Ação no Mundo Artes Marciais Vajrayana (Tibetano)

Monjas do Kung Fu: treinando, caminhando e pedalando pela igualdade de género, meio ambiente e transformação social

As monjas do kung fu representam uma fusão surpreendente entre espiritualidade, artes marciais, ecologia, ação social compassiva, e a luta pela igualdade de género.

Inseridas na Drukpa Kagyu, uma linhagem budistas com mais de mil anos com origem nos himalaias, essas mulheres não apenas dominam técnicas de defesa, mas também incorporam uma profunda prática espiritual e um forte comprometimento com causas ecológicas, humanitárias e sociais. A maioria delas vive e treina no mosteiro Druk Amitabha Mountai, no Nepal, mas muitas delas também vivem no Ladakh, Delhi, entre outros locais.


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Como tudo começou

A falta de acesso das mulheres a oportunidades, a carência de tratamento igualitário na região, o perigo de serem vítimas de violência, nomeada a agressão sexual, e o problema do tráfego humano, levaram a que Gyalwang Drukpa, chefe da escola Drukpa, após uma visita ao Vietname em que viu monjas treinado autodefesa, decidisse trazer a ideia de volta para o Nepal.

E assim, em 2008 ele contratou um mestre de kung fu vietnamita e, inicialmente com apenas 10 monjas começaram os treinos para aprenderem autodefesa e para construírem força interna e externa. O kung fu as ajudou com o foco meditativo, a permanecerem fortes e a trabalharem arduamente pelos outros.

As monjas acreditam que estão retornando às suas verdadeiras raízes espirituais ao defenderem a igualdade de género, a aptidão física, modos de vida ecologicamente corretos e o respeito por todos os seres vivos.

Kung Fu Nuns (Canal Great Big Story)

O treino e a disciplina

O treino das monjas de kung fu é intenso e rigoroso, mesclando exercícios físicos, técnicas de combate e práticas meditativas. As sessões podem incluir desde corrida, alongamentos e fortalecimento muscular até à execução de sequências coreografadas de movimentos, que exigem coordenação, agilidade e concentração. As monjas seguem rotinas que lembram os treinos dos antigos monges Shaolin.

O treino do kung fu é permeado por um profundo sentido de responsabilidade com todos os seres sencientes. Essa abordagem ética reforça a ideia de que a verdadeira força não reside apenas no poder físico, mas também na capacidade de servir a comunidade. Ao praticar kung fu, as monjas se preparam para situações adversas, mas também cultivam virtudes como a paciência, a concentração e a autoconfiança. Cada técnica executada com precisão e consciência reforça o compromisso com a transformação interna, que se reflete nas ações fora do mosteiro.

Jigme Tingdzin disse que: “Inicialmente, o treino de kung fu era uma experiência completamente nova e desconhecida — mas emocionante. Vindo de uma pequena vila em Ladakh, eu nunca tinha visto isso antes. Foi muito difícil e doloroso no começo; havia dias em que mal conseguíamos andar. Embora já estivéssemos dançando cham, não estávamos acostumadas com os alongamento extremos e a amplitude de movimentos. Mas logo todas nós sentimos a profunda sensação de confiança, força e independência produzida pelo treino.”

Tingdzin agora sente que o kung fu é uma ferramenta indispensável para as meninas. Poucos anos após o inicio do treino em artes marciais, as monjas começara a oferecer workshops de autodefesa para meninas do Ladakh e Delhi.

Além do kung fu, as monjas estudam o budismo e aprendem diversas habilidades, tais como, técnicas de administração, canalização e instalação elétrica. Fazem difíceis peregrinações a pé e de bicicleta, levam a educação ecológica aos moradores e prestam ajuda humanitária. Ainda que sejam conhecidas principalmente pelo kung fu, elas fazem muito mais do que isso. Todas elas têm como primeiro nome, Jigme, que em tibetano significa “aquela(e) que não tem medo”.

Meditação no Kungfun (Canal Drukpa Brasil) – Gyalwang Drukpa explica sobre o significado e efeitos profundos da prática do kungfu como caminho espiritual. Monjas compartilham os efeitos da prática nas suas vidas e na prática meditativa.

Empoderamento feminino e transformação social

Um dos aspectos mais notáveis das monjas do kung fu é o papel como agentes de transformação social e o desenvolvimento comunitário. Num contexto em que as mulheres muitas vezes enfrentam desafios relacionados à desigualdade e à violência, a prática do kung fu surge como um símbolo de resistência e autonomia.

Ao se dedicarem a uma arte marcial tradicionalmente dominada por homens, assim como outras atividades, essas monjas demonstram que a força e a determinação não têm género e que são capazes de fazer qualquer coisa, desafiando preconceitos enraizados nas comunidades em que vivem.

Em muitas regiões dos himalaias, onde a violência contra mulheres ainda é uma realidade preocupante, o kung fu torna-se um meio prático de garantir a segurança e a dignidade. Essa combinação de autodefesa com a promoção de valores budistas cria um ambiente de empoderamento que vai além do espaço físico do mosteiro, repercutindo em iniciativas comunitárias e projetos sociais. Elas destacam que os ensinamentos colocam a compaixão em ação e que a religião delas é ajudar os outros.

A prática espiritual por parte da monjas, o serviço aos outros e a ajuda na consciencialização de várias questões, tornaram-nas assim num exemplo inspirador para as mulheres da região, mas também para qualquer um de nós.

Longas e difíceis caminhadas, juntando a peregrinação tradicional com o ativismo ecológica

A cada ano as monjas fazem um “Eco-Pad Yatra”, que geralmente totalizam mais de 600 km a caminhar.

A iniciativa começou em 2009 com o primeiro Pad Yatra. O grupo incluiu 400 monjas, 200 monges, e ainda leigos e leigas. Foram 42 dias caminhando pelas montanhas dos himalaias e visitando locais importantes associados ao budismo vajrayana. Embarcar numa Pad Yatra é muito mais do que simplesmente empreender uma jornada a pé, é bastante desafiador tanto fisicamente quanto mentalmente, requer um esforço em conjunto e grande entreajuda.

Além do mais, essas peregrinações não são apenas para beneficio espiritual, elas desempenham um papel importante na conservação da natureza e educação ecológica e social. Durante essas longas caminhadas grandes quantidades de lixo são coletadas. Em 2009 foram recolhidas da trilha de trekking, riachos e ravinas, 60000 garrafas de plástico, 10000 embalagens de pastilhas e tabaco, e 5000 latas, impressionantemente apenas num terço da roda.

O grupo educa ainda os moradores locais sobre as mudanças climáticas, materiais biodegradáveis e não biodegradáveis, tolerância e diversidade. Durante essas viagens em que longas distancias são percorridas, mensagens de compaixão, solidariedade, igualdade e sustentabilidade são levadas a comunidades isoladas.

Uma monja, relatando a sua jornada, afirmou: “Caminhando, às vezes 10 horas por dia, ainda sobrava tempo para práticas e pujas de fogo conduzidas ao ar livre, às vezes com temperaturas de menos 15 graus. Canecas quentes de chá eram sempre recebidas com gratidão para reanimar os dedos, dormentes de tocar damaru (pequenos tambores) e sino.”

No 7º Eco Pad Yatra, foram percorridos os locais associados à vida do Buda, como Bodhgaya, Varanasi, Nalanda e Pico do Abutre, e abrangeu mais uma vez o combate à degradação ambiental, assim como os aspetos tradicionais de um Pad Yatra. O Los Angeles Times descreve o Eco Pad Yatra como “um apelo para salvar o planeta”.

Em 2012 Wendy JN Lee se juntou ao yatra pelos himalaias para produzir o documentário Pad Yatra: A Green Odyssey. “Sobrevivendo a ferimentos terríveis, doenças e fome, elas emergem com quase meia tonelada de lixo de plástico amarrado às costas, desencadeando uma histórica revolução verde no topo do mundo”, refere a sinopse.

Pad Yatra: A Green Odyssey (Trailer)

Numa entrevista Lee afirmou: “Eu não percebi o quão difícil seria, quanta força física seria necessária ou o quanto você aprende sobre si mesmo quando está exausto. (…) Com o tempo, você quase que fica mais feliz quando está exausto, porque não tem energia para ficar com raiva ou reclamar, então você apenas segue o fluxo. Acabei realmente me divertindo. Até aquele momento, acho que nunca estive tão feliz na minha vida.”

Yatras de bicicleta

As monjas também começaram a se aventurarem em peregrinações de bicicleta por toda a Índia e Nepal, para promoverem a paz mundial e o transporte verde. Esses eventos levam vários meses para serem concluídos e, geralmente têm que enfrentar a chuva, neve, ventos, e avalanches. “Nós já vimos de tudo”, afirmam elas.

Você pode imaginar a sensação e o impacto criado por uma caravana de monjas pedalando em massa por trilhos e pelas ruas das cidades — não em trajes monásticos, mas sim em elegantes equipamentos de ciclismo pretos e vermelhos, tênis e óculos escuros!

Trabalho humanitário, outras atividades e reconhecimento

Em 2015 o Nepal foi sacudido por um terramoto de magnitude 7,9 na Escala de Richter, provocando uma grande devastação. Muitas das aldeias afetadas eram inacessíveis às organizações de assistência tradicionais e à ajuda governamental. Com o apoio da Live to Love, uma organização internacional sem fins lucrativos, as monjas foram das primeiras trabalhadoras humanitárias a prestarem ajuda. Elas removeram escombros, limparam caminhos, prestaram assistência medica, distribuíram medicamente, entregaram milhares de toneladas em alimentos e ajudaram a construir milhares de abrigos temporários em toda a região. Elas conseguiram ainda fazer um resgate médico por helicóptero, resgates através de camiões, ajudaram no fornecimento de energia solar, e muito mais. Posteriormente ajudaram ainda a construir 201 casas para as vítimas do terramoto.

As monjas também são treinadas para auxiliarem os médicos do Live to Love Eye Camps, que fazem cirurgias de catarata gratuitamente. Muitas delas também são técnicas formadas para trabalho com painéis solares. Outras atividades incluem o resgate e cuidado de animais, música, dança e teatro. Elas têm auxiliado a Waterkeeper Alliance com o trabalho para garantir o acesso à água limpa e fresca nos himalaias. Mais de 200 monjas atuam como monitoras voluntárias da qualidade da água.

Em 2012 foram convidadas para uma demonstração de kung fu no Olympic Park, antes das Olimpíadas do Reino Unido e, desde então têm feito apresentações em muitos lugares diferentes para milhares de pessoas.

Em 24 de outubro de 2019, na cidade de Nova York, as monjas do kung fu receberam o prémio Asia Game Changer da Asia Society.

Num mundo marcado por conflitos e desigualdades, o exemplo destas “guerreias pacíficas” serve como um lembrete de que a verdadeira transformação social passa, primeiramente, pela mudança interior e que é possível fazer a diferença no mundo de forma significativa. Elas oferecem um modelo de empoderamento feminino que transcende as barreiras impostas por contextos históricos e culturais. Ao desenvolverem uma força que une corpo e mente, essas monjas não apenas se capacitam para enfrentarem ameaças externas, como também cultivam um espírito de solidariedade e compaixão que reverbera nas suas comunidades e além.

Documentário

Este documentário de 2023, produzido pela Arte TV, conta como é a vida das monjas do kung fu.

Arte: The Kung Fu Nuns from Nepal

Referências: Kung fu nuns (site oficial), Buddhistdoor, Lion’s Roar, Los Angeles Times, Wikpédia I, II.

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