No início de um retiro de quatro anos, Mingyur Rinpoche sofreu uma intoxicação alimentar que o deixou perto da morte. A descrição que se segue é um trecho do livro In Love With the World: A Monk’s Journey Through the Bardos of Living and Dying (2019, pp. 225-227), de Mingyur Rinpoche.
”Subitamente… boom!… consciência e vacuidade tornaram-se um, indivisíveis, tal como sempre é. Mas o reconhecimento nunca havia sido tão completo antes. […] O inteiro universo abriu-se e tornou-se totalmente unificado com a consciência. Sem mente conceptual. Eu não estava mais dentro do universo. O universo estava dentro de mim. Nenhum eu separado do universo. Nenhuma direcção. Nenhum dentro ou fora. Nenhuma percepção ou não-percepção. Nenhum eu ou não-eu. Nenhum viver, nenhum morrer. Os movimentos internos dos órgãos e dos sentidos abrandaram muito, até um funcionamento mínimo. Ainda compreendi o que estava a acontecer, mas não através de comentário ou voz ou imagem. Esse tipo de cognição não mais se apresentava. A claridade e luminosidade da consciência – para além de conceitos, para além da mente fixa – tornou-se o único veículo do conhecer.
Eu não estava mais ligado a qualquer sensação de um corpo ou mente distintos. Nenhuma separação existia entre mim, a minha mente, a minha pele, o meu corpo e todo o resto do mundo. Nenhum fenómeno existia separado de mim. Experiências aconteciam, mas já não a um mim separado. Percepções ocorriam, mas sem referência a ninguém. Sem quaisquer referências. Nenhuma memória. Percepções, mas nenhum percepcionador. O eu que eu tinha recentemente sido – doente, saudável, mendigo, budista – desapareceu como nuvens que se movem através de um céu iluminado. O topo da minha cabeça saiu; o meu ouvir e o meu ver tornaram-se apenas ouvir, apenas ver. Na melhor das hipóteses, as palavras apontam para algo além da mente conceptual que a mente conceptual não pode conhecer. […]
Tal como uma gota de água colocada no oceano se torna indistinta, infinita, irreconhecível, e todavia ainda existe, assim a minha mente fundiu-se com o espaço. Já não era uma questão de eu ver árvores, pois eu tinha-me tornado árvores. Eu e árvores éramos um. As árvores não eram o objecto da consciência; elas manifestavam consciência. As estrelas não eram o objecto de apreciação, mas a própria apreciação. Nenhum eu separado amava o mundo. O mundo era amor. o meu perfeito lar. Vasto e íntimo. Cada partícula estava viva com amor, fluido, fluindo, sem barreiras. Eu era uma partícula viva, sem mente interpretativa, clareza para além de ideias. Vibrante, energética, vendo tudo. A minha consciência não foi em direcção a nada, todavia tudo aparecia – como um espelho vazio tanto recebe como reflecte tudo à sua volta. Uma flor aparece no espelho vazio da mente e a mente aceita a sua presença sem convidar ou rejeitar.
Parecia como se pudesse ver para sempre; como se pudesse ver através das árvores; como se pudesse ser árvores. Nem sequer posso dizer que continuei a respirar. Ou que o meu coração continuou a bater. Não havia nada de individual, nenhuma percepção dualista. Nenhum corpo, nenhuma mente, apenas consciência. A taça que havia contido espaço vazio tinha-se partido, o vaso tinha-se estilhaçado, extinguindo interior e exterior. Mediante a meditação tinha conhecido a luminosidade-filha, mas nunca havia conhecido uma tão intensa união de luminosidade mãe e filha – a vacuidade infundindo a vacuidade, a bem-aventurança de amor e tranquilidade.”
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