Theravada

Dhutanga (Tudong): práticas ascéticas do budismo, da tradição antiga a adaptações contemporâneas

A prática de Dhutaṅga é uma tradição ascética dentro do Budismo. Trata-se de um conjunto de práticas austeras e rigorosas adotadas voluntariamente por monges para fortalecer a disciplina, desapego e purificação mental. No budismo Theravada são mencionadas 13 práticas, enquanto que no budismo Mahayana são mencionadas 12. Elas podem ser adotadas por um curto período de tempo ou por um período mais longo. São as únicas práticas ascéticas autorizadas pelo Buda.

No contexto do budismo tailandês essas práticas são conhecidas como Tudong, que tornou-se um termo popularmente utilizado para descrever as longas caminhadas por parte de monges, no qual deixam os seus mosteiros e vagueiam pelas florestas, de aldeia em aldeia ou cidade em cidade, em busca de uma experiência mais austera e desapegada. São frequentemente praticadas, como por exemplo pela Tradição da Floresta da Tailândia, que faz parte do Theravada.

Ao longo dos séculos, essas práticas foram preservadas e adaptadas de acordo com diferentes contextos culturais. São praticadas maioritariamente por monges, mas leigos também podem adotar algumas delas.


Conteúdo:


Origens, significado e propósito

Na época do Buda, e até antes, alguns buscadores espirituais realizavam numerosas e variadas práticas severas, o próprio príncipe Siddhartha, antes de se tornar um Buda, adotou muitas dessas práticas ao ponto de ter ficado perto da morte. Ele acabou assim por perceber que o caminho estava entre os extremos e que essas práticas extremas não o levariam ao despertar ou libertação, que mais tarde viria a alcançar. Houve contudo um conjunto de práticas ascéticas que o Buda considerou úteis para alcançar o nibbana mais rapidamente e, por isso as permitiu e recomendou aos seus discípulos. Elas são geralmente apresentadas no contexto do Caminho do Meio (majjhimā paṭipadā), evitando tanto a indulgência quanto o ascetismo extremo.

Dhutaṅga (Pāli) ou Dhūtaguṇa (Sânscrito) pode ser traduzido como “sacudir” ou “livrar-se” de impurezas, refletindo o seu propósito: cultivar a renúncia e a disciplina, permitindo que os praticantes se libertem das amarras do desejo e da aversão e desenvolvam contentamento e simplicidade. Estas práticas não são obrigatórias, mas são consideradas um meio eficaz de aprofundamento da prática budista.

Dhutaṅgas reduz impedimentos inúteis, como comida excessiva, inúmeras roupas para cuidar, apegos diversos, etc. Elas são benéficas para todos aqueles que sejam capazes de as praticar. Desde que seja convenientemente adotado, nenhum dhutaṅga faz surgir qualquer tipo de cansaço extremo ou opressão do corpo ou da mente. Se um dhutaṅga envolve uma grande dificuldade ou um esforço demasiado difícil para um indivíduo, ele não deve praticá-lo, pois se tornaria uma prática extrema para o indivíduo. Todos são livres, de acordo com suas capacidades e desejos, para adotar um ou vários dhutaṅgas.

As treze práticas de dhutaṅga

A tradição Theravada reconhece treze práticas de Dhutaṅga, cada uma com um propósito específico:

  1. Uso de vestes feitas de panos descartados/remendados (Pāṁsukūlikaṅga) – usar vestes confeccionadas a partir de pedaços de tecidos descartados, promovendo o desapego e renúncia.
  2. Uso de apenas três vestes (Tecīvarikaṅga) – reduz o apego aos bens materiais.
  3. Esmolar comida (Piṁḍapātikaṅga) – mendicância de comida, alimentação exclusiva da comida recebida em esmolas, dependendo da generosidade alheia.
  4. Não omitir nenhuma casa ao ir buscar comida (Sapadānikaṅga) – aceitação do que é oferecido, sem escolher doadores, sem preferências.
  5. Fazer apenas uma refeição por dia (Ekāsanikaṅga) – cultivo da moderação.
  6. Comer apenas da tigela de esmolas (Pattapiṁḍikaṅga) – impede o apego a utensílios extras.
  7. Recusar qualquer alimento adicional (Khalupacchābhattikaṅga) – rejeição de ofertas extras, mantendo o contentamento.
  8. Viver na floresta (Araññikaṅga) – incentiva o contacto com a natureza e a solitude.
  9. Viver debaixo de uma árvore (Rukkhamūlikaṅga) – aproximação com a vida natural.
  10. Viver ao ar livre (Abbhokāsikaṅga) – evita a dependência de acomodações confortáveis.
  11. Viver num cemitério/local de cremação (Sosānikaṅga) – confrontação direta com a impermanência.
  12. Estar satisfeito com qualquer moradia (Yathāsanthatikaṅga) – evita a busca por conforto adicional.
  13. Dormir sentado (Nesajjikaṅga) – prática extrema de vigília e disciplina.

Podemos comparar essas práticas aos preceitos dos leigos, em que existem os 5 que se deve tentar seguir, e os 8 que são opcionais. Geralmente são os monges que voluntariamente adotam uma ou mais dessas práticas, mas nada impede que um leigo em determinado momento de vida realize alguma delas.

O Venerável Arahant Maha Kassapa foi designado pelo Senhor Buda como o melhor praticante dos 13 dhutaṅga, sendo que o Buda, quando Maha Kassapa já estava na velhice, pediu para ele abandonar os dhutaṅgas, que no entanto recusou de forma a encorajar aqueles que no futuro queiram seguir o seu exemplo. Esse episódio é relatado no Jiṇṇasutta (SN 16.5)

Essas observâncias são como um treino e, são todas encontradas nos antigos suttas (EBTs), embora nunca no mesmo lugar. No Capítulo II do Visuddhimagga, que é um dos textos pós-canônicos mais importantes da tradição Theravada, escrito por Buddhaghosa, essas práticas são mencionadas de uma forma mais estruturada.

Os 5 tipos de motivações

A qualidade moral de qualquer ação depende inteiramente da intenção (cetanā) e volição que a acompanham, o mesmo acontece com essas práticas ascéticas, em que a mera execução das mesmas não são consideradas como realmente um bom exercício.

As dhutaṅgas podem ser praticadas com diferentes motivações. Alguns monges ou mesmos praticantes leigos podem adotar uma delas ou mais com um propósito ruim, com por exemplo o objetivo de despertar a admiração das das demais pessoas, enquanto que outros podem adotar essas práticas com um propósito genuíno, como para se libertarem de kilesās, com o mesmo estado de espírito com que se toma um remédio.

Estes são os cinco tipos de motivação que podemos distinguir entre aqueles que adotam uma ou mais dhutaṅgas:

  1. Por completa ignorância, sem sequer conhecerem as suas vantagens: depois de apenas ouvirem dizer que os praticantes dos dhutaṅgas são de boa reputação, etc.
  2. Para se beneficiarem das vantagens que alimentam a ganância, tais como: receber muitos presentes, ser bem considerado pelos outros, causar grande veneração nos outros, atrair discípulos, etc.
  3. Por loucura, por completa ignorância, sem estarem em busca de absolutamente nada.
  4. Porque o Buda e os ariyas (Nobres) elogiam tais práticas.
  5. Para se beneficiarem de vantagens saudáveis, tais como: capacidade de contentar-se com muito pouco, enfraquecimento da ganância, facilidade em obter o que se necessita, tranquilidade, desapego, etc.

O Buda desaprovou as três primeiras motivações, ele aprovou apenas as duas últimas. Um indivíduo pode então adotar um ou vários dhutaṅgas somente se ele for motivado de acordo com a quarta ou quinta motivação. No entanto, um dhutaṅga é muito mais benefício se for adotado de acordo com a quinta motivação em vez da quarta.

No Visuddhimagga é expressamente declarado que: “Alguém pode estar pedindo esmolas; etc. por estupidez e tolice – ou com má intenção e cheia de desejos – ou por insanidade e desordem mental – ou porque tal prática foi elogiada pelos Nobres…” Esses exercícios são efetivamente bem praticados “se forem adotados apenas por uma questão de frugalidade, de contentamento, de pureza, etc.”

Também no Sappurisasutta, o Buda alertou para a arrogância que alguns monges podem desenvolver enquanto praticam dhutaṅgas.

Fatores necessários para a prática de dhutaṅgas e elementos a evitar

Fatores necessários a um praticante sério dos dhutaṅgas:

  1. saddhā: , confiança.
  2. hirimā: medo ou vergonha de cometer más ações.
  3. dhitimā: ser calmo, autoconfiante.
  4. akuha: indiferente em relação à notoriedade, renome e reputação.
  5. atthavasī: ter a realização do dhamma como objetivo único.
  6. alobha: franqueza.
  7. sikkhākāma: ser naturalmente e constantemente virtuoso.
  8. aḷhasamādāna: evitar que alguém quebre uma dessas práticas.
  9. anujjhānabahula: não criticar os outros.
  10. mettāvihārī : permanecer constantemente cheio de benevolência.

Os elementos que devem ser evitados:

  1. pāpiccha: desejar coisas não saudáveis.
  2. icchāpakata: oprimir a mente através de desejos.
  3. kuhaka: tentar atrair a consideração dos outros.
  4. luddha: cobiça, cupidez.
  5. odarika: estar abusivamente preocupado com a comida.
  6. lābhakāma: querer se envolver em vários assuntos.
  7. yasakāma: querer ter muitos discípulos, querer ser adorado por muitas pessoas.
  8. kittikāma: querer notoriedade, grande renome.

Tudong

Em tailandês o termo para dhutaṅga é Tudong e, geralmente refere-se especificamente à prática nómada e itinerante de monges. É um desenvolvimento histórico posterior.

Essa jornada de monges peregrinos consiste em caminhar longas distâncias, muitas vezes por florestas, montanhas e estradas rurais, dormindo ao ar livre, em tendas, cabanas ou pequenos templos, vivendo de esmolas e meditando em locais isolados. O objetivo não é apenas a prática da renúncia, mas também a oportunidade de aprofundar a meditação e fortalecer a autodisciplina. Essas peregrinações podem durar semanas, meses, ou até anos e, são feitas sozinhas ou com um ou mais companheiros.

As principais características do tudong incluem:

  1. Viver em áreas isoladas, frequentemente florestas
  2. Carregar apenas o essencial
  3. Dormir ao ar livre ou em cavernas
  4. Comer apenas uma vez ao dia
  5. Praticar meditação intensiva

O Venerável Ajahn Mun Bhuridatto foi um dos mestres mais conhecidos por reviver esta prática na Tailândia moderna, influenciando muitos outros mestres importantes como Ajahn Chah.

Ajahn Sucitto, no artigo “A First Tudong in Britain” publicado no seu blog, descreve a sua experiência de percorrer a Grã-Bretanha seguindo os princípios do Tudong. Ele destaca os desafios enfrentados em obter abrigo, depender exclusivamente de doadores para obter comida, intempéries, etc, bem como as lições transformadoras adquiridas ao longo da jornada.

A experiência do Ajahn Sucitto ilustra como o Tudong, mesmo em ambientes modernos e urbanos, continua a proporcionar uma oportunidade de autoexploração e de fortalecimento espiritual. Essa adaptação é um testemunho da universalidade dos ensinamentos de Buda, provando que a essência do Dhutaṅga transcende as fronteiras culturais.

Este tipo de prática por parte dos monges também reforça a ideia de que a disciplina monástica não deve estar confinada a círculos fechados ou a zonas de conforto. A itinerância e a dependência do sustento dos outros criam uma dinâmica interessante, onde a humildade é praticada não apenas no silêncio da meditação, mas também no contacto direto com a realidade social. Esta prática serve ainda para disseminar os ensinamentos budistas e quebrar barreiras entre o mundo monástico e leigo, reforçando a compaixão mútua e os laços comunitários.

Ainda que Tudong também seja uma prática mais comum entre os monges, os leigos também as podem seguir em certos períodos, com diferentes níveis de intensidade, com ou sem algumas adaptações.

PEREGRINAÇÃO BUDISTA: TUDONG, caminhando de cidade em cidade pelo sul do Brasil (Canal SAMASATI) – monges e leigos praticando tudong.

Benefícios e Desafios

A prática de Dhutaṅga ou Tudong proporciona uma série de benefícios, tais como:

  • Purificação mental: ajuda a superar os 3 venenos da mente: ganância, o ódio e a ilusão.
  • Fortalecimento da disciplina: cultiva a disciplina, a força de vontade, resistência e resiliência.
  • Desenvolvimento do desapego: reduz a dependência de confortos materiais e prazeres sensoriais.
  • Aprofundamento da meditação: o isolamento e a simplicidade auxiliam na concentração, criando condições favoráveis para a prática meditativa.
  • Contacto direto com a impermanência: práticas como viver em cemitérios reforçam a compreensão da transitoriedade da vida.

Por outro lado, os desafios são muitos:

  • Desafios mentais: lidar com a solidão, o desconforto e as tentações pode ser mentalmente exigente.
  • Dificuldades físicas: longas caminhadas e alimentação limitada.
  • Exposição ao clima: dormir ao ar livre pode ser desafiador.
  • Dependência de esmolas: nem sempre há comida suficiente.
  • Riscos para a saúde: a exposição aos elementos naturais e a falta de recursos podem acarretar riscos para a saúde.

Dhutaṅga ou Tudong é uma prática que desafia os seus praticantes a transcenderem limitações materiais e psicológicas, promovendo um aprofundamento no caminho do Dharma. Trata-se de um escolha pessoal que deve ser praticada com sabedoria e discernimento. Muitos dos que se aventuram nessa jornada relatam transformações importantes.

No contexto contemporâneo e urbano

Em tempos de consumismo desenfreado e distrações tecnológicas, a proposta do Dhutaṅga convida-nos a redistribuir as nossas prioridades. Adotar em pequena escala atitudes de simplicidade – como reduzir excessos e o consumo desenfreado, alimentação mais consciente, valorizar momentos de reflexão e cultivar gratidão pelas pequenas coisas – pode ser visto como uma adaptação moderna desse caminho ascético. Para muitos praticantes em contextos urbanos, a ideia de adotar pequenos hábitos de desapego pode ser entendida como uma semente plantada pelo exemplo dos ascetas. Mesmo que a prática mais intensa não seja viável para todos, a essência do ensinamento – reconhecer a impermanência e buscar a liberdade interior – pode inspirar mudanças significativas no estilo de vida contemporâneo.

Há muitas possibilidades que o praticante leigo pode adotar, seja frequentemente ou ocasionalmente, por períodos mais curtos ou mais longos, mais desafiantes ou menos. Algumas sugestões:

  • Peregrinações;
  • Caminhadas (de curtas a longas);
  • Viagem de bicicleta / mountain biking;
  • Acampar;
  • Mochilar (Viajar com poucos recursos, com bagagem que se reduz geralmente a uma mochila às costas e recorrendo a serviços baratos de alojamento, alimentação e transporte);
  • Meditar na natureza/floresta, integrar a meditação nas sugestões acima.

Assim, o legado de Dhutaṅga transcende as fronteiras monásticas e se torna uma fonte de inspiração para aqueles que desejam reencontrar um sentido mais profundo na experiência quotidiana.

Referências: Upavana, Dhammadana, Dhammawiki, Wisdomlib, Ajahn Sucitto, With Robes and Bowl (Bhikkhu Khantipalo), Wikipédia.

Veja também:


Discover more from Olhar Budista

Subscribe to get the latest posts sent to your email.

Deixe um comentário