História e Arqueologia

Interações entre o budismo & a cultura europeia antiga

As primeiras interações entre o budismo e a cultura europeia remontam aos séculos iniciais do budismo. Elas foram duradouras e intensas, até serem em grande parte perdidas. Só muitos séculos mais tarde é que novas conexões foram iniciadas.

Tradução sob permissão do artigo “Interactions between Buddhism & Ancient European culture”, da European Buddhist Union | Ver original.

A Europa pré-cristã teve mais contacto com o budismo do que geralmente se supõe. O precursor desses contactos foi a criação do antigo Império Persa (cerca de 500 aC), que resultou em conexões económicas, diplomáticas e filosóficas entre a Ásia Central, a Pérsia e o Mediterrâneo. Até ao ano 393 dC (o ano em que o imperador Teodósio proibiu quaisquer costumes religiosos não-cristãos no Império Romano), as interações religiosas entre essas regiões também eram múltiplas. Está documentado, por exemplo, que monges budistas estavam presentes em Alexandria.

Após a ascensão do cristianismo no Império Romano no século IV e as conquistas islâmicas da Pérsia e da Índia no século VII, as conexões que existiam no mundo antigo foram em grande parte perdidas e o budismo e a Europa separaram-se um do outro. Levaria até século XIII para que novos contactos fossem feitos.

O Império Persa e o Buda

O Império Aqueménida (ou Império Persa Antigo / 550-330 aC) foi o maior império da história antiga, estendendo-se da Trácia e da Macedónia nos Balcãs até à Bactria e Gandhara perto do Indo. No seu auge, governou mais de 40 a 45% da população mundial, a maior percentagem na história sob uma única nação. Sob a Pax Persica, havia liberdade religiosa e de movimento, o que tornava possível o comércio e a troca de ideias da Europa até ao Indo. A Estrada Real Persa ia da Lídia até Susa (veja o mapa), ligando o Mar Egeu ao Golfo da Pérsia.

“O Império Persa também foi o primeiro império multinacional do mundo. Pois, ao contrário dos anteriores impérios puco comparáveis – como os assírios – ao povo em causa foi permitido um grande grau de autonomia, muitas vezes sob os seus próprios governadores e reis. As instituições e religiões locais foram respeitadas e até incentivadas: os deuses da Babilónia foram reintroduzidos e protegidos, os judeus exilados foram autorizados a retornar e o Templo de Jerusalém foi reconstruído com a ajuda de fundos imperiais. Um novo sistema maciço de organização e administração foi instigado: governos provinciais, estradas, impostos, bancos – todas as novas e sólidas instituições que sobreviveram ao eclipse desse império.” (Warwick Ball, Towards One World, Ancient Persia and the West, East & West Publishing Ltd, Londres, 2010, p 22-23)

Império Aqueménida | Créditos: Wikimedia (Anton Gutsunaev) – CC BY-SA 3.0

Todos os anos, representantes de todos os povos do império reuniam-se na Sede Real de Persépolis: “Muitos impérios contentavam-se em receber os seus impostos e lealdade simplesmente por remissões ou por meio dos seus agentes enviados do centro para as periferias a fim de recebê-los ou apreendê-los Mas a Pérsia impôs viagens anuais obrigatórias aos povos de qualquer canto do império (ou pelo menos aos seus representantes): pela primeira vez na história, um núbio se cruzaria com um indiano e com um cita (e muitos outros) – e não apenas uma vez na vida num encontro casual, mas numa base regular. Este era o verdadeiro internacionalismo. Mesmo sob o Império Romano, tal internacionalismo não existia: um rei súbdito, como Herodes, só podia visitar Roma uma vez na vida, e os governadores eram sempre enviados de Roma.” (Ball, op. cit., p. 25)

A maioria das cidades-estado gregas estavam espalhadas ao redor do mar Egeu. Os persas chamavam os gregos dos Balcãs (Atenas e Esparta, por exemplo) de ‘Jónios além-mar’ e os gregos que viviam na Ásia Menor (Mileto e Éfeso, por exemplo) de ‘Jónios à beira-mar’. A época do Império Persa foi a Idade de Ouro para os gregos na Ásia Menor: “Frequentemente não é valorizado, por exemplo, que grandes figuras da cultura grega como Anaximandro, Hecateu, Hipódamo, Pitágoras, Mausolo, Ctesias, Anaxágoras, Hipócrates, Heródoto e Heráclito, nasceram sob o domínio persa na Ásia Menor ou passaram grande parte das suas vidas como seus cidadãos… dos doze historiadores gregos que escreveram antes da Guerra do Peloponeso, todos, exceto um, eram do leste do Egeu – geralmente escrevendo ante o Império Persa.” (Ball, op. cit., p.39)

Devido ao Império Persa, o norte da Índia estava familiarizado com a cultura jónica/grega na época do Buda:

“No ano do nascimento do Buda, 480 aC, havia soldados indianos de Gandhara lutando na Batalha das Termópilas, que ocorreu 150 milhas a noroeste de Atenas. O expansionista império persa colocou assim os povos indianos e europeus em contacto na época do Buda. Há uma passagem no Cânone Páli onde o Buda menciona explicitamente as comunidades gregas e a sua forma de organização social, que ele compara ao sistema de castas na Índia.” (Stephen Batchelor, A Buddhist Voice for Europe, EBU AGM, 2010)

Alexandre, o Grande & Pirro de Élis

Após a conquista da Pérsia pela Macedónia reinada por Alexandre, o Grande (356-323 aC), novas cidades gregas como Alexandria no Cáucaso e Alexandria no Indo, foram fundadas na parte oriental do anterior Império Persa, criando assim uma grande área de cultura helenística no atual Afeganistão/Paquistão/Noroeste da Índia (Punjab). Isso acabou resultando no reino indo-grego no Indocuche (Caucasus Indicus) e no noroeste da Índia, e foi o início de uma interação mais intensa e duradoura entre o budismo e o helenismo.

Filósofos, como Pirro de Élis (ca 360 – ca 270 aC) e Anaxarco, viajaram com Alexandre da Grécia até à Índia. Em 327 aC Alexandre alcançou o leste de Gandhara, o canto sudeste da Ásia Central e o canto noroeste da Índia. Pirro ficou lá por dois anos e depois viajou de volta para a Grécia, onde passou grande parte de sua vida na solitude. Ele ensinou uma filosofia de vida prática, que em última instância leva à imperturbabilidade/tranquilidade (ataraxia, ἀταραξία), e pela qual foi admirado pelos seus contemporâneos. Epicuro tinha diferentes visões filosóficas, mas também recomendava e praticava a ataraxia.

O pirronismo (ou ceticismo pirrónico – um ramo do ceticismo clássico, semelhante mas não idêntico ao ceticismo académico mais conhecido) foi uma tradição filosófica baseada nos ensinamentos de Pirro ao qual pertencia o Sexto Empírico (160-210 dC /pirronismo tardio) e o David Hume (1711-1776 dC/neo-pirronismo), e que foi diretamente influenciada pelo budismo primitivo. Não há consenso quanto ao grau em que Pirro foi influenciado pelos seus professores gregos ou pelo budismo. Christopher Beckwith acha que há um claro paralelo entre os ensinamentos de Pirro e o Trilaksana:

“A parte mais importante dos ensinamentos básicos de Pirro relatados por Aristóteles, como a sua declaração surpreendentemente incomum sobre as três características de todas as coisas, é claramente a sua interpretação da afirmação do Buda sobre o Trilaksana, i.e., as três características de todos os dharmas.” (Christopher I. Beckwith, Greek Buddha: Pyrrho’s Encounter with Early Buddhism in Central Asia, Princeton University Press, 2015, p. 220)

“A versão de Pirro do Trilaksana é tão próxima da versão budista indiana que é virtualmente uma tradução dela: tanto o Buda quanto Pirro fazem uma declaração na qual listam três características lógicas de todas as coisas e lhes dão exclusivamente um prefixo de negação, ou seja, ‘todos elas são não-x, não-y e não-z.’…

Essa passagem sobre as três características, certamente que até é o fragmento mais antigo do texto doutrinário budista. Está firmemente datado de três séculos antes dos textos de Gandhara.

Agora, o Trilaksana não é apenas um ensinamento budista qualquer. Ele está no centro da prática budista e é considerado o coração e o âmago de qualquer tipo de budismo vivo.” (Beckwitch, op. cit, p. 31)

O Greco-Budismo

O primeiro europeu conhecido a ser ordenado monge budista viveu no século III aC e era um grego chamado Dharmarakshita. Está registado como tendo sido um enviado do imperador indiano Ashoka (304-232 aC). A interação entre a cultura europeia e budista floresceu especialmente nos reinos greco-indianos no atual Afeganistão/norte do Paquistão /noroeste da Índia.

O Buda, com feições de Apolo, ladeado à direita por Héracles (latim: Hércules) no papel de Vajrapani, protetor do Buda. O greco-budismo foi um sincretismo entre a cultura helenística mediterrânica e a cultura budista indiana, e floresceu por vários séculos. Este painel encontra-se no Museu Britânico. | Créditos: Wikimedia (Goldsmelter) – CC BY-SA 4.0; modificada com edição de cor.

O rei grego Menandro 1 Soter, do reino indo-grego Bactria/Gandhara (reinou entre cerca de 165 aC e +130 aC), tornou-se um famoso patrono do budismo.

O rei Menandro é conhecido na língua Páli como rei Milinda, e o livro ‘Perguntas do Menandro’ (em Pali: ‘Milinda Panha‘) faz parte de alguns Cânones Páli do Theravada, e relata os diálogos entre o rei Menandro e o sábio budista Nagasena, que resultaram na conversão de Menandro. O Milinda Panha menciona que o professor de Nagasena foi o monge budista grego Dharmarakshita (Páli: Dhammarakkhita).

O Império Romano

Sarmanaioi: monges budistas no Mediterrâneo

Os romanos tinham bons contactos económicos e diplomáticos com a Índia. Também está documentado que monges budistas estiverem presentes na Alexandria, e lápides budistas desse período foram encontradas na Alexandria com representações da roda do dharma.

O Padre da Igreja do século II, Clemente de Alexandria, escreveu a mais antiga referência conhecida do Ocidente ao Buda: “Entre os indianos, existem aqueles filósofos que seguem os preceitos de Boutta (Βούττα)” (Stromata, livro 1, capítulo 15). Ele também mencionou monges budistas do reino greco-indiano da Bactria quando fez uma lista das filosofias antigas que influenciaram a filosofia grega. O padre refere-se a eles como Bactrianos Sarmanas (Σαρμαναίοι Βάκτρων). (Observe que “todos os relatos datados e datáveis ​​de crenças religiosas-filosóficas indianas (a maioria das quais estão em fontes estrangeiras), desde a Antiguidade até à Idade Média, usam a palavra sramana (também escrita sarmana, samana, saman, etc.) específica e exclusivamente para praticantes budistas.” (Christopher Beckwith, Buda Grego, p. 94))

Maniqueísmo: introdução do Buda a um grande número de europeus

No século IV dC, o principal rival do cristianismo no Império Romano era o muito popular maniqueísmo, outrora uma das religiões mais difundidas no mundo. Essa religião sincrética e missionária foi fundada pelo profeta persa Mani (216-274 dC). Através do maniqueísmo, os europeus estavam familiarizados com a existência do Buda, pois Mani considerava as suas revelações uma combinação dos ensinamentos de Zoroastro, Buda e Jesus. Os maniqueus identificaram Mani como o Buda da Luz.

Havia comunidades maniqueístas florescentes em Roma e Cartago. O general romano Sebastianus era um maniqueísta que quase se tornou o imperador romano. Santo Agostinho, bispo de Hipona (atual Argélia) e um dos pais da igreja mais influentes do cristianismo ocidental, converteu-se do maniqueísmo para o cristianismo no ano 387 dC (logo depois que o imperador Teodósio emitiu no Império Romano um decreto de morte para maniqueus). O maniqueísmo tornou-se a religião oficial do Grão-Canato Uigur turco na Ásia Central no século VIII e sobreviveu na China até ao início do século XX.

Estátua do profeta Mani como o Buda da Luz, no Templo Cao’an perto de Quanzhou, Fujian, sul da China. Este templo é o único monumento maniqueísta na lista do Patrimônio Mundial da UNESCO (1991), e foi o último templo maniqueísta ativo (provavelmente em uso até ao início do século XX). O templo ainda está em uso como local de culto budista e é ocupado por algumas monjas budistas. Por isso, também foi descrito como “um templo maniqueísta disfarçado de budista”.

Devido à ascensão do cristianismo no Império Romano no século IV e às conquistas islâmicas na Pérsia e na Índia no século VII, as conexões que existiam no mundo antigo foram em grande parte perdidas e o budismo e a Europa se separaram por muitos séculos. Com as invasões muçulmanas, tanto o greco-budismo quanto o indo-budismo foram amplamente destruídos.

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