Viagens e Lugares

A peregrinação budista de Shikoku: relato de uma peregrina

"Enquanto peregrina solitária, e estrangeira, podia olhar como oportunidade. Uma oportunidade também para abalar conceitos próprios sobre o que era ser peregrino e a peregrinação." - Marta Mundo

Por Marta Mundo, para o Olhar Budista
Inclui excertos do livro “Shikoku”

Os 88 lugares sagrados de Shikoku, Japão

A peregrinação budista Shikoku Henro 88 foi iniciada há mais de 1200 anos pelo monge Kukai e é uma oportunidade única para o treino espiritual, físico e mental. Depois da morte de Kukai, postumamente conhecido como Kōbō Daishi, começaram-se a visitar locais que lhe estão associados, desde templos, grutas, poços, entre outros. O peregrino, que percorre este caminho de cerca de 1200 km à volta da ilha de Shikoku, chama-se henro ou ohenro-san, e embarca numa viagem ascética de autoconhecimento e iluminação visitando lugares sagrados, os 88 templos.

A peregrinação tem a particularidade de ser circular, em que os templos estão distribuídos à volta da ilha. Geralmente percorre-se no sentido dos ponteiros do relógio, do Templo 1 ao Templo 88. A maioria completa o círculo, e regressa ao templo inicial, uma vez que no budismo o círculo possui representações profundas.

Atualmente, embora existam diversos meios de peregrinar, o desafio maior continua a ser para quem percorre a pé. Em Shikoku, existe muito respeito pelo o aruki-henro (o peregrino caminhante), pois este sobe montanhas, passa por rios e mares, atravessa florestas, bambuzais, vilas e entre campos de arroz. A população de Shikoku sabe o quão árdua é a viagem como peregrino, especialmente do aruki-henro e, por isso, reconhece a sua determinação e o seu esforço. Existe uma cultura de oferendas (osettai) ao ohenro-san e de hospitalidade japonesa que perdura ao longo dos séculos e que, de certa forma, ajudam a manter a peregrinação viva.

Perspectiva pessoal

Quando residia em Hiroshima, fiz uma viagem de bicicleta desde casa até Matsuyama, na ilha de Shikoku, e quando descia uma colina, a 30 km do destino, vi uma jovem vestida de colete branco, calças castanhas e chapéu cónico. Pensei que fazia algum treino de artes marciais o que me deixou curiosa. Dias depois, perguntei à minha chefe então, que mora num templo, que me disse que tinha visto uma “ohenro-san”. Muito intrigada, a palavra “ohenro-san” ecoava na minha cabeça.

Uma vez que Shikoku Henro 88 se mostrava como um caminho da mente, do coração e do espírito, decidi tornar-me uma ohenro-san na primavera de 2019.

O primeiro dia

Certo e errado não existem

[…] O sol fazia sentir-se quente. Depois dos primeiros três templos visitados entrei na ruralidade típica de Shikoku. Percorria entre campos de arroz, bambuzais, hortas e por caminhos estreitos de asfalto. Estava fora do movimento citadino, mas mesmo assim o templo 4 estava recheado de excursões. Sentia-se a agitação. Grupos de peregrinos, aprumados de vestes brancas, liderados por guias oficiais, prestavam culto em corropio. Ora num altar, ora noutro – hondo, daishido. Uma excursão apenas poderia conferir uma atmosfera caótica ordenada no templo. Procurei a minha tranquilidade entre altares, num corredor alado pelas 33 estátuas de Kannon Bosatsu, mas logo ali fui engolida por um dos grupos frenéticos de seniores henro. Tentei tornar-me em um elemento arquitetónico, daqueles que ninguém dá muito reparo, para que os pudesse observar – o percurso, o movimento, o recitar do Sutra do Coração. Poderia encontrar depois a tranquilidade. Enquanto peregrina solitária, e estrangeira, podia olhar como oportunidade. Uma oportunidade também para abalar conceitos próprios sobre o que era ser peregrino e a peregrinação.

Assim que todos os grupos saíram respeitando a ordem dos horários apertados ficou uma tranquilidade estranha. Estava a ver o templo pela segunda vez. Não o conhecia sem agitação.

Lá fora, já não havia veículos grandes de excursão e o espaço estava mais desafogado. Era possível ver o templo e um céu azul e nuvens pontuais como um postal perfeito daqueles em que até se ouve os pássaros chilrear. Mais à frente, numa cabana de madeira, encontrava-se um ohenro-san sentado. Esperava que a agitação do templo passasse, disse-me. Estava a fazer a peregrinação sem pressa, sem horários. […]

O quinto dia

Receber ou retirar um sorriso

[…] Caminhava em direção ao templo 18, numa estrada nacional ao sabor dos semáforos. No mesmo lado da estrada havia outro ohenro-san e, por muito que o passo de cada fosse diferente, os semáforos ditaram o encontro. Foi quando, parados num vermelho, começámos a falar e acompanhámos por algumas centenas de metros. Ele, vestido de branco imaculado, abriu a sua mala-tiracolo branca e de lá tirou uns rebuçados, que muito sorridente me ofereceu. No momento não pensei duas vezes e recusei automaticamente, sempre que vejo doces de chupar não aceito sabendo que outra pessoa poderia apreciar mais que eu. Também ele reagiu de forma automática e deixou de sorrir, guardando os doces de volta. Muito se debateu a minha mente: se havia sido um contraste de culturas; se não deveria ter sido honesta; se deveria entender a harmonia nipónica; se deveria reciclar oferendas…

Não o ofendi mas só quando voltei a ter presença me apercebi que lhe tinha tirado o prazer de oferecer. E tinha interrompido a fluidez do dar e receber. […]

A experiência

A minha primeira experiência de percorrer a ilha de Shikoku, de completar o círculo, não poderia ter sido melhor. Os 50 dias pela ilha trouxeram-me alegrias, desafios, amigos e percepções profundas assim como a vontade de colocar tal em papel e partilhar a minha experiência.

Muitos creem que o espírito de Kobo Daishi ainda vagueia por Shikoku e que acompanha os peregrinos durante o seu caminho. Por esse motivo, o chapéu ou o bastão têm a inscrição 同行二人 (dōgyō ninin) que significa “dois caminham juntos”. São as muitas “coincidências” ao longo do caminho que levam a crer que não existem coincidências mas que algo maior acompanha – uma presença, que pode tomar as mais diversas formas, sejam pessoas, oferendas, situações, entre outros.

O meu segundo círculo começou a ser percorrido no inverno de 2021 e foi depois completado na primavera de 2022. Isto foi quando o Japão continuava ainda muito sensível em relação à pandemia, então, quer no caminho quer nos templos mal se encontravam ohenro-san. Foi uma experiência diferente mas mesmo assim recheada de “coincidências”. No fundo, as coincidências não são mais que uma presença atenta, da vida, do ambiente, dos outros, do universo. Uma comunhão com o próprio e o todo. Uma possibilidade de escutar mensagens. Uma oportunidade de estabelecer conexões.

O livro

Inicialmente, escrevi o livro “Shikoku” como um diário, acerca de cada momento impactante, capturando imagens, interações, sons e detalhes do caminho. No entanto, para dar prioridade a outro livro sobre cultura japonesa pausei a escrita sobre Shikoku por dois anos e, foi ao escrever um relatório sobre a peregrinação para a Fundação Oriente que, o sentido do livro mudou e, adotei uma abordagem de pesquisa, mantendo ao mesmo tempo uma perspectiva pessoal. “Shikoku, Ilha Sagrada de Contos e Encontros”, lançado no verão de 2023, apresenta a Ilha, Kōbō Daishi e aspectos do budismo. Aborda a história da peregrinação, passado e presente, bem como as perspectivas futuras e há também uma seleção de lendas dos templos. Além disso, o livro contém informações práticas, incluindo as formas de fazer a peregrinação, os tipos de hospedagem disponíveis, a cultura osettai, sinalização e muito mais. Além dos 88 templos, a peregrinação também é composta por pessoas. Pessoalmente, tive muito gosto em escrever sobre os peregrinos – suas motivações, o “aruki-henro”, o “henro-profissional”, o “henro-estrangeiro” e momentos “ichigo ichie”.

Ligações e contactos: Site pessoal, Site do livro, Instagram.

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