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Ficção científica, cyberpunk e mundos futuristas sob a ótica budista

A ficção científica, enquanto género narrativo, além da mera especulação tecnológica tem servido para refletir sobre a condição humana, as inquietações existenciais e os dilemas éticos que emergem à medida que a tecnologia se entrelaça com a vida quotidiana. Dentre os seus subgéneros, o cyberpunk destaca-se por retratar mundos de alto desenvolvimento tecnológico, mas marcados por baixa qualidade de vida, desigualdades extremas e uma profunda alienação. Ao analisarmos tais narrativas por meio dos ensinamentos budistas, é possível identificar paralelos que iluminam questões centrais como impermanência, sofrimento, ilusão do eu, karma e interdependência.

Neste artigo, exploraremos a ficção científica e, de forma mais detalhada, o cyberpunk, à luz da sabedoria budista, referenciando obras paradigmáticas como Neuromancer, Akira, Ghost in the Shell, Serial Experiments Lain, Blade Runner e Matrix. Também abordaremos os contrapontos oferecidos pelas visões de futuro representadas pelo cyberprep e solarpunk, que apresentam cenários aparentemente utópicos, mas que, mesmo assim, suscitam questões espirituais e existenciais.


Conteúdo:


A ficção científica e o universo cyberpunk

A ficção científica é, antes de tudo, uma forma de interrogar o futuro e refletir sobre o presente. Por meio da imaginação, ela cria universos alternativos onde a tecnologia pode ser tanto uma fonte de esperança quanto de alienação. Dentro desse espectro, o cyberpunk se caracteriza pela convergência de uma tecnologia de ponta com uma realidade marcada por decadência social, corrupção corporativa e marginalização. Por conseguinte, cyberpunk é muito mais do que um conjunto de cenas de neons, realidade distorcida e corporações opressoras. Trata-se de uma narrativa que aborda questões existenciais profundas numa sociedade onde o desenvolvimento tecnológico atinge patamares incríveis, mas a qualidade de vida permanece marcada pelo sofrimento.

A obra literária Neuromancer, de William Gibson, é frequentemente apontada como um dos precursores do movimento, inaugurando um cenário onde hackers, inteligências artificiais e redes virtuais se misturam a uma estética urbana distópica. O mesmo ocorre em Blade Runner, que questiona a natureza da humanidade em meio a replicantes (androids mais aproximados ao ser humano do que robôs) e realidades artificiais. Outros exemplos como Akira, Ghost in the Shell e Serial Experiments Lain ampliam essa discussão ao explorar desde revoluções tecnológicas até crises existenciais que emergem na interseção entre homem e máquina. E em Matrix, os humanos vivem num mundo ilusório, assim como no budismo se ensina que estamos presos a ilusões criadas pelos nossos desejos e perceções errôneas.

Nesse contexto, o cyberpunk não é apenas uma visão futurista; é também um alerta e uma reflexão. Ao evidenciar os riscos de um desenvolvimento tecnológico desenfreado sem a devida atenção às questões humanas e éticas, ele provoca uma reflexão profunda sobre os caminhos que a sociedade pode seguir. Essa característica distópica – onde o avanço material não se traduz necessariamente em bem-estar ou satisfação existencial – torna o cyberpunk um campo fértil para análises filosóficas, especialmente sob a ótica budista.

O cyberpunk como reflexo do Samsara

O budismo, com os seus ensinamentos centrais sobre a natureza da existência, oferece um prisma singular para compreender as narrativas de ficção científica e cyberpunk. O universo cyberpunk, com a sua estética sombria e narrativas complexas, pode ser visto como um espelho ampliado do samsara – o ciclo incessante de nascimento, morte e renascimento, permeado por sofrimento. Em meio à opressão, à violência e à alienação, os personagens desses mundos lutam para encontrarem sentido e libertação. A seguir, abordaremos alguns dos principais conceitos budistas e como eles se manifestam nesses universos.

Impermanência (anicca)

O princípio da impermanência é um dos pilares do pensamento budista. Segundo o ensinamento, tudo o que existe está em constante fluxo – nada é permanente. Nos mundos futuristas da ficção científica, essa noção se torna palpável:

  • Mundos em constante mudança: Cenários futuristas, como os de Neuromancer ou Blade Runner, ilustram que tecnologias surgem e desaparecem, civilizações ascendem e caem, e, no fim, nada permanece imutável. Essa transitoriedade reflete o samsara, o ciclo incessante de nascimento, morte e renascimento.
  • Obsolescência e transformação: Em narrativas cyberpunk, a rápida evolução tecnológica é um espelho da impermanência. Assim como as estruturas sociais e culturais se desfazem e se reconstroem, os personagens se deparam com a realidade de que o que hoje é considerado o auge da modernidade amanhã pode se tornar irrelevante.
  • Estética urbana: No cyberpunk, a estética urbana ganha um destaque especial. As cidades surgem como organismos caóticos e mutáveis, onde o avanço tecnológico convive com a degradação e o abandono, criando um cenário de crescimento desordenado e impermanência. Esse contraste reflete-se em paisagens efêmeras, onde letreiros de néon piscam sobre ruínas corroídas pelo tempo. Nos becos apertados, iluminados apenas por letreiros intermitentes e hologramas difusos, proliferam atividades clandestinas, mercados paralelos e personagens à margem do sistema, reforçando a sensação de uma sociedade fragmentada onde o progresso e a decadência coexistem. A chuva incessante, especialmente em cenários noturnos, intensifica a atmosfera melancólica e introspectiva, transformando a própria cidade numa metáfora visual da impermanência e convidando os indivíduos a contemplar a vastidão urbana.
The Beauty Of Blade Runner 2049 / Música: Tears in the Rain, de Hans Zimmer

Seja na efemeridade dos implantes cibernéticos ou na mutabilidade dos ecossistemas urbanos degradados, o cyberpunk nos lembra que, assim como tudo na vida, o que hoje parece promissor pode amanhã se dissolver em poeira de circuitos. A visão budista, portanto, incentiva a aceitação dessa mutabilidade e o desprendimento do apego ao que é transitório, apontando que a busca por estabilidade absoluta é uma ilusão.

Sofrimento (dukkha)

Mesmo em cenários tecnologicamente avançados, o sofrimento – ou dukkha – permanece como uma constante. Essa é a Primeira Nobre Verdade ensinada pelo Buda, que reconhece o sofrimento como parte intrínseca da existência:

  • Tecnologia, sistemas opressivos, e a persistência do sofrimento: Em obras cyberpunk, apesar dos avanços científicos, o sofrimento humano persiste. A alienação, a desigualdade social e a opressão sistémica evidenciam que os progressos materiais não eliminam o dukkha. A dominação das megacorporações e a exploração das classes marginalizadas são representações do sofrimento sistémico. Esse cenário é ilustrado de forma marcante em Blade Runner, onde replicantes – seres artificiais criados para servir – sofrem uma existência repleta de angústia e desespero.
  • A alienação e a perda de sentido: O constante ciclo de upgrades, obsolescência e a fuga para realidades virtuais são metáforas modernas do samsara, onde a ilusão do controlo e perfeição esconde a natureza transitória da existência.
  • Conflitos existenciais: Filmes como Blade Runner e séries como Serial Experiments Lain mostram que, independentemente do nível tecnológico alcançado, os seres humanos permanecem enredados em dilemas internos – a angústia, a busca por identidade e o questionamento sobre o significado da existência são temas recorrentes que aludem ao sofrimento inerente à vida.

Dessa forma, o cyberpunk revela que a resolução do sofrimento não reside meramente no avanço tecnológico, mas na compreensão das raízes do dukkha e na busca de uma transformação interna.

The Beauty Of Blade Runner / Música: Blade Runner Blues, de Vangelis

A questão da consciência e o não-eu (anatta)

A doutrina do não-eu (anatta) desafia a noção comum de uma identidade imutável e permanente. No contexto cyberpunk, o encontro entre humanos e tecnologia — a fusão de corpos com circuitos, as consciências digitalizadas e as realidades virtuais — amplifica esta questão. A interseção entre inteligência artificial e consciência é um dos temas mais fascinantes do cyberpunk:

  • Identidade fluida e fusão entre humanos e máquinas: Em Ghost in the Shell, por exemplo, a personagem principal questiona a sua humanidade diante de extensas modificações cibernéticas. Essa fusão entre humano e máquina reflete a noção de que o “eu” não é algo imutável, mas sim uma composição transitória de experiências e processos. Se as nossas memórias podem ser reconfiguradas, se os nossos corpos podem ser substituídos ou aprimorados, onde reside a essência que nos define? Quem somos nós quando o corpo e a mente são trespassados por transformações tecnológicas?
  • Consciência e inteligência artificial: Obras como Neuromancer e Serial Experiments Lain exploram a possibilidade de consciências digitais e inteligências artificiais que, embora possuam características de personalidade, desestabilizam a ideia tradicional de identidade individual. Isso se alinha ao ensinamento budista, que postula que a noção de um eu separado é, em última análise, uma ilusão que perpetua o sofrimento.

A partir dessa perspectiva, o cyberpunk serve de metáfora para a natureza ilusória da identidade e convida o espectador a repensar a natureza da consciência e a reconhecer a fluidez e a interconexão entre todas as formas de existência.

Serial Experiments Lain Trailer

Karma e Ética

O conceito de karma, que enfatiza a causa e efeito das ações, é central na sabedoria budista. Num universo cyberpunk, onde os avanços tecnológicos abrem portas para novas possibilidades, os dilemas éticos e morais se intensificam, especialmente quando as consequências das escolhas humanas alcançam dimensões planetárias ou até galácticas:

  • Responsabilidade coletiva e individual: Em obras como Blade Runner, a criação de seres artificiais e a manipulação genética trazem à tona questões éticas profundas. Cada ação, seja ela de uma corporação poderosa ou de um indivíduo marginalizado, tem repercussões que se espalham e afetam a coletividade.
  • Dilemas morais em contextos futuristas: O avanço tecnológico no cyberpunk muitas vezes ignora os princípios éticos fundamentais. A ganância institucionalizada, representada pelas megacorporações, evidencia como o karma negativo pode se manifestar em formas de opressão, violência e degradação social.

A análise budista ressalta que a ética – baseada na compaixão, na responsabilidade e no reconhecimento da interdependência – é indispensável para evitar que o karma negativo se perpetue, lembrando que cada ação tem o potencial de gerar transformação.

Interdependência e Karma com efeitos coletivos

A interdependência, é o princípio de que todos os fenómenos surgem em dependência de condições interligadas. Esse conceito é particularmente revelador quando aplicado aos universos complexos do cyberpunk:

  • Ecosistemas interconectados: Em obras como Akira, o colapso de uma metrópole futurista não é apenas o resultado de falhas individuais, mas de uma série de interações entre fatores sociais, políticos e tecnológicos. Cada ação, mesmo que aparentemente insignificante, repercute e molda o todo.
  • Consequências das escolhas tecnológicas: A noção de karma evidencia que as escolhas éticas e tecnológicas têm impactos que atravessam gerações. O comportamento das corporações e o consumismo desenfreado influenciam o rumo da sociedade e do planeta. Muitas dessas escolhas podem ter graves consequências socias e ecológicas.

Essa visão nos alerta para a importância de se adotar uma postura ética e consciente, reconhecendo que as nossas ações, por menores que sejam, influenciam a teia interconectada da existência.

Apego e Desejo

O apego, entendido como a fixação em desejos, sensações, objetos materiais, entre outros, é outra fonte primordial do sofrimento segundo o budismo. No universo cyberpunk, esse apego se manifesta de diversas formas:

  • Busca por imortalidade e transcendência tecnológica: Personagens que se submetem a implantes, modificações corporais e até transferências de consciência – como visto em Altered Carbon – ilustram a busca por superar as limitações humanas. Contudo, essa tentativa de transcender a condição natural pode levar a uma nova forma de sofrimento, uma vez que o desejo insaciável perpetua o ciclo do dukkha. A busca por tentar superar as limitações humanos, em si não é um problema, mas torna-se problemática quanto é permeada por desejo sedento, apegos, ganancia, etc, agravando por exemplo desigualdades sociais e ampliando outras formas de dukkha.
  • Fuga através da realidade virtual: Em narrativas onde mundos virtuais oferecem uma fuga do sofrimento real, o apego a esses mundos ilusórios pode agravar a alienação da realidade.

Dessa forma, o cyberpunk demonstra que o apego à tecnologia e aos prazeres efémeros é, na verdade, uma armadilha que perpetua o sofrimento, convidando à reflexão sobre o valor do desapego.

Ganância, Ódio e Ilusão

No coração do sofrimento no universo cyberpunk estão as forças negativas da ganância, do ódio e da ilusão:

  • Ganância institucionalizada: As corporações, com os seus interesses voltados unicamente para o lucro, representam a personificação do apego e do desejo insaciável. Essa ganância, longe de trazer progresso genuíno, alimenta um ciclo de exploração e degradação.
  • Violência e conflitos: A violência que permeia as narrativas cyberpunk – seja em confrontos diretos ou em batalhas internas – reflete o ódio que surge do apego e da ignorância. Esse conflito interno e externo impede a realização de um estado de paz e harmonia.
  • Ilusão da realidade: A realidade virtual, tão presente em obras como Serial Experiments Lain, serve como um espelho para a maya, a ilusão que nos impede de perceber a verdadeira natureza das coisas. Assim como os ensinamentos budistas alertam para o engano dos sentidos, o cyberpunk nos mostra que a busca por uma existência perfeita através da tecnologia pode ser, em si, uma ilusão.

Essas histórias nos convidam a refletir: mesmo que a tecnologia prometa uma resolução utópica para os problemas humanos, ela não consegue, por si só, dissolver as raízes do sofrimento.

Os Cinco Agregados (khandhas) na Era Cyberpunk

Uma análise mais aprofundada pode relacionar os conceitos budistas dos cinco agregados com as transformações apresentadas nas narrativas cyberpunk:

  • Rupa (forma): As modificações corporais e os aprimoramentos tecnológicos alteram a forma física dos personagens, evidenciando a plasticidade do ser e desafiando a noção tradicional de corpo e identidade.
  • Vedana (sensação): As experiências sensoriais e emocionais, sejam de prazer ou dor, são intensificadas num ambiente marcado pelo excesso de estímulos, pela constante sobrecarga sensorial, ou pela manipulação através de interfaces neurais.
  • Sanna (percepção): A interação com realidades virtuais e a sobrecarga de informações transformam a maneira como os personagens percebem o mundo, muitas vezes distorcendo a realidade.
  • Sankhara (formações mentais): As crenças, hábitos e condicionamentos manifestam-se tanto na cultura dominante quanto nas respostas individuais aos desafios existenciais, evidenciando os padrões que perpetuam o ciclo do sofrimento.
  • Vinnana (consciência): A discussão sobre a própria natureza da consciência – se ela é resultado da atividade cerebral, de processos digitais ou de uma essência transcendente – coloca em xeque a ideia de um eu imutável, alinhando-se ao ensinamento do não-eu.
The Beauty Of Ghost In The Shell (2017)

A realidade como ilusão (maya)

Entre os marcos do cinema cyberpunk, Matrix se destaca não só pela sua estética inovadora e sequências de ação impactantes, mas também pela sua profunda abordagem filosófica. Em Matrix, o mundo como é percebido pelos humanos é, na verdade, uma simulação criada por máquinas que mantêm os indivíduos presos numa ilusão. Essa premissa dialoga de forma notável com o conceito de maya no budismo, que ensina que a realidade percebida é, em grande medida, uma construção ilusória:

  • A ilusão dos sentidos: Assim como o budismo nos alerta para os enganos dos sentidos e a natureza impermanente da realidade, Matrix mostra que o que consideramos “real” pode ser uma camada superficial, uma projeção que esconde a verdade sobre a nossa existência.
  • O Despertar: O percurso de Neo, o protagonista principal, espelha a jornada do despertar espiritual. Ao questionar a natureza da sua realidade e romper com as ilusões impostas pelo sistema, ele inicia um processo que lembra o caminho para a iluminação – um despertar para a impermanência, a ilusão do eu e o sofrimento inerente à existência.

Cyberprep e Solarpunk: o futuro Utópico sob a lente budista

Enquanto o cyberpunk expõe os perigos de um desenvolvimento tecnológico descompassado com os valores humanos, os movimentos Cyberprep e Solarpunk propõem visões contrastantes. Nesses cenários, a tecnologia evolui em harmonia com a natureza e o bem-estar social, apontando para futuros em que os desafios e os problemas ecológicos e sociais são de certa maneira resolvidos por meio de inovações sustentáveis. Mega cidades altamente avançadas, meios urbanos livres de poluição e com alta qualidade de vida, são o oposto das mega cidades do cyberpunk. Em essência, é uma visão de um futuro que incorpora o melhor do que a humanidade pode alcançar. Esses são exemplos de como o alto desenvolvimento tecnológico e material poderia beneficiar a humanidade e o planeta se usados e implementados de forma hábil. Contudo, apesar dos aspetos positivos desse tipo de sociedade, também existem riscos e desafios.

Aspectos positivos e o potencial transformador (kusala)

  • Redução do sofrimento grosseiro: Num ambiente cyberprep ou solarpunk, as cidades funcionam como organismos vivos em equilíbrio, onde os avanços tecnológicos são direcionados para a melhoria da qualidade de vida. Espaços limpos, acesso equitativo a recursos e soluções inovadoras convergem para minimizar o sofrimento imediato, refletindo uma harmonia entre progresso e bem-estar coletivo.
  • Prática da compaixão (karuna) em escala global: A ênfase na interconexão e no bem-estar coletivo permite a implementação de práticas que promovem a empatia e a responsabilidade social. O uso consciente da tecnologia torna-se num meio para alcançar benefícios não apenas individuais, mas de toda a comunidade.
  • Harmonia com a natureza: O equilíbrio entre o desenvolvimento e meio ambiente reflete o entendimento budista de interdependência, onde a saúde do planeta e o bem-estar humano estão intrinsecamente ligados.
  • Meios-hábeis (upaya): A tecnologia é empregada de maneira consciente e hábil, demonstrando que, com a devida intenção, os recursos podem ser canalizados para a transformação positiva da sociedade.

Dukkha sutil e o risco do conforto excessivo

Mesmo num futuro aparentemente utópico, as verdades budistas não perdem sua relevância:

  • O paradoxo da longevidade: Mesmo num futuro em que as doenças são minimizadas e a longevidade é ampliada, aproximando-se quase ao mundos dos devas, o envelhecimento, a impermanência e a inevitabilidade da morte continuam presentes.
  • Insatisfação existencial: O conforto material não resolve a inquietação interna, a angústia relacionada à impermanência e à inevitabilidade da separação dos entes queridos.
  • Sofrimento mental e emocional: As dores internas e o vazio existencial podem persistir, mesmo quando o sofrimento físico é mitigado.
  • Apego ao estado de conforto: A estabilidade extrema pode gerar um forte apego ao conforto conquistado, tornando-se uma armadilha para a prática do desapego.
  • Ganância, Ódio e Ilusão: Em menor ou maior grau, a mente continua também a operar e a ser dominada por emoções negativas, o que promove o sofrimento. Esse é também um dos motivos da dificuldade em construir uma sociedade mais saudável e feliz.
  • Impermanência: A promessa de um futuro ideal, por mais encantadora que seja, continua sendo uma condição impermanente.
  • Complacência espiritual: Em cenários de abundância, a motivação para buscar uma transformação interna pode diminuir. Esse fenómeno é comparável aos “reinos dos devas” na cosmologia budista, onde o prazer excessivo pode tornar-se um obstáculo para a busca do despertar. O perigo reside em confundir a satisfação material com a libertação do dukkha – o verdadeiro objetivo do caminho espiritual.

Desafios e oportunidades espirituais

Por outro lado, os futuros cyberprep e solarpunk também oferecem oportunidades inéditas:

  • Ambientes favoráveis à prática do Dharma: Com recursos abundantes e uma infraestrutura que privilegia o bem-estar coletivo, pode haver maior incentivo e tempo para a contemplação e o desenvolvimento espiritual.
  • Integração da tecnologia com práticas contemplativas: Ferramentas tecnológicas podem ser utilizadas para disseminar ensinamentos, conectar comunidades de prática e facilitar a introspecção. Essa integração pode ajudar a criar pontes entre a modernidade e a espiritualidade, utilizando o progresso material para catalisar o avanço interior.
  • Equilíbrio entre material e espiritual: A lição budista do Caminho do Meio ganha especial relevância em futuros utópicos. A busca por um equilíbrio genuíno – onde o desenvolvimento tecnológico seja harmonizado com valores éticos e espirituais – é fundamental para evitar os excessos que podem resultar em novo sofrimento.

Conclusão

A ficção científica, e o cyberpunk em particular, funcionam como espelhos que refletem não apenas as potencialidades da tecnologia, mas também as inquietações existenciais que permeiam a condição humana. Ao analisarmos esses universos através da perspectiva budista, encontramos ensinamentos valiosos que dialogam com os dilemas contemporâneos:

  • Impermanência (anicca): A constante mudança e o ciclo de ascensão e queda ilustram que nada é fixo e permanente, reforçando a necessidade do desapego.
  • Sofrimento (dukkha): Mesmo em sociedades tecnologicamente avançadas, o sofrimento persiste, lembrando que o progresso material não resolve as questões existenciais fundamentais.
  • Não-eu (anatta): A fusão entre humano e máquina e as reflexões sobre a identidade desafiam a ideia de um eu imutável, apontando para a fluidez da consciência.
  • Karma e Ética: As escolhas individuais e coletivas têm impactos profundos, evidenciando a importância de uma conduta ética num mundo interconectado.
  • Apego e Desejo: A busca incessante por imortalidade e satisfação através da tecnologia revela o risco de se prender a ilusões que, no fim, perpetuam o ciclo do sofrimento.
  • Interdependência: A interligação entre os sistemas sociais, tecnológicos e ecológicos reforça o ensinamento da origem dependente, convidando a uma reflexão sobre a responsabilidade coletiva.

Além disso, a comparação com futuros utópicos – representados pelo cyberprep e solarpunk – demonstra que, mesmo quando se alcança um estado de conforto material e harmonia com a natureza, os desafios espirituais permanecem. A redução do sofrimento grosseiro e a promoção do bem-estar coletivo são, sem dúvida, conquistas significativas. Porém, a verdadeira libertação, conforme os ensinamentos budistas, reside na transformação interna e na superação dos apegos que nos mantêm no ciclo do samsara. Ou seja, independentemente do cenário, as questões existenciais e espirituais permanecem universais e atemporais.

Em última instância, a ficção científica e o cyberpunk nos oferecem não apenas um alerta sobre os perigos de um progresso descompassado com os valores humanos, mas também uma oportunidade para refletir sobre caminhos alternativos. Ao reconhecer as verdades fundamentais – impermanência, sofrimento, não-eu, karma e interdependência – somos convidados a buscar um equilíbrio genuíno, onde a tecnologia e a espiritualidade caminhem juntas em prol de um futuro mais consciente e compassivo.

A partir desta análise, percebe-se que o cinema e a literatura de ficção científica não são necessariamente meros entretenimentos futuristas, mas podem ser vistos também como laboratórios de ideias que nos instigam a repensar o mundo em que vivemos, a questionar a própria natureza da existência e a procurar, através do Dharma, uma saída para o sofrimento. O cyberpunk, com as suas visões sombrias e complexas, serve como um espelho moderno do samsara, enquanto as visões utópicas do cyberprep e do solarpunk apontam para a possibilidade de um caminho equilibrado – o Caminho do Meio – onde a tecnologia pode ser utilizada de forma consciente para promover não apenas o progresso material, mas, sobretudo, o desenvolvimento humano e espiritual.

Embora não pertençam ao subgênero cyberpunk, obras como 2001: Odisseia no Espaço, de Arthur C. Clarke, e Contacto, de Carl Sagan, bem como as suas adaptações cinematográficas, merecem uma menção honrosa. Ambas exploram a evolução da consciência, o contato com inteligências superiores e o papel da humanidade no universo, oferecendo uma perspectiva complementar às narrativas distópicas e utópicas da ficção científica. Se o cyberpunk adverte sobre os perigos da tecnologia descontrolada e o solarpunk imagina um futuro harmónico, essas obras olham para o horizonte cósmico e questionam qual o destino da humanidade.

Assim, seja na obscuridade de um mundo distópico ou na aparente harmonia de um futuro utópico, o convite é o mesmo: reconhecer que, por mais avançadas que sejam as nossas criações, a verdadeira transformação depende da nossa capacidade de entender e transcender os apegos e ilusões que nos prendem. É nesse ponto de interseção entre tecnologia, ética e espiritualidade que a ficção científica se revela como uma ferramenta deveras interessante para a reflexão e o autoconhecimento – uma jornada que, em última análise, nos aproxima do ideal budista de libertação do sofrimento e da realização plena do potencial humano.

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