinpoche. Ao longo do texto há, por vezes, referência aos sons ou gestos que Ajahn Amaro faz à medida que fala. Para facilitar a leitura algumas frases foram formatadas em negrito.

Clarificando a Intenção Compassiva

A primeira vez que tive uma revelação acerca desta questão foi há quase vinte anos. Eu era um jovem monge, muito zeloso. E, apesar da minha mente estar muitas vezes extremamente agitada e dispersa, após três ou quatro anos de treino monástico, descobri que a meditação me vinha facilmente e que conseguia atingir estados de concentração bastante fortes. Isto foi também nos anos iniciais da nossa comunidade em Inglaterra, quando Ajahn Sumedho dava duas ou três palestras de Dharma por dia, e parecia haver um fluxo constante de alta sabedoria. Foram tempos muito inspiradores. Havia a sensação de que o despertar estava tão perto, que era um realidade óbvia. Era apenas uma questão de cortar através dos últimos obscurecimentos e boom! Estaria tudo ali.

Desenvolvemos a tradição de fazer um retiro de Inverno durante os meses frios e escuros de Janeiro e Fevereiro. Após três semanas num dos primeiros desses retiros, eu estava a praticar muito diligentemente a estava extremamente focado na meditação. Não estava a falar com ninguém nem a olhar para nada. A cada quarto lunar tínhamos uma vigília de meditação que durava a noite inteira. Esta decorreu durante a lua cheia em Janeiro. Eu estava cheio de energia e estava convencido que: “Ok, esta noite é a noite.” Era um início de noite em que o céu estava absolutamente limpo no meio do Inverno inglês. Havia estrelas brilhantes no céu, e a lua cheia brilhava intensamente. Eu estava cheio de pica. Fomos para a sessão sentada do final do dia, entoámos os cânticos, ouvimos a palestra de Dharma, e isso, e depois, uma vez que tudo terminou, o resto da noite foi livre – apenas meditação a andar e sentada, à escolha de cada um.

Então estou eu ali sentado com uma mente muito luminosa e límpida, e o seguinte pensamento não para de surgir: “Só mais um minuto, só mais um segundo.” Todos conhecemos este pensamento: “Um pouco para a esquerda, um pouco para a direita… Boa! Agora relaxa um pouco, endireita as costas… Estás a ir bem! Ok, mantém-te assim, não faças nada, boa, boa.” É uma questão muito familiar para todos, estou certo.

Isto estava a acontecer há horas. A minha mente estava a ficar cada vez mais e mais energizada, mais clara e mais clara, a cortar impurezas e obscurecimentos por todos os lados. As pistas estavam a tornar-se cada vez mais prolíficas, do género: “Algo grande está prestes a acontecer.” Por volta das duas da manhã, ruídos começaram a entranhar-se na minha consciência: pá, pá, pá, bum, bum, bum, portas a abrir e a fechar, passos pesados no corredor. E eu pensei: “Sapatos no corredor? Quem é que está com sapatos no corredor?” Bum, Bum… “O que é que se passa ali?!” Como podem ver, havia uma pequena interferência no meu programa da iluminação. Mas eu decidi simplesmente ignorar a questão, e dizer a mim próprio: “É só um ruído [Ajahn Amaro zumbe: huuummmmmmm]. Só eu e a lua a zumbir no nosso caminho até ao nibana.” Apesar de eu ter dado o meu melhor para ignorar o ruído, reparei depois que havia uma presença à minha frente. Abri os olhos. Um dos monges estava inclinado para a frente e a dizer: “Olha, podes vir cá fora num instante?” E o meu primeiro pensamento foi: “Como assim, ‘vir cá fora’?! Esta é a minha grande noite. Estou ocupado.” Resisti ao impulso de agir a partir dos meus pensamentos, saí da sala, e vi agentes da polícia na entrada. “A Polícia? O que é que se passa aqui?!”

O que se sucedeu foi que um dos noviços, um jovem muito errático chamado Robert, tinha-se metido em sarilhos. Toda a meditação praticada durante o retiro de Inverno, emparelhada com nunca se ter feito aquele tipo de práticas de concentração antes, podia levar muitas pessoas para o lado errado da fronteira. O jovem Robert não tinha apenas ultrapassado a fronteira, como tinha viajado muitos quilómetros. Ele tinha também esvaziado a caixa das esmolas antes de sair. No pub local, Robert tinha comprado bebidas a todas as pessoas e estava a discursar perante toda a gente. Como estava num estado ligeiramente louco, ainda que hiperlúcido, ele descobriu que era capaz de ler a mente das pessoas. Estava a mirar as pessoas do pub e a dizer: “Tu estás a fazer isto, e tu estás a pensar aquilo; eu sei o que é que estás a planear.” Então as pessoas estavam a ficar seriamente incomodadas. Lembrem-se, isto foi em Inglaterra, e a vida numa aldeia inglesa não está preparada para jovens homens de cabeça rapada e de vestes brancas a aparecer no santuário que é o pub local, a oferecerem coisas, e a revelar os segredos internos das pessoas. Os ingleses não são bons a revelar segredos, nem nas melhores alturas para tal. Mas ter alguém a comportar-se de maneira tão estranha e a divulgar os pensamentos das pessoas foi distintamente inaceitável. Então, chamaram as autoridades. A polícia, com as igualmente grandes qualidades britânicas do senso comum e da compaixão, perceberam que este tipo não estava bem e trouxeram-no de volta para o mosteiro. Por essa altura ele tinha perdido a cabeça completamente. Começou a delirar e reclamar, a dizer que se queria suicidar.

O monge à minha frente disse-me: “O Robert está em grandes sarilhos. Ele está num estado muito estranho e quer atirar-se para o lago. Podes ir ajudá-lo? És o único que o pode fazer.” Isto era verdade. Como eu tinha sido um dos membros mais novos do Sangha, como ele, tinha sido bastante próximo deste noviço e era uma das poucas pessoas da comunidade que conseguia relacionar-se com ele de alguma maneira.

Por essa altura, Robert estava a viver num kuti na floresta. A maior parte da comunidade vivia ou no edifício principal ou na cabana das monjas, e o kuti na floresta estava a uma caminhada de cerca de meia hora de distância. Parte da minha mente pensava: “Mas, mas, mas, ouve, esta é a minha grande noite da iluminação.” Portanto o meu primeiro impulso foi dizer: “Esta noite não.” Mas depois algo em mim disse: “Não sejas estúpido, vai, não tens escolha.” Então deram-me termos com chocolate quente, guloseimas e outros alimentos que um monge pode comer àquela hora, e lá fomos nós a caminhar floresta adentro. Resumindo uma longa história, passei mais ou menos as três horas seguintesna sua companhia a beber chá e chocolate e a tentar dissuadi-lo. Deixei-o falar, e falar, e falar, e falar, e falar. Finalmente ele ficou exausto, e por volta da madrugada queria ir dormir. Eu percebi que ele estava bem e sabia que ele não ia fazer nenhum disparate. Então deixei-o ali e comecei o caminho de volta para casa.

Estava a caminhar apressadamente colina abaixo quando, de repente, pensei: “Qual é a pressa? Porque é que estou a ir tão rápido?” Abrandei, e abrandei mais, e finalmente parei e olhei para cima. Lá estava ela, a lua cheia a pôr-se do outro lado do lago. E depois todas as vozes que tinham estado a aparecer na minha cabeça durante a primeira parte da noite começaram a voltar: “Só mais um minuto. Esta é a minha grande noite. Eu vou longe.” De seguida, apercebi-me que, durante todo este cenário, eu não tinha pensado por um único segundo em alguém senão em mim próprio – eu e o meu programa da iluminação, eu a despertar, eu a libertar-me. E percebi que não tinha tido uma migalha de preocupação em praticar pelo benefício de mais alguém. Senti-me deste tamanho [Ajahn Amaro aproxima o indicador e o polegar a um quarto de polegada de distância]. Como é que eu pude ser tão incrivelmente estúpido? Ao ter estado simplesmente na presença de um ser em sofrimento, eu consegui ver como a minha atenção durante a meditação tinha encolhido tanto que todos os outros seres tinham sido completamente colocados de parte. O que começou com uma boa intenção – querer desenvolver-me espiritualmente e libertar-me, o que parecia a melhor coisa que alguém podia fazer com a vida – tinha-se afunilado, e afunilado, e afunilado até se ter tornado numa questão de eu vencer o grande prémio. A motivação incrivelmente fútil da minha prática tinha-se revelado. Eu pensei: “Para que é que foi este esforço todo?”

Atingiu-me, então, o quão profundamente importante o princípio altruísta é. Pois mesmo que alguém faça muito trabalho interno e esteja a desenvolver qualidades muito boas e meios hábeis muito bons, este tipo de negação dos outros debilita o verdadeiro propósito da prática. Os outros seres não são apenas uma referência utilitária. A nossa comunidade costumava entoar a “Partilha de Bênçãos” todos os dias, e foi apenas depois deste incidente que eu percebi: “Uau, pessoas reais a sofrer realmente. Oh, certo. Pessoas reais… Uau.”

Tendo estado tão perto do Robert quando a minha mente estava num estado tão alerta e sensível, esta noção de praticar pelo benefício de todos os seres consolidou-se realmente. A partir daí, comecei a prestar muito mais atenção a todo o elemento altruísta e a trazer conscientemente uma preocupação pelos outros seres. Isto não era apenas um conceito. Eu tinha internalizado a questão.

Por essa altura, muitos dos ensinamentos Mahayana começaram a fazer consideravelmente mais sentido para mim. Vi como esse estreito ênfase da iluminação para o indivíduo se tinha tornado um dos espíritos condutores por detrás do que eu estava a fazer. Através da perspetiva dessa “iluminação pessoal,” a mente começa naturalmente a aproximar-se em direção à negação da visão geral.

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