Documentários História e Arqueologia

A história de Ashoka contada na série “Cosmos: Possible Worlds”

“Todos são meus filhos. Desejo aos meus filhos o bem-estar e a felicidade, e isso eu desejo a todos.” Ashoka

A mini-série documental e cientifica “Cosmos: Possible Worlds” estreou em 2020 e é a continuação da série “Cosmos: A Spacetime Odyssey” de 2014, que se inspirou na série “Cosmos: Personal Voyage” apresentada por Carl Sagan em 1980. “Cosmos: Possible Worlds” é apresentada pelo conhecido cientista e astrofísico Neil deGrasse Tyson.

Trailer oficial da série documental “Cosmos: Possible Worlds”.

No episódio 11 (Shadows of Forgotten Ancestors) é explorado as semelhanças e as diferenças entre humanos e animais. Ainda não estabelecemos parâmetros para o que significa ser “distintamente humano”, observa Tyson. Platão foi um dos primeiros filósofos a apresentar uma definição: “O homem é um bípede sem penas”. Aristóteles, um aluno de Platão, mais tarde proclamaria que o homem é um animal social e político. Nenhuma dessas definições tem muito peso; afinal, formigas, abelhas e outros insetos também são animais sociais. Sublinhando esse ponto, Tyson nos dá vários exemplos de espécies animais que se dedicam ao comércio e à arte, usam tecnologia e ferramentas, cuidam dos seus filhotes da adolescência até à idade adulta, e que escravizam e exploram outros animais e os mantêm em cativeiro. Outros animais mostram uns aos outros grande afeto e ternura. Parece que a única coisa que nos separa de outros animais, pondera Tyson, é a “nossa necessidade neurótica de nos sentirmos ‘especiais’.”

Neste episódio também se reflete sobre o livre-arbítrio e como somos ou não condicionados pela programação do nosso DNA. É abordado o “nascimento” do diabo na antiga Pérsia, e como um cão de família amado se torna numa besta fervente após ser infetado pelo virus da raiva. Aborda uma história marcante de compaixão entre macacos, e explora o potencial humano para a mudança. São várias questões levantadas para o espectador refletir.

O episódio é concluído com a história de Ashoka, um rei sanguinário do século II antes de Cristo que após um encontro com um monge budista se tornou num rei pacifico. Ashoka passou por uma mudança profunda. Tendo percebido o verdadeiro escopo do seu poder, o bem-estar social tornou-se a sua principal prioridade à medida que sua ideia de “parentesco” se expandia para incluir todos, até mesmo os animais. Ainda hoje ele é considerado um exemplo de um bom governante.

Todo o texto e produção gráfica e sonora da história (assim como de toda a série) são de excelência. Por motivos autorais não colocarei o vídeo, mas deixo aqui a narração (legendas) da parte final deste episódio.


O egoísmo sem coração do vírus da raiva, e a empatia transcendente dos macacos, são os extremos de um continuum, um que nós mesmos estamos.

Foi a evolução de sucessivos cérebros maiores através de gerações de nossos ancestrais que transformou o nascimento humano em uma experiência excruciante.

Sentimentos, pelo menos nos mamíferos, são controlados pelas partes mais baixas e velhas do cérebro. E pensamentos, pelas partes mais altas e recém evoluídas. Uma habilidade rudimentar de pensar foi sobreposta no comportamento programado pré-existente.

Essa é a bagagem evolucionária que levamos connosco para a escola, para o casamento, para a cabine de votação, para o linchamento, e para o campo de batalha.

E o que isso nos diz sobre o nosso futuro? Será nada mais que uma série de deprimentes repetições, sem chance de escape para nossas crianças?

Conheço uma história que me dá esperança.

É a saga de uma vida que diz que podemos mudar.

Faz tanto tempo que é difícil saber o quanto disso é verdade.

Isso aconteceu há alguns milhares de anos, o que é muito tempo para nós, mas apenas uns cinco segundos no Calendário Cósmico. O Calendário Cósmico comprime todo o tempo em um único ano. Não vejo outra forma de mostrar a todos o fato de que ainda somos muito jovens, muito novos para o universo.

Primeiro de janeiro é o Big Bang, e a meia-noite de 31 de dezembro do nosso ano cósmico é exatamente agora. Toda a evolução cósmica, quase 14 bilhões de anos, comprimida em um único ano terrestre.

Há apenas cinco segundos Cósmicos, que representa cerca de 2.200 anos, grande parte do mundo estava sob controle absoluto. Seus exércitos assolaram todo o planeta, levando tortura, estupro, assassinato, e escravidão em massa onde quer que fossem.

Um jovem saiu de uma região obscura chamada Macedônia, e em menos de uma década, esculpiu um império que ia do Adriático até além do rio Indo na Índia. Ao longo do caminho, Alexandre, o Grande, esmagou o implacável exército persa.

E quase ao mesmo tempo, o Rei Chandragupta conquistou todo o norte da Índia. Seu filho, Bindusara, assumiu o trono após sua morte.

[A história de Ashoka]

Quando a morte de Bindusara se aproximava, ele pretendia legar seu império a um herdeiro favorito.

E a lenda diz que outro filho, o que havia sido rejeitado por Bindusara, foi tão cruel em sua busca pelo poder, que ele assassinou cada um de seus 99 meio-irmãos.

Vestido com a elegância que somente um imperador podia, o filho odiado ficou diante do pai e declarou com desprezo: “Agora eu sou o seu sucessor!”

Este foi Ashoka. E ele só estava começando.

No século II antes de Cristo, o imperador indiano Ashoka iniciou um reino de terror conhecido pelo seu nível de sadismo e crueldade.

Quando os ministros de Ashoka se recusaram a cortar as árvores frutíferas que cercavam seu palácio, Ashoka disse: “Tudo bem, então cortaremos suas cabeças”.

Sua maldade não tinha limites. Ashoka construiu um magnífico palácio para suas inocentes vítimas. Eles não sabiam até que era tarde demais, que dentro do palácio haviam salas de tortura, projetadas para fazer as cinco formas mais dolorosas de morrer. Ficou conhecido por Inferno de Ashoka.

Mas essa não era a maior atrocidade de Ashoka.

Ele havia decidido concluir a conquista da Índia que seu avô havia começado.

A nação de Kalinga ao sul, sabia que não daria para fazer paz com um homem tão louco. Eles bravamente mantiveram suas posições enquanto o exército cercava a cidade. Quando já não aguentavam mais, Ashoka enviou suas tropas para a matança.

Enquanto Ashoka examinava seu triunfo, houve um que ousou se aproximar dele.

“Rei poderoso, você é tão poderoso que pode tirar milhares de vidas ao seu capricho. Mostre-me quão poderoso você realmente é, devolva a vida a essa criança morta.”

Quem era esse mendigo destemido que ousou confrontar Ashoka com seus crimes?

Sua identidade exata está perdida para nós, mas sabemos que ele era discípulo de Buda, um filósofo pouco conhecido na altura que viveu quase 200 anos antes.

Buda pregou a não-violência, consciência e compaixão.

Seus seguidores renunciaram à riqueza para vagar pela terra espalhando os ensinamentos de Buda pelo exemplo deles.

Este monge era um deles.

E com sua coragem e sabedoria, ele encontrou o coração em um homem sem coração.

Ashoka não foi mais o mesmo.

Ele ergueu este pilar, um de muitos, no local de seu maior crime. Gravado nele, um dos primeiros decretos de Ashoka. “Todos são meus filhos. Desejo aos meus filhos o bem-estar e a felicidade, e isso eu desejo a todos.”

Não que Ashoka estivesse violando as leis de seleção parental. Era a definição de quem era parente dele que se expandiu para incluir todo mundo.

Ele proibiu os rituais de sacrifício animal e caça esportiva. Ele montou clínicas veterinárias em toda a Índia, e aconselhou seus cidadãos a serem gentis com os animais. Ashoka cavou poços para levar água a cidades e vilas. Plantou árvores e construiu abrigos ao longo das estradas da Índia, para que viajantes se sentissem bem-vindos e os animais teriam a misericórdia da sombra. Ashoka assinou tratados de paz com pequenos países vizinhos que antes temiam o seu nome.

Ele governaria a Índia por mais 30 anos, e usou esse tempo para construir escolas, universidades, hospitais, até mesmo hospícios. Introduziu a educação das mulheres e não viu razão para elas não serem monjas. Instituiu assistência médica gratuita para todos, e garantiu que os remédios da época estivessem disponíveis para todos.

Decretou que todas as religiões fossem honradas igualmente. Ordenou a revisão judicial dos presos injustamente ou tratados severamente.

Os templos e palácios do reinado de Ashoka e a maioria dos pilares que ele ergueu por toda a Índia foram destruídos por gerações de fanáticos religiosos, indignados com o que eles diziam ser a sua falta de Deus.

Mas apesar desses esforços, seu legado continua vivo.

O budismo se tornou uma das filosofias religiosas mais influentes do mundo.

Os decretos de Ashoka foram esculpidos em pedra em aramaico, a língua de Jesus, algumas centenas de anos antes de seu nascimento.

Ashoka enviou emissários budistas ao Oriente Médio para ensinar compaixão, misericórdia, humildade e o amor pela paz.

Ouviu isso? Este é um dos poucos templos de Ashoka que sobreviveram aos vândalos, uma caverna nas colinas de Barabar na Índia. É famoso por seu eco. As ondas sonoras da minha voz ricocheteiam nas paredes até elas serem absorvidas pelas superfícies dos objetos, e não sobra mais nada. Mas o sonho de Ashoka é diferente.

Seu eco aumenta mais e mais com o tempo.

Quem somos nós?

Diga-me você.


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