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O Zen e as Artes Marciais

O Budo é o caminho do guerreiro; agrega o conjunto das artes marciais japonesas. O Budo aprofundou de maneira direta as relações existentes entre a ética, a religião e a filosofia. Os textos antigos que tratam do Budo concernem essencialmente à cultura mental e a reflexão sobre a natureza do eu. Quem sou eu?

Trechos do livro Zen e Artes Marciais de Taisen Deshimaru.
Tradução de Ana Calazans
, publicado originalmente no blog Zen Kung Fu (artigo 1, 2, 3, 4, 5 ) e disponibilizado neste site com permissão da tradutora. A obra completa não tem tradução para português.

A Nobre Luta do Guerreiro

O Budo é o caminho do guerreiro; agrega o conjunto das artes marciais japonesas. O Budo aprofundou de maneira direta as relações existentes entre a ética, a religião e a filosofia. Sua relação com o esporte é muito recente. Os textos antigos que tratam do Budo concernem essencialmente à cultura mental e a reflexão sobre a natureza do eu. Quem sou eu?

Em japonês, Do significa o Caminho. Como seguir este caminho? Por qual método se pode obtê-lo? Não se trata somente do aprendizado de uma técnica, de um wasa, e muito menos de uma competição esportiva. O Budo inclui artes como o kendo, o judo, o aikido e o kyudo (arco e flecha). Portanto, o kanji bu significa também parar, suspender a luta. Pois, no Budo, não se trata somente de competir, mas de encontrar paz e autodomínio.

Assim, Do é o Caminho, o método, o ensinamento para compreender perfeitamente a natureza da própria mente e do próprio Eu. Este é o Caminho do Buda, o Butsu Do, que permite descobrir realmente a própria natureza original, despertar o ego adormecido de seu sonho (nosso eu estreito), e alcançar a mais alta e a mais completa das personalidades. Na Ásia este Caminho se converteu na moral mais elevada e na essência de todas as religiões e de todas as filosofias. O Ying e o Yang do Yi-King (I-Ching) ou “a existência é nada” de Lao Tsé encontram aqui suas raízes.

O que isto quer dizer? Que se pode esquecer o corpo e a mente pessoais e alcançar a mente absoluta, o não ego? Harmonizar, fundir o céu e a terra; a mente interior deixando passar os pensamento e as emoções. E, livre de seu ambiente, o egoísmo é abandonado. Esta é a origem das filosofias e das religiões na Ásia. A mente e o corpo, o exterior e o interior, a substância e os fenômenos: estes pares não são opostos nem dualistas, mas formam uma unidade sem separação. Uma mudança, seja ela qual for, influencia sempre todas as ações, todas as relações entre todas as existências. A satisfação ou a insatisfação de uma só pessoa influencia a de todas as outras. Nossas ações pessoais e as dos outros são interdependentes.

“Sua felicidade deve ser a minha felicidade e se choras chorarei contigo. Quando estais triste tenho que entristecer-me e quando sois feliz devo ser feliz também”. Tudo está ligado, tudo se une no universo. Não se pode separar a parte do todo: a interdependência rege a ordem cósmica.

Em cinco mil anos de história oriental, a maioria dos sábios e dos filósofos se concentrou sobre este espírito, sobre este caminho, e o transmitiu.

O Shin Jin Mei1, livro muito antigo de origem chinesa, diz “Shi Do Bu Nan…” o caminho mais alto não é difícil, mas não devemos escolher. Não devemos ter preferências, nem gosto, nem desgosto. O San Do Kai2 também diz: “Existirá uma separação como entre uma montanha e um rio se tiverdes ilusões”.

O Zen significa o esforço do homem na prática da meditação, o zazen. Esforço para alcançar o domínio dos pensamentos sem discriminação, a consciência para além de todas as categorias, englobando todas as expressões da linguagem. Esta dimensão pode ser alcançada pela prática do zazen e do Bushido.

A Sabedoria Imóvel

A mente do mestre está sempre mudando. Não permanece sobre uma só coisa ou uma só pessoa. Deixa passar… O corpo tampouco permanece. A substância do ego é Fu Do Chi, “sabedoria imóvel”. Entre a intuição, a sabedoria e a ação do corpo, há sempre unidade. Aqui se encontra o segredo do Zen e das artes marciais. Da mesma maneira que as artes marciais não são somente um esporte, o zazen não é um tipo de terapia ou de cultura espiritual.

As artes marciais se constituíram no principio como um método para matar pessoas. A espada japonesa, o tachi3, é uma espada grande, mas tachi quer dizer também “cortar”. No kendo, Ken, como Tachi, quer dizer “espada” e também “cortar”, de modo que kendo significa “o caminho que corta”. Claramente o kendo remonta aos tempos pré-históricos no Japão. Mas a verdadeira escola do kendo começou em 1346, criada pelo samurai Nodo, seguido em 1348 por Shinkage.

No começo, os samurais desejavam sempre obter poderes objetivos, excepcionais e mágicos. Queriam ser capazes de não ser queimados pelo fogo, de não ser esmagados por uma rocha… Então treinavam sua mente para obter dons sobrenaturais. Queriam obter estes poderes misteriosos, portanto, tinham um objetivo. Mais tarde, o Zen os influenciou. Myamoto Musashi, por exemplo, que foi o maior mestre do kendo do Japão, se converteu também em um sábio. Dizia: “Se deve respeitar a Deus e Buda, mas não se deve depender Deles”. O método, o Caminho que era uma técnica de matar pessoas se transformou em um método para cortar a própria mente. Caminho do espírito de decisão, de resolução e determinação. Este é o verdadeiro kendo japonês, o verdadeiro Budo. Deve-se ser forte e obter a vitória graças ao espírito de decisão. Situar-se mais além da norma, transcender o combate, fazer dele uma vitória espiritual. Nessa época, no entanto, estas práticas não tinham nada de esportivas, contrariamente ao que ocorre hoje em dia na Europa. Os samurais tinham uma visão mais elevada da vida.

O Zen e as artes marciais não fazem parte de um método de saúde. Os europeus querem utilizar sempre as coisas. O espírito do Zen não pode ser encerrado em um sistema tão estreito. O Zen não tem nada a ver com uma “massagem espiritual”. O Kyosaku4 pode ser uma boa massagem para a consciência e para o corpo. Mas o zazen não é uma terapia que produz relaxamento e bem-estar e as artes marciais não são um jogo ou um esporte. Neles reside um sentido muito mais profundo e essencial: o da vida! E, consequentemente, o da morte, posto que os dois termos são de fato indissociáveis.

O verdadeiro kendo e o verdadeiro Zen devem estar além da relatividade, isto quer dizer: “deixar de eleger, de selecionar um lado ou outro no relativo”. Tomar uma só decisão! O ser humano é diferente do leão e do tigre. Consequentemente o Caminho do Budo deve estar mais além. O tigre e o leão são fortes e querem vencer, por instinto e desejo. Eles não pensam em abandonar seu ego. Mas os seres humanos podem estar mais além do ego e da morte. No Budo se deve chegar a ser mais forte que um leão ou que um tigre, abandonar o instinto animal apegado ao espírito humano.

No Japão, 200 anos atrás, antes da era Meiji, um mestre de kendo, Shoken, era perturbado por uma ratazana em sua casa. “O congresso de artes marciais dos gatos” é o título desta história:

Todas as noites em sua casa uma ratazana o impedia de dormir. Se via obrigado a descansar no meio do dia. Foi então ver um amigo que adestrava gatos, um domador de gatos. Shoken lhe disse: “Empresta-me o mais forte de seus gatos”. O outro lhe emprestou um gato de rua muito rápido e hábil em agarrar ratões; suas garras eram fortes e seus saltos potentes! Mas, quando entrou na casa, o rato foi mais forte e o gato fugiu. Este rato era realmente muito estranho. Shoken pediu então ao amigo um segundo gato, de padrão tigrado, selvagem, dotado de um ki muito forte, de uma forte energia e de um espírito combativo. Este gato entrou na casa e brigou. O ratão, porém, teve a supremacia e o gato escapuliu! Fez o teste com um terceiro gato, um gato branco e negro, mas este tampouco pode vencer. Shoken pediu então um quarto gato, preto, velho, muito inteligente, embora menos forte que o gato de rua e o gato selvagem. Entrou na casa. O ratão o olhou e se aproximou. O gato se sentou muito tranquilo e não se moveu. Então o rato começou a achar estranho. Se aproximou um pouco mais ligeiramente assustado, e, rapidamente, o gato o agarrou pelo peito, o matou e o levou para fora da casa.

Shoken, então, foi consultar seu amigo e lhe disse: “Há muito tenho perseguido este rato com minha espada de madeira, mas foi ele que me atingiu. Por que este gato negro pôde vencê-lo? Seu amigo lhe respondeu: “Devemos organizar uma reunião e interrogar os gatos. “Você fará as perguntas, pois é um mestre de kendo e certamente os gatos compreendem as artes marciais.”

Houve então uma assembleia de gatos presidida pelo gato negro que era o mais velho. O gato de rua disse: “Eu era o mais forte”. Então o gato negro lhe perguntou: “Por que não ganhou?” O gato de rua respondeu: “Eu sou muito forte, tenho muitas técnicas para agarrar ratões. Minhas garras são fortes e meus saltos potentes, mas esse rato não era como os outros”. O gato negro declarou: “Sua força e sua técnica não podem estar mais além da deste rato. Ainda que seu poder e seu wasa tenham sido muito fortes não terias podido ganhar apenas com suas arte. Impossível!” Então o gato tigrado falou: “Eu sou muito forte, eu treino sempre meu ki, minha energia e minha respiração com o zazen. Me alimento de legumes e de sopa de arroz, por isso minha energia é muito forte. Mas não pude vencer este rato. Por quê?’ o velho gato negro lhe respondeu: “Sua atividade e seu ki são fortes, porém este rato está mais além desse ki. Você é mais fraco que esse grande rato. Se estás apegado a seu ki isso se converte em uma força vazia. Se seu ki é demasiado rápido, muito breve, significa que és somente alguém cheio de paixão. Por isso, se pode dizer, por exemplo, que se sua atividade é comparável a da água saindo de uma torneira, a do rato é parecida com um potente golpe de água. Por isso a força do rato é superior a sua. Ainda que sua energia seja forte de fato ela é fraca porque confias demais em ti mesmo. Depois foi a vez do gato branco e negro que tampouco havia podido vencer. Não era muito forte, mas inteligente. Tinha o satori, havia passado todos os wasa e se contentava em fazer zazen. No entanto não era mushotoku (sem meta e nem espírito de proveito) e também ele havia tido que fugir.

O gato negro lhe disse: “És muito inteligente e forte. Mas não pudeste vencer a este rato porque tinhas uma meta. E a intuição do rato era maior que a tua. Quando você entrou na casa ele compreendeu rapidamente teu estado de espírito. Por isto não pudeste triunfar. Não soubeste harmonizar tua força, tua técnica e tua consciência, que permaneceram separadas em lugar de unificarem-se. Enquanto que eu, em um só instante, utilizei estas três faculdades inconscientemente, naturalmente e automaticamente. Desta maneira pude matar o rato. No entanto, perto daqui, em um vilarejo vizinho, conheço um gato ainda mais forte que eu. Ele é muito velho e seus pelos são grisalhos. Eu já me encontrei com ele e não parece muito forte. Dorme o dia todo. Não come carne, nem peixe, somente guenmai (sopa de arroz)… Algumas vezes bebe um pouco de sakê. Nunca agarrou um único rato porque todos têm medo dele e fogem de sua presença. Nunca chegam perto dele. Por isso ele nunca teve a oportunidade de agarrar um! Um dia ele entrou em uma casa que estava infestada de ratos. Todos fugiram apressadamente e mudaram de casa. Este gato podia caça-los até dormindo. Este gato grisalho é realmente muito misterioso. Tu deves tornar-se assim, estar mais além da postura, mais além da respiração e da consciência.

Grande lição para Shoken, o mestre de kendo!

Pelo zazen você já está mais além da postura, da respiração e da consciência.

O Caminho Duplo, Deixar Ir

No Budo a noção de sutemi é muito importante, Sute, abandono; Mi, corpo. A palavra significa então “jogar o corpo, abandonar o corpo”. Isto é válido não apenas no karate, mas também no kendo, no judo e em todas as artes marciais.

No kendo existem numerosas escolas. Mas todas são sutemi, ação de abandonar o corpo. A primeira escola se chama Tai Chai Ryu: Tai, corpo; Chai, abandonar, renunciar. Depois temos Mu Nen Ryu: Mu, negativo; Nen, consciência, abandonar a consciência e também Mu Shin Ryu: mente; portanto, abandonar a mente. Mu Gen Ryu: combater sem olhos, abandonar os olhos. Mu Te Ki Ryu: sem inimigo. Mu To Ryu: sem espada. Shijin Ryu: Shin, a mente verdadeira. Ten Shin Ryu; Ten, céu, espírito cósmico. Existem muitas escolas, mas todas têm em comum o sutemi; a ação de abandonar, de renunciar ao corpo, esquecer o ego, seguir somente o sistema cósmico. Abandonam-se os apegos, os desejos pessoais, o ego. Controla-se o ego objetivamente. Ainda que se caia, não importa onde, não se deve ter medo, nem estar ansioso. Devemos nos concentrar no “aqui e agora”, não economizar energia: “tudo deve provir do aqui e agora”. Deve-se mover o corpo naturalmente, automaticamente, inconscientemente, sem consciência pessoal. Enquanto que se utilizamos nosso pensamento, ação e comportamento se tornam lentos, duvidosos. Surgem perguntas, a mente se esgota, a consciência vacila como uma chama agitada pelo vento.

No Budo, a consciência e a ação devem estar sempre em unidade. No início do treinamento no aikido, no kendo e em outras artes, se repetem os wasa, as técnicas e os katas, as formas. São repetidas sem cessar durante dois ou três anos. Assim, também os kata e os wasa, formas e técnicas, se convertem em um hábito. No começo para praticá-los devemos nos servir da consciência pessoal. O mesmo ocorre para tocar piano, tambor ou guitarra, por exemplo. Ao final é possível tocar sem a consciência, sem apego, sem servir-se dos princípios. Pode-se tocar naturalmente, automaticamente. É possível criar algo novo por esta sabedoria. Da mesma maneira ocorre em nossa vida cotidiana. Isto é o Zen, o espírito do Caminho.

As grades obras de arte foram criadas para além da técnica. No mundo da tecnologia e da ciência, os grandes descobrimentos superam os princípios e as técnicas. Estar ligado a apenas uma ideia, a uma categoria, um sistema de valores é uma concepção falsa, contrária as leis da vida e do Caminho. Da ideia a ação se deve obter a verdadeira liberdade. No zazen, tanto no início como no final, a postura é o mais importante, porque todo nosso ser se encontra nela, em totalidade.

No Zen, como no Budo, se deve encontrar a unidade direta com a verdade autêntica do cosmos. Deve-se pensar mais além da consciência pessoal, com nosso corpo inteiro e não apenas com o cérebro. Pensar com todo o corpo.

Eis aqui um poema sobre a essência do arco e flecha, o segredo do kyudo:

A tensão da tensão
Meu arco está completamente tenso
Aonde vai a flecha na distância?
Não sei

E aqui um novo poema sobre o segredo do kendo:

Não se deve pensar
No antes e no depois
Para frente, para trás
Somente a liberdade
Do ponto médio

Também este é o Caminho. O Caminho do Meio.

Segredo do Budo, Segredo do Zen

(…) A intuição e a ação devem surgir ao mesmo tempo. Não pode haver pensamento na prática do Budo. Não existe nem um só segundo para pensar. Quando se atua, a intenção e a ação devem ser simultâneas. Quando nós dizemos: “O monstro está aqui. Como o matarei?”, quando se duvida, apenas o cérebro frontal entra em ação. Deste modo, o cérebro frontal, o tálamo, (cérebro profundo) e a ação devem coincidir no mesmo instante idêntico. Da mesma maneira que o reflexo da lua não descansa sobre o curso da água enquanto a lua brilha e não se move. Esta é a consciência hishiryo.

Quando durante o zazen digo “não mova, não mova”, isto significa de fato não permanecer sobre um pensamento, deixar os pensamentos passarem. Permanecer em perfeita estabilidade significa na realidade não permanecer. Não mover-se significa na realidade mover-se, não dormir. Isto é como um peão que gira: se pode considerar que está imóvel, mas ele se encontra em plena ação. Só se pode ver seu movimento no início de seu giro e quando está desacelerando ao final. Assim, a tranquilidade no movimento é o segredo do kendo, o Caminho da Espada. E também o segredo do Budo e do Zazen, que têm o mesmo sabor.

Este espírito é o mesmo em todas as artes marciais, sejam quais forem suas diferenças táticas e técnicas. Assim, o judo (ju, suavidade, do, caminho) é o caminho da flexibilidade (yawara). Mestre Kano foi seu fundador depois da revolução Meiji. Os samurais, esses guerreiros ferozes, aprendiam o yawara, a técnica da suavidade. No Japão, os samurais deviam aprender as artes da guerra e as da vida civil.

Deviam estudar o Budismo, Lao Tsé, Confúcio, e, ao mesmo tempo, aprender o judo, a equitação, o arco e flecha. Desde minha infância aprendi o yawara com meu avô paterno. Meu avô materno era doutor em medicina oriental. Desde essa época fui influenciado pelo judo e pelo espírito da medicina oriental. Então pouco a pouco compreendi que as artes marciais e o Zen têm apenas um sabor e que a medicina oriental e o Zen são uma unidade. Kodo Sawaki dizia em suas conferências que o segredo destas técnicas é o Kyo Shin Ryu, “a arte de conduzir a mente”.

Kata

P- O treinamento intensivo dos katas, os gestos básicos da técnica, não podem substituir a postura do zazen? Já que eles treinam a respiração, a concentração, a atenção…

R – Não se pode comparar a prática de uma meditação sentada, zazen, método de concentração, com o treinamento de exercícios de ação. Mas a pratica de zazen pode dar uma nova dimensão aos kata.

A verdadeira essência dos kata não se encontra nos gestos em si, mas no modo como a mente os torna justos. Não se deve pensar: “Devo fazer este kata desta maneira ou desta outra…”, mas exercitar o corpo-mente para criar, cada vez, um gesto total, no qual se encontre todo o ki, em um instante.

Viver o verdadeiro espírito do gesto: o kata, pelo treinamento, deve confundir-se com a mente. Quanto mais forte for a mente, mais forte será o kata.

P- Nos dojos de artes marciais existem muitos gestos que conduzem a concentração: a maneira de colocar os sapatos, os objetos pessoais, a saudação ao entrar…

R – Mas todos esses gestos são kata! A maneira de se comportar é kata. Quando se saúda, não se pode fazê-lo de qualquer maneira. No Ocidente se dá vagamente a mão e se inclina um pouco a cabeça; não se compreendeu nada da beleza do gesto! Temos que saudar de forma completa: juntar as mãos lentamente; os braços retos, paralelos ao solo; a ponta dos dedos chega até a altura do nariz. Depois se inclina o ombro até o solo, potentemente. Deve-se erguer-se com as mãos ainda juntas e colocar naturalmente os braços ao longo do corpo. Corpo ereto, nuca ereta, pés no solo, mente tranquila. (Com um gesto majestoso, Taisen Deshimaru se levanta e nos saúda). Desta maneira você testemunha todo o respeito que sente por vosso adversário, por vosso mestre, pelo dojo, pela vida! Algumas vezes me perguntam por que me inclino diante da estátua de Buda no dojo: não é a estátua a quem saúdo, mas a todos que estão aqui comigo no dojo e também ao cosmos inteiro.

Todos estes gestos são muito importantes já que ajudam a manter um comportamento correto. Significam dignidade e respeito, ajudam a nossa natureza a alcançar uma condição normal. Hoje em dia nada é normal, todas as pessoas estão um pouco loucas, com sua mente funcionando todo o tempo; veem o mundo de uma forma estreita, restrita. Estão devorados por seu ego. Creem ver, mas se equivocam: projetam sua loucura, seu mundo sobre o mundo. Não existe neles nenhuma lucidez, nenhuma sabedoria! É por isso que Sócrates, como Buda, e como todos os sábios, dizem antes de tudo: “Conhece-te a ti mesmo e conhecerás todo o universo!”.

Este é o espírito do Zen e do Bushido tradicional! Para isso, a observação do próprio comportamento é muito importante. O comportamento influência a consciência. Para comportamento justo, consciência justa. Nossa atitude, aqui e agora, influência a tudo o que nos rodeia: nossas palavras, nossos gestos, nossa maneira de estar, tudo isso influência o que se passa ao redor de nós e a nós mesmos. As ações de cada instante, de cada dia, devem ser justas. O comportamento no dojo reaparecerá em nossa vida cotidiana. Cada gesto é importante! Como comer, como vestir-se, como lavar-se, como ir ao banheiro, como economizar, como conduzir-se com os demais, com a família, com a esposa, como trabalhar, como estar completamente em cada gesto.

Não se deve sonhar a vida! Há de se estar completamente em tudo o que se faz. Este é o treinamento dos kata. O espírito do Zen e do Budo se inclina a isto: se trata de verdadeiras ciências do comportamento. Não tem nada a ver com a imaginação que transforma o mundo, como em muitas religiões. Devemos viver o mundo com nosso corpo, aqui e agora. E nos concentrar completamente sobre cada gesto.

Veja também:


Sobre Taisen Deshimaru | Lista de Mestres e Professores

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Notas:


  1. Ver Textes Sacres Du Zen Vol II, Edições Seghers, Paris.
  2. Ou “a essência e os fenômenos se interpenetram”, ver La Pratique Du Zen par T. Deshimaru, Edições Seghers, Paris.
  3. Espada utilizada até meados do século XIV no Japão, mais longa e mais curva que a katana. Sua produção a partir do século IX forjou a identidade da espada nipônica. Caiu em desuso por ser ineficiente no ataque a guerreiros com armadura. (Nota da Tradutora)
  4. Bastão que o mestre Zen ou os responsáveis pelo dojo se servem para despertar ou acalmar os discípulos que têm problemas em sua postura de zazen. A seu pedido lhes acerta um golpe sobre cada ombro em um ponto com muitos meridianos de acupuntura.

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