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Alexandra David-Néel: uma incrível exploradora

Alexandra David-Néel foi uma exploradora belga-francesa, budista, espiritualista, cantora de ópera e escritora. Começou a viajar ainda durante a sua juventude, passou 14 anos estudando o budismo na Ásia e, aos 55 anos tornou-se a primeira mulher ocidental a entrar na cidade tibetana de Lhasa. A sua vida extraordinária durou mais que um século.

Nasceu em Paris, na França, no dia 24 de outubro de 1868. O seu pai Louis David foi jornalista e professor e a sua mãe era da Bélgica, país para onde a família se mudou e residiu até David-Néel completar 6 anos.

O início da busca pelo desconhecido

Tornou-se uma exploradora precoce fazendo incursões pelo seu quintal e, ainda antes dos 15 anos, ela já vinha experimentando um bom número de austeridades extravagantes: jejuns, tormentos corporais e receitas tiradas de biografias de santos ascetas encontradas na biblioteca de uma das suas parentes.

Aos 15 anos, enquanto passava férias com os seus pais em Ostend, na Bélgica, fugiu e chegou ao porto de Vlissingen, na Holanda, para tentar embarcar para Inglaterra. A falta de dinheiro a forçou a desistir. Essa era uma época em que qualquer comportamento desse tipo era escandaloso para uma menina, e até para uma mulher aventureira não era fácil. Essa também era uma época em que o interesse pelo ocultismo e o oriente crescia.

Com 17 anos e com um espirito livre e ousado, apanha um comboio para a Suíça. Um ano depois viajou de bicicleta para Espanha e depois para Londres, onde se envolveu com um grupo de estudos associado à Sociedade Teosófica. Ela passou longas horas na biblioteca da Sociedade, debruçada sobre traduções de textos chineses e indianos.

Em 1889 mudou-se para Paris para fazer cursos de religiões orientais na Universidade Sorbonne. Embora ela não achasse que a Sociedade Teosófica fosse do seu agrado, ela descobriu na filial parisiense uma excelente biblioteca. Foi lá que pela primeira vez leu sobre o budismo tibetano. O seu interesse pelo oriente se intensificou e nesse mesmo ano se terá afirmado como budista, ainda que até então não tenha conhecido qualquer professor ou praticante budista. “Quando adotei os princípios do budismo, não conhecia um único budista e talvez fosse a única budista em Paris”, disse David-Néel mais tarde ao 13º Dalai Lama.

Ela ingressou em várias sociedades secretas e também se interessou pelas ideias anarquistas da época e pelo feminismo. Por sugestão do pai, David-Néel frequentou o Conservatório Real de Bruxelas, onde estudou piano e canto.

Em 1891, financiada por uma herança da sua avó, ela viaja pela primeira vez para a Índia e, quando os fundos acabaram, ela se juntou como cantora a uma companhia de ópera itinerante, tendo estado em digressão pelo Norte de África. Na Casa da Ópera de Hanói assumiu a primeira posição como cantora durantes as temporadas de 1895-1896 e 1896-1897.

Casamento e 14 anos a viajar e a estudar por vários países do Oriente

A 4 de agosto de 1904, com 36 anos, ela se casa com o engenheiro Philippe Neél, de quem era amante desde 15 de setembro de 1900, e que a apoiou nas suas aventuras subsequentes. Como sempre, esteve à frente do seu tempo, ela hifenizou o seu sobrenome para incluir os nomes de solteira e de casada. Apesar do matrimónio, ela nunca chegou a viver com o seu marido.

Devido às suas palestras sobre religiões orientais, em 1911 ela ganhou alguma notoriedade em França, e dessa forma, conseguiu uma bolsa do Ministério da Educação da França para estudar sânscrito em Varanasi, na Índia. Ela parte com a promessa ao marido de retornar 19 meses depois. No entanto, além da Índia acaba por passar 14 anos a viajar por outros países orientais, tais como o Tibete, China, Nepal, Coreia, Mongólia e Japão.

Em Siquim, na Índia, conheceu três pessoas que influenciaram profundamente a sua vida: Sidkeong Tulku, o marajá de Siquim; o 13º Dalai Lama (não confundir com o atual 14º), fugido do Tibete após uma incursão da China; e o Lachen Gomchen Rinpoché. Este foi o início do período mais importante e gratificante da vida de David-Néel. Ela passou dois anos recebendo ensinamentos tântricos e estudando com o Lachen Gomchen Rinpoché, fez retiros e vários tipos de praticas do budismo tibetano e também esteve no Tibete.

David-Néel não queria ter filhos, ciente de que a maternidade era incompatível com o seu estilo de vida, porém, ela conheceu um jovem monge de 14 anos, o Lama Aphur Yongden, e este viria a se tornou o seu parceiro de exploração.

Em 1917, acompanhada por Yongden, viajou para o Japão. Foi recebida como celebridade, primeiro no Japão, depois na Coreia e na China, devido ao livro “Le Bouddhisme du Bouddha” (O Budismo do Buda). Foi na China que conheceu um ocidental que fizera a viagem proibida a Lhasa (capital do Tibete que na época era fechada a estrangeiros) e que lhe contou as suas aventuras. Mas a guerra civil estourou na China, forçando-a a fugir para a Mongólia. Na Mongólia ficou a morar no mosteiro de Kumbum, local de nascimento do famoso professor tibetano Tsong-khapa.

David-Néel no seu famoso livro “Mystiques et Magiciens du Tibet” (Tibete: Magia e Mistério), dedica um capítulo inteiro a Kumbum. Existiam 3800 lamas lá, ela meditou muito, estudou na biblioteca, copiou obras de Nagarjuna e traduziu o Prajnaparamita Sutra. Há 10 anos que estava fora da Europa e estava começando a perceber que não queria voltar até que realmente tivesse explorasse o Tibete. Particularmente, ela queria ser a primeira mulher ocidental a entrar em Lhasa.

E em 1924, David-Néel consegue finalmente visitar Lahasa e permanecer por dois meses. Para entrar sorrateiramente, ela teve que se disfarçar de tibetana, alongando o cabelo com a cauda de um iaque e tingindo-o de preto. Ela viajou sozinha com Yongden, se passando por lama e pela sua mãe. Até chegarem a Lhasa, viajaram vários dias sem comida sólida; foram duas vezes abordados por ladrões e ela teve que disparar uma pistola para os assustar; uma vez ficaram presos no meio de um rio; e numa rota traiçoeira entre duas passagens nas montanhas, uma nevasca prematura poderia tê-los deixado a morrer à fome. Quando abandonou Lahasa, David-Néel estava “sem dinheiro e em farrapos.”

Foi isso, mais do que qualquer outra realização, que tornou David-Néel uma pessoa famosa, e o livro “Voyage d’une Parisienne à Lhassa” (Viagem ao Tibete), é provavelmente o seu livro mais conhecido, lido por muitas pessoas mesmo sem nenhum interesse pelo budismo.

“Desde os cinco anos de idade”, escreveu David-Néel em Viagem ao Tibete, “desejava sair dos limites estreitos nos quais, como todas as crianças da minha idade, eu era mantida. Eu ansiava por ir além do portão do jardim, seguir a estrada que passava por ele e partir para o Desconhecido. Mas, estranhamente, este ‘Desconhecido’ imaginado pela minha mente de bebé sempre acabou sendo um local solitário onde eu poderia sentar-me sozinha, sem ninguém por perto.”

David-Neels, junto ao Palácio Potala, em Lhasa, no Tibete, no ano de 1924

Regresso a França, separação, novas viagens e falecimento

Em 1925 volta à França com o Aphur Yongden, é aclamada como uma aventureira, reencontra-se com o marido e após alguns dias a separação fica consumada. Ainda assim, David-Néel e Philippe Néel continuaram a trocar correspondência até à morte de Philippe em 1941. Em 1929 o Aphur Yongden é adotado e permanece seu companheiro por 40 anos.

David-Néel fica na França até 1937, altura em que decide viajar novamente para a China. Na China vê-se no meio da Segunda Guerra Sino-Japonesa e assistiu aos horrores da guerra, da fome e das epidemias. A sua situação não era fácil e em 1939 ela escreve uma carta a Marie-Therese Cosme. No inicio da carta David-Néel diz que:

“As difíceis circunstâncias em que nos encontramos na China parecem ser a desculpa apropriada para certas importunações. Espero que você compartilhe desta opinião e me desculpe por me dirigir a você sobre os meus assuntos pessoais, mesmo que eu não seja conhecida por você.

Encarregada de uma missão, encontrei-me nas montanhas, em Chansi, coletando informações interessantes sobre os estudos orientais, quando estourou a guerra. Era impossível para mim voltar para Pequim e, tendo chegado a Taiyuan, tive que fugir às pressas para evitar me encontrar em uma [zona?] conquistada e para garantir a liberdade de movimento. Durante a fuga, perdi parte da minha bagagem; outra parte foi salva e armazenada na missão batista inglesa em Taiyuan, enquanto que o que resta na minha casa em Pequim foi assegurado pelo embaixador e pelo Dr. Bussiere. […]”

A jornada chinesa ocorreu durante um ano e meio entre Pequim, Monte Wutai, Hankou e Chengdu.

A 4 de junho de 1938 voltou para a cidade tibetana de Tachienlu e fica em retiro durante cinco anos.

Em 1946, já com 78 anos e depois de já ter terminado a Segunda Guerra Mundial, Alexandra David-Néel volta à França.

Com 100 anos, renovou o seu passaporte “por precaução” e a 8 de setembro de 1969, com quase 101 anos, a sua vida chega ao fim. As suas cinzas foram transportadas para Varanasi para serem dispersas juntamente com as do seu filho adotivo, Aphur Yongden, que faleceu em 1955.

Uma mulher notável e inspiradora

Juntamente com traduções de textos sagrados tibetanos, David-Néel escreveu mais de 30 livros sobre religião oriental, filosofia e espiritualidade.

Viveu o suficiente para ver a sua filosofia pessoal não convencional – “Sem mandamentos! Viva a sua vida! Viva o seu instinto!” – entrarem na corrente sanguínea cultural do Ocidente na década de 1960. Os seus livros e aventuras influenciaram os escritores beat Jack Kerouac e Allen Ginsberg, e os divulgadores da filosofia oriental Alan Watts e Ram Dass.

David-Néel foi uma mulher de espirito livre, uma andarilha que passou anos num eremitério na montanha, que se sentou em salas de meditação com milhares de lamas, que estudou línguas e vasculhou bibliotecas em busca de ensinamentos originais, que viajou por muitos anos e percorreu milhares de quilómetros para mergulhar numa cultura que poucas pessoas tinham ouvido falar, que estudou e praticou o budismo nos lugares mais inóspitos da terra. David-Néel chegou mesmo a tornar-se “Lama” (titulo tibetano dado a professores budistas). A sua devoção ao budismo e a sua disposição para rastreá-lo até à sua fonte são impressionantes.

David-Néel recebeu inúmeras homenagens, incluindo a Medalha de Ouro da Sociedade Geográfica da França e a nomeação como Cavaleira da Legião de Honra Francesa. A sua casa em Digne, na França, agora é o Museu Alexandra David-Néel.

Referências: Library Georgetown; Tricycle; The Guardian; Wikipedia; Livro “Viagem ao Tibete” de Alexandra David-Néel, Editora Civilização.

“Para dizer a verdade, tenho saudades de um país que não é o meu. Estou obcecada pelas estepes, solidões, neves eternas e pelo grande céu claro de ‘lá em cima’. As horas difíceis, a fome, o frio, o vento que golpeava o meu rosto […] os campos sob a neve, dormindo na lama gelada, e as paragens junto das populações imundas, até a inverosimilhança, a cupidez dos aldeões, tudo isso pouco importava. Depressa passavam essas misérias e mergulhava-se perpetuamente no silêncio onde só cantava o vento, nas solidões esvaziadas até de vida vegetal, no caos de rochas fantásticas, nos cumes vertiginosos e nos horizontes de luz ofuscante. Um país que parece pertencer a outro mundo, um país de titãs ou de deuses. Ainda estou enfeitiçada.”

Alexandra David-Néel, no livro Viagem ao Tibete

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