Contos e Poemas

O demónio que ascendeu à budeidade: a redenção de Sun Wukong

A obra “Viagem Para o Ocidente”, também conhecida como “Jornada Para o Oeste”, mostra a transformação de Sun Wukong, o “Rei Macaco”, um personagem imaturo e errático que se transforma num Buda, simbolizando a capacidade de redenção e purificação através da prática budista. A narrativa partilha valores e ideias relevantes para a tradição budista, e mistura fantasia com eventos históricos, particularmente referentes à jornada de Xuanzang.

Por Manuel Sanches, para o Olhar Budista.

“Tal como um maravilhoso Lótus de suave aroma
pode crescer no meio da imundice,
a irradiação de um verdadeiro discípulo do Buddha
sobrepõe-se às escuras sombras
provenientes da ignorância.” (v 58-59)
– Ajahn Munindo, Dhammapada – Reflexões (Northumberland, UK: Aruna Publications, 2021), pag. 6.

Uma das questões mais atraentes e pertinentes acerca da história de vida de Siddhartha Gautama é o facto de antes de ser ter tornado Buda ter sido um ser humano como todos nós. Não apenas um ser humano, mas um príncipe extremamente privilegiado e mimado por todo o tipo de luxos sensoriais. Esta inebriante vida requintada, repleta de todo o tipo de prazeres que apenas a elite da Índia Antiga podia apreciar é, à primeira vista, um obstáculo à prática espiritual. No entanto, foi exatamente essa extravagância e opulência fútil e superficial que criou as condições para que Gautama mergulhasse profundamente na sua insatisfação e encontrasse o desejo de algo mais profundo. Estas condições aparentemente pouco propícias foram a cama de lodo sórdido de onde nasceu o lótus radiante e perfumado: através da impureza, Gautama purificou-se e tornou-se Buda.

Na literatura budista há várias histórias acerca de praticantes que se apresentam como candidatos incapazes de seguirem uma via espiritual e de viverem com virtude e ética e que acabam por se tornarem arahants, seres Despertos. Um exemplo clássico é a história de Angulimala, o assassino em série.

Angulimala era uma asceta que foi ordenado pelo seu mestre que matasse mil pessoas, cortasse um dos dedos de cada vítima, e fizesse um rosário com esses mesmo dedos. Só assim podia Angulimala libertar-se de uma desonra – legítima ou não, dependendo da versão da história – que tinha cometido face ao seu guru. Quando chegou às novecentas e noventa e nove vítimas, Angulimala deparou-se com a sua potencial última vítima – o Buda – que conseguiu acalmar o seu frenesim sangrento. Angulimala tornou-se um discípulo monástico do Buda e acabou por Despertar e tornar-se um arahant.

Zhuang Zi, o sábio taoista disse: “A manifestação do certo e do errado foi o que levou ao declínio do Tao [ou seja, a Verdade].” Na perspetiva da realidade convencional, e de forma a podermos viver de uma forma harmoniosa na sociedade, é importante separar o certo do errado, o sagrado do profano. Mas ao nível da realidade absoluta, não será a separação entre certo e errado, virtuoso e não virtuoso, ético e não ético, sagrado e profano apenas mais uma convenção ilusória e vazia? Nagarjuna famosamente declarou que não existe realmente diferença entre nirvana e samsara. Nirvana é samsara, e samsara é nirvana. Esta integração da Sombra no caminho para o Despertar é crescentemente mais aparente na história do budismo, especialmente com o aparecimento de bodhisattvas irados como Vajrapani. Esta perspetiva pode ser extremamente útil porque permite expandir a prática do Dharma para além dos limites do convencionalmente sagrado e compreender que realmente qualquer e cada pessoa, independentemente do seu contexto de vida, tem em si budeidade potencial.

O que estas histórias pretendem demonstrar é que ninguém está além da redenção e que, qualquer pessoa, e mesmo pessoas com passados questionáveis, podem Despertar e tornarem-se Budas.

Talvez a mais vibrante destas histórias acerca de seres de conduta questionável que acabam por Despertar é a de Sun Wukong, o Rei Macaco segundo a mitologia chinesa – e, literalmente, um demónio que se tornou Buda. A história de Sun Wukong foi imortalizada pelo autor clássico chinês de nome Wu Cheng’en no clássico literário a que no Ocidente se chama Viagem Para o Ocidente ou O Rei Macaco. Julia Lovell, a tradutora da edição da obra publicada pela Penguin Classics identifica 1580 como data original de publicação.

A narrativa desta obra clássica está dividida em duas partes. A primeira dedica-se à ascendência caótica do errático macaco Sun Wukong à condição divina, e a segunda dedica-se – em parte, pelo menos – à redenção de Sun Wukong, através do seu acompanhamento de Xuanzang, um monge chinês da dinastia Tang, numa peregrinação até à Índia em busca das escrituras budistas. Xuanzang, para além de personagem fantástica no contexto desta obra, foi de facto um monge budista a que se atribui veracidade histórica. Xuangzang terá caminhado deste a China até à Índia (e de volta) por paisagens inóspitas como montanhas e desertos em busca de sutras e relíquias budistas. Grande parte das reconstituições da mítica universidade budista de Nalanda, há muito em ruínas, foram feitas com base nas descrições atribuídas aos seus diários de viagem. Xuanzang foi honrado pela sua impressionante peregrinação com um memorial em seu nome no atual estado de Bihar, na Índia. A Viagem Para o Ocidente está repleta de fantasia e humor, mas não deixa de apresentar vários valores e ideias relevantes segundo a tradição budista e é, de algum modo, uma alegoria do caminho até ao Despertar. A obra explora extensivamente não só temas budistas mas também o contexto mais vasto da cultura chinesa e das interações entre as suas três principais doutrinas – o confucionismo, o taoísmo, e o budismo.

Sun Wukong, para além de um dos personagens principais desta obra, é uma figura icónica do folclore chinês, que a pré-data. Apesar de não ser célebre no Ocidente, conhecemo-lo muito bem de um modo indireto, especialmente quem cresceu nos anos 90 ou no início do século XXI. O Rei Macaco foi a inspiração principal de um inescapável personagem de anime para os jovens da minha geração: Son Goku, dos animes Dragon Ball, que partilha com Sun Wukong – pelo menos na primeira edição da série de televisão – três dos seus atributos: uma cauda de macaco, um bastão que cresce de acordo com a sua vontade, e a capacidade de viajar em nuvens.

Como mencionado, a primeira parte da obra dedica-se especificamente à vida de Sun Wukong. Wukong é um personagem muito carismático e muito humano, apesar de ser literalmente um macaco: é ambicioso mas impaciente; muito poderoso mas errático; temido e respeitado, mas extremamente imaturo e alheio às consequências dos seus atos; com muito potencial, mas de motivações superficiais. É uma perfeita personificação da “mente de macaco” mencionada no contexto da meditação, a mente que não para quieta sempre à procura de um novo objeto para agarrar.

Segundo a narrativa, o Macaco nasceu de um ovo de pedra no topo de uma montanha. Quando nasceu, dois raios de luz intensos emanaram dos seus olhos e atingiram o palácio celestial do Imperador de Jade, a principal divindade do panteão taoista, que desde aí percebeu que este pequeno macaco poderia vir a ser um problema. O Macaco rapidamente subiu na hierarquia entre os outros primatas. Ao seguirem um ribeiro foram dar a uma cascata, onde um dos macacos exclamou: “Whoever dares pass through the waterfall to discover the source of the water, and returns alive, can be our king!” [Monkey King, 2] (Quem se atrever a passar através da cascata para descobrir a fonte da água e voltar vivo será o nosso rei!) O Macaco saltou e descobriu, do outro lado, a caverna que se tornaria a casa deste grupo de primatas. Assim, graças à sua coragem e impulsividade, tornou-se o seu rei.

No entanto, passado algumas centenas de anos de paz e prosperidade, o Rei Macaco foi assombrado pela compreensão da impermanência e da sua inevitável morte, e nasceu em si o desejo de lhe escapar. No seguimento da sua crise existencial, um dos seus súbditos, declarou: “Our great king’s new sense of mortality suggests the beginning of a religious calling. Only three types of creature can escape King Yama and his wheel of life and death: Buddhas, immortals, and holly sages.” [Monkey King, 4] (O novo sentido de mortalidade do nosso grande rei sugere o início de um chamado religioso. Apenas três tipos de ser escapam o Rei Yama e à sua roda de vida e morte: budas, imortais, e sábios sagrados.”) Assim, o Rei Macaco abandonou o seu reino em busca da imortalidade. Após uma década, encontrou Subodhi, um mestre taoista, do qual se tornou discípulo. Subodhi deu-lhe um nome: Sun Wukong, ou “Sun-who-has-awoken-to-emptiness.” [Monkey King, 9] (Sun-que-despertou-para-a-vacuidade.) Sun Wukong treinou várias práticas taoistas sob a supervisão de Subodhi durante vários anos, tornando-se imortal e aprendendo poderes sobrenaturais como técnicas de magia que lhe permitiam manipular o seu corpo e transformar-se em diferentes coisas, e saltar alturas e distâncias inimagináveis, quase voando. No entanto, a impulsividade primata e a falta de cuidado e discrição com que Sun Wukong usou estes poderes secretos fizeram com que o Macaco seja expulso do mosteiro de Subodhi.

Imortal e dotado de poderes sobrenaturais, Sun Wukong regressou ao seu reino e descobre que este está a ser atormentada por um demónio. Após derrotar o demónio com os seus poderes taoistas e resgatar os seus súbditos, o Rei Macaco decide que deve militarizar o seu reino de macacos de modo a que se possam proteger de futuras ameaças. Após arranjar armas para os seus súbditos, e de modo a arranjar uma arma digna da sua própria soberania, Sun Wukong viajou até ao Oceano Oriental para pedir ao Rei Dragão uma arma para si. Insatisfeito com as ofertas do Rei Dragão, queixando-se que eram demasiado leves, o Rei Macaco acabou por lhe tirar um gigantesco pilar de ferro que começou a usar como o seu bastão, encolhendo e aumentando o seu tamanho voluntariamente através da sua magia taoista. Após aterrorizar o Rei Dragão do Oceano Oriental com as suas exigências, voltou para a montanha onde estava a sua caverna, e entusiasmado com o seu novo equipamento, exibiu os seus poderes mágicos tornando-se num ser demoníaco de proporções gigantescas, aterrorizando os animais e demónios da área, cultivando a sua reputação entre os monstros e assim criando alianças com os reis-demónios da região.

Passado algum tempo, Sun Wukong é raptado por dois servos de Yama, o senhor da morte, que o levaram para o submundo. Vendo este rapto como um ataque pessoal à sua imortalidade, Sun Wukong criou caos no submundo e riscou o seu nome e o nome dos seus súbditos dos registos do submundo, tirando-se à força da jurisdição de Yama. A fama de Sun Wukong e as várias queixas acerca do seu comportamento errático rapidamente chegaram às autoridades celestiais, preocupando o Imperador de Jade. De modo a tentar controlá-lo e discipliná-lo mais facilmente, o Imperador de Jade ofereceu a Sun Wukong um lugar na burocracia celestial, colocando-o encarregue dos estábulos celestiais. Inicialmente o Rei Macaco ficou entusiasmado, mas ao descobrir que esta era a posição mais baixa da hierarquia celestial, ficou furioso e arrombou o seu caminho de volta até à sua caverna, onde se autointitulou de “Grande Sábio Igual ao Céu.” O Imperador de Jade enviou vários dos seus guerreiros para o prender, mas o Rei Macaco derrotou-os a todos. Aconselhado pela Estrela Dourada de Vénus, e de modo a evitar gastar um exército inteiro no poderoso Macaco, o Imperador de Jade cedeu à vontade de Sun Wukong e reconheceu-o com o título de Grande Sábio Igual ao Céu, enviando também alguns emissários para tentar controlar os seus surtos descontrolados de raiva. De modo a mantê-lo entretido e evitar futuras birras de proporções cósmicas, o Imperador de Jade encarregou Sun Wukong de cuidar do jardim celestial dos pêssegos da imortalidade. No entanto, e previsivelmente, a impulsividade de Wukong fez com que este acabasse por devorar vários dos pêssegos, intensificando assim a sua imortalidade e os seus poderes. O Rei Macaco continuou a divertir-se à custa da requintada ordem celestial invadindo um banquete para que não foi convidado e inebriando-se com o vinho dos imortais. Embriagado, Sun Wukong encontrou o palácio de Lao Zi, a mais célebre figura do taoísmo, e roubou e consumiu os seus elixires da imortalidade, aumentando, mais uma vez, os seus poderes.

Depois da clareza voltar a Wukong, o Macaco compreendeu que as suas ações no Céu teriam consequências, então voltou para o seu reino para se refugiar. Todos os imortais celestes que Sun Wukong incomodou apresentaram queixa ao Imperador de Jade que perdeu totalmente a paciência e ordenou ao exército celeste que apreendesse o Rei Macaco. Wukong, por sua vez, defende-se com o seu exército de primatas demoníacos e imortais, criando uma batalha a grande escala. Sun Wukong mantém-se invulnerável aos ataques do Céu, até que Lao Zi conseguiu prendê-lo com uma rede de diamante. Após a sua captura, o Imperador de Jade e os imortais celestiais tentaram executá-lo, mas nada resultou por causa da sua imortalidade. Face ao fracasso das execuções, Lao Zi sugeriu métodos alquímicos para extrair o elixir da imortalidade do corpo de Sun Wukong. O Rei Macaco foi deixado num caldeirão durante quarenta e nove dias na tentativa de o separarem do elixir da imortalidade. No entanto, este método não só não resultou como intensificou ainda mais os poderes sobrenaturais do Macaco. Sun Wukong escapou do caldeirão de olhos vermelhos fulminantes e, furioso, lançou-se em ataque contra a totalidade do exército celestial. O Imperador de Jade, desesperado e sem mais opções chamou o último recurso que tem e o único ser que podia realmente ajudar: o Buda.

O confronto entre Sun Wukong e o Buda em A Viagem Para o Ocidente está ricamente descrito e tem várias camadas de simbolismo para desvelar. Após Wukong dirigir-se ao Buda, este apela à sua humildade, pedindo-lhe que se acalme e que veja que não está a ser razoável, relembrando que o Imperador de Jade é uma entidade muito antiga que cultiva a sua imortalidade há muito tempo, que deve ser respeitada enquanto soberano do Céu, e que o Rei Macaco é muito jovem na escala de tempo com que está a interferir. Sun Wukong mantém a sua posição, e expressa o seu desejo ávido de destronar o Imperador de Jade e tornar-se ele próprio Imperador do Céu. Vendo que o Macaco não está aberto a negociações, e após Wukong vangloriar-se acerca do seu poder e da distância imensa que consegue saltar, o Buda convida-o para uma aposta: “If you can somersault out of the palm of my right hand, then you win. I’ll tell Jade Emperor to move in with me and turn Heaven over to you. But if you can’t, then you’ll go back to being a monster in the world below.” [Monkey King, 70] (Se conseguires dar um salto mortal para fora da palma da minha mão direita, então ganhas. Eu digo ao Imperador de Jade para vir viver comigo e entregar-te o Céu. Mas se não conseguires, então voltas a ser um monstro no mundo inferior.)

Sun Wukong pensou: “This Buddha is an idiot. His palm’s less than a foot wide. How could I fail?” [Monkey King, 70] (Este Buda é um idiota. A sua palma tem menos de um pé [aproximadamente 30cm] de largura. Como é que posso falhar?) Wukong aceitou o desafio, e saltou da mão de Buda, deixando apenas um rasto de vapor. Quando aterrou, Sun Wukong encontrou-se num estranho espaço com cinco pilares rosados rodeados de ar verde, e considerou que esta paisagem era o fim do universo. Entusiasmado por ter ganho a aposta e de modo a provar a sua vitória ao Buda, decidiu deixar a sua marca. Pegou num dos seus pelos, transformou-o num pincel e escreveu no pilar central: “O Grande Sábio Igual ao Céu esteve aqui.” Insatisfeito com a sua primeira marca, Wukong – estou a traduzir literalmente palavra a palavra o que está na tradução de Julia Lovell, página 70 – “depositou um fluxo borbulhante de urina de macaco na base do primeiro pilar.” O Grande Sábio Igual ao Céu deu um mortal de volta para onde tinha começado, a palma da mão direita do Buda. Sentindo-se vitorioso, Wukong exigiu ao Buda que fosse falar como o Imperador de Jade, mas o Buda pediu-lhe apenas que olhasse para o seu dedo do meio. Pata além do cheiro a urina no ar, estava lá escrito: “O Grande Sábio Igual ao Céu esteve aqui.” Sun Wukong não foi capaz de saltar para fora da mão do Buda. Como é que isto é possível? O Buda, enquanto ser Desperto, compreende perfeitamente que a natureza da realidade condicionada é a vacuidade. Todos os fenómenos são vazios de uma essência própria e cada fenómeno é inseparável do universo como um todo. Assim, o Buda sabe que a sua forma manifestada é inseparável do universo como um todo. Para um ser Desperto, o universo inteiro é inseparável da palma da sua mão.

Sun Wukong ficou pasmado e exigiu tentar de novo, mas o Buda simplesmente encerrou-o debaixo de uma montanha – a Montanha das Cinco Fases, remetendo aos cinco dedos do Buda – onde o Rei Macaco permaneceu durante os quinhentos anos seguintes.

No início da segunda parte desta obra, passados quinhentos anos, a bodhisattva Guan Yin (a versão chinesa de Avalokiteshvara, bodhisattva da compaixão) iniciou uma missão de recrutamento à procura de alguém na China que fizesse uma peregrinação até à Índia – uma viagem para o ocidente – para trazer aos chineses da dinastia Tang o Tripitaka, os três cestos de escrituras budistas. O candidato escolhido foi o virtuoso monge budista Xuanzang. Para o ajudar na sua jornada, Guan Yin recrutou três demónios para serem os guarda-costas do monge durante a viagem, aos quais prometeu redenção caso a peregrinação fosse bem-sucedida: Sha Wujing, um monstro de areia que tinha sido exilado para um rio; Zhu Wuneng, um guloso porco-demónio devorador de homens que se tornou vegetariano após comprometer-se com a peregrinação e converter-se ao budismo; um dragão cuspidor de fogo que se tornou no cavalo branco de Xuanzang; e, claro, o carismático macaco demoníaco Sun Wukong, que até aí estava preso debaixo da enorme Montanha das Cinco Fases. Xuanzang, agora com o título Tripitaka, foi quem libertou Sun Wukong de debaixo da montanha removendo o selo mágico no topo que o manteve ali preso.

O virtuoso Tripitaka e o errático Sun Wukong criam um duo cómico muito divertido devido à polaridade contrastante entre as suas personalidades e caráter. O Rei Macaco não hesita em saltar imediatamente para batalhas violentas e sangrentas nas quais deixa clara a intenção de matar qualquer obstáculo à peregrinação, enquanto Tripitaka exige que sigam a ética budista e se guiem pela compaixão, para além de ficar notoriamente incomodado com os surtos violentos de Sun Wukong, não tendo a resiliência emocional para lidar com a violência errática do Grande Sábio Igual ao Céu. O comportamento violento e impulsivo de Sun Wukong torna-se um problema tão grande para Tripitaka que este se vê obrigado a disciplinar o Macaco com uma coroa mágica, oferecidas por Guan Yin, que magoa o primata intensamente sempre que este se porta mal. Em termos de narrativa, Tripitaka e Sun Wukong criam um perfeito equilíbrio cómico encarnando os arquétipos do santo virtuoso e da besta irracional, respetivamente; a mente virtuosa e a “mente de macaco.”

No fim da narrativa e passadas inúmeros conflitos e aventuras, os peregrinos chegaram finalmente ao reino do Buda, na Índia. Ao chegarem, o Buda conferiu-lhes a budeidade e dedicou algumas palavras a cada um dos peregrinos. A Sun Wukong, disse o seguinte: “Now, Monkey. We didn’t get off to the best starts, what with your urinating on my hand and my pinning you beneath the Five-Phases Mountain for five hundred years. Since then, however, you have embraced my teachings and truly distinguished yourself in defeating demons. For your unwavering loyalty, I appoint you Buddha Victorious in Struggle.” [Monkey King,338] (Ouve, Macaco. Não tivemos o melhor começo, contigo a urinar na minha mão e comigo a prender-te debaixo da Montanha das Cinco Fases durante quinhentos anos. Desde aí, todavia, abraçaste os meus ensinamentos e distinguiste-te realmente ao derrotar demónios. Pela tua lealdade inabalável, nomeio-te Buda Vitorioso na Luta.) Assim termina A Viagem Para o Ocidente:Sun Wukong, o macaco demoníaco que criou o caos na Terra e no Céu, redimiu-se e é agora um Buda.

Sun Wukong é um figura inquestionavelmente fundamental do folclore chinês e da cultura budista na China. Arquetipicamente, é um símbolo profundo da possibilidade de redenção e purificação dos nossos instintos mais animalescos, erráticos e violentos. Em termos históricos, a narrativa da sua conversão ao budismo pode ser um simbolismo do sincretismo entre o budismo e a religião folclórica chinesa e da adaptação dos seus espíritos enquanto protetores do Dharma, de um modo semelhante a como é descrito que Padmasambhava derrotou os demónios locais do Tibete – as deidades da religião bon, a tradição espiritual nativa tibetana – tornando-os protetores do Dharma.

Qi Tian Da Sheng, o “Grande Sábio Igual ao Céu” é uma divindade da religião popular chinesa que foi venerada ao longo de grande parte da história chinesa, e ainda hoje Sun Wukong tem altares a ele dedicados pela China. A Viagem Para o Ocidente mantem o seu estatuto de texto fundamental da humanidade, e é uma leitura pertinente para qualquer entusiasta da cultura oriental, do pensamento asiático, do folclore chinês e da filosofia budista, ou, simplesmente, para quem quer divertir-se com uma boa e cómica leitura.

Bibliografia:
– ChuangTse. Chuang Tse. Tradução de António Miguel de Campos. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2017, 86.
– Munindo, Ajahn. Dhammapada – Reflexões.Northumberland: Aruna Publications, 2021.
– Wu Cheng’en. Monkey King. Tradução de Julia Lovell. Dublin: Penguin Classics, 2021.

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