A esperança, frequentemente vista como uma força motivadora, é tratada de maneira única no budismo. Enquanto noutras visões ela pode ser enaltecida como uma virtude essencial, o budismo adota uma perspectiva mais complexa. Aqui, a esperança pode tanto ser uma armadilha de desejos quanto uma expressão de compaixão e sabedoria.
O dilema da esperança no budismo
Na visão budista tradicional, a esperança, quando enraizada no desejo (tanha) e na aversão, pode ser fonte de sofrimento (dukkha). Isso ocorre porque ela muitas vezes nos liga a expectativas futuras que estão fora do nosso controlo. Não obter o que esperávamos é geralmente vivenciado como algum tipo de infortúnio. Como observa a professora e praticante budista Joan Halifax: “Alguém que é esperançoso dessa forma tem uma expectativa que sempre paira no fundo, a sombra do medo de que os seus desejos não sejam realizados. Essa esperança comum é uma expressão sutil de medo e uma forma de sofrimento.”
Em contraposição à esperança baseada em desejos egoístas, uma alternativa é proposta: a “esperança sábia”.
A esperança sábia: uma abordagem diferenciada
Para Halifax Roshi, que usa esse termo, essa esperança não se trata de uma negação da realidade, não é ver as coisas de forma irrealista, mas sim ver as coisas tal como elas são, incluindo a verdade do sofrimento — tanto a sua existência, como a nossa capacidade de o transformá-lo.
Tudo é impermanente e interdependente. É quando percebemos que não sabemos o que vai acontecer que esse tipo de esperança ganha vida; nessa vastidão de incerteza está o próprio espaço de que precisamos para agir com sabedoria.
Muitas vezes ficamos paralisados pela crença de que não há nada a esperar — que a nossa doença não tem saída, que não podemos fazer nada quanto à situação política, que não há saída para a crise climática, etc. Torna-se fácil pensar que nada mais faz sentido, ou que não temos poder e não há razão para agir. Sim, o sofrimento está presente, não podemos negar. Há muitos milhões de refugiados no mundo, a mudança climática está transformando florestas em desertos, a injustiça económica, as desigualdades, o racismo e o sexismo continuam a existir.
Esperança sábia não significa negar essas realidades, significa enfrentá-las, abordá-las e lembrar o que mais está presente, como as mudanças nos nossos valores que reconhecem e nos movem a abordar o sofrimento agora mesmo.
A esperança comum está atrelada a desejos específicos, ela direciona o nosso anseio por felicidade de uma forma pouco hábil. Coloca o nosso bem-estar num futuro incerto e imaginado além do nosso controlo, alimentando assim o desejo e a fixação. Enquanto que a esperança sábia baseia-se em ações conscientes no presente, independentemente dos resultados. A prática do Dharma canaliza o nosso desejo por felicidade e harmonia de uma forma habilidosa, guiada por compaixão e entendimento. O ensinamento do Buda, ao afirmar que há uma maneira confiável de nos libertarmos do sofrimento, é fundamentalmente esperançoso, refere Oren Jay Sofer.
A chave está em agir com intenção pura, sem a fixação na expectativa de recompensas pessoais ou sucessos futuros.
Esperança e interdependência no budismo
O princípio da interdependência (ou pratītyasamutpāda) é fundamental para a visão budista da esperança. De acordo com essa doutrina, tudo o que existe surge em decorrência de causas e condições interligadas. Quando compreendemos essa realidade, a esperança deixa de ser uma projeção egoísta e se transforma num compromisso ativo com o bem-estar de todos os seres.
A esperança no contexto da impermanência
A impermanência (anicca) é uma das marcas centrais da existência segundo o budismo. Tudo está em constante transformação, e resistir a essa verdade gera sofrimento. Em vez de depositar esperança em resultados fixos, os ensinamentos budistas incentivam a cultivar uma mentalidade de aceitação, de contentamento, e adaptação às mudanças inevitáveis.
Nesse contexto, a verdadeira esperança não está em garantir que tudo se desenrole conforme os nossos desejos, mas em desenvolver a capacidade de responder com flexibilidade e equanimidade às circunstâncias da vida. Isso não implica resignação, mas uma postura ativa e consciente diante das mudanças.
A esperança no Caminho do Bodhisattva
Na tradição Mahayana, o ideal do bodhisattva — aquele que busca a iluminação não apenas para si, mas para o benefício de todos os seres — incorpora uma forma elevada de esperança. O bodhisattva age com compaixão, mesmo diante da incerteza dos resultados. A motivação não é o sucesso pessoal, mas o alívio do sofrimento alheio. Essa abordagem representa uma esperança altruísta, fundamentada na sabedoria e na compaixão, e que transcende o desejo individual por conforto ou segurança. É um compromisso inabalável com o bem coletivo, independentemente das circunstâncias.
“Como budistas, compartilhamos uma aspiração comum de despertar do sofrimento; para muitos de nós, essa aspiração não é um programa de melhoria do “pequeno eu”. Os votos de bodhisattva no coração da tradição Mahayana são, se nada mais, uma expressão poderosa de esperança radical e sábia — uma esperança incondicional que é livre de desejo”, afirma Joan Halifax.
Ayya Yeshe, refere que: “Esperança pode parecer um conceito muito cristão e dualista. Esperança é frequentemente ligada ao desejo e à ânsia, que os budistas consideram uma forma de sofrimento. Esperança (pela felicidade) e medo (do sofrimento), fama e infâmia, louvor e culpa, ganho e perda são os oito dharmas mundanos — estados de apego mental que nos mantêm presos a modos de ser ilusórios. Mas e se olharmos para a esperança como algo diferente do desejo? E se reconhecermos que ainda não somos iluminados, e que a esperança como resiliência — um compromisso de longo prazo com a prática e justiça social e compaixão, equanimidade, e regar as sementes de alegria e felicidade em nós mesmos — é uma parte necessária da coragem, força e resistência necessárias para nos tornarmos bodhisattvas, para nos tornarmos iluminados e para criar um mundo mais justo? Equanimidade não significa apatia, significa uma mente equilibrada que pode ver o quadro geral, uma mente calma e objetiva aberta a diferentes pontos de vista.”
Práticas budistas para cultivar a esperança sábia
Existem diversas práticas no budismo que ajudam a cultivar essa esperança sábia e realista, tais como:
- Anapanasati (Meditação de Atenção Plena à respiração): Ajuda a desenvolver a consciência do momento presente e a soltar expectativas desnecessárias.
- Metta Bhavana (Meditação de Amor-Bondade): Cultiva sentimentos de compaixão e empatia por todos os seres, alimentando uma esperança altruísta.
- Reflexão sobre a Interdependência: Promove a compreensão de que as nossas ações têm um impacto coletivo, incentivando a responsabilidade e a compaixão.
- Aceitação da Impermanência: Reconhecer que tudo está em constante mudança ajuda a lidar melhor com decepções e frustrações.
Nos ensinamentos originais do Buda, encontramos uma abordagem prática para lidar com as nossas aspirações e expectativas. O contentamento (santutthi) é apresentado como uma qualidade fundamental para o desenvolvimento espiritual. O esforço correto (sammā-vāyāma), como parte do Nobre Caminho Óctuplo, nos ensina a direcionar a nossa energia de forma hábil: prevenir estados mentais prejudiciais, abandonar estados prejudiciais já surgidos, desenvolver estados benéficos e manter estados benéficos já presentes. O Karaniya Metta Sutta (Snp 1.8) nos apresenta uma perspectiva transformadora através do cultivo de metta (bondade amorosa): “Assim como uma mãe protege o seu único filho mesmo com risco da própria vida, da mesma forma deve-se cultivar um coração sem limites em relação a todos os seres.” Este cultivo sistemático de metta oferece uma base sólida para a ação compassiva, independente dos resultados.
As Quatro Nobres Verdades nos fornecem um enquadramento completo para compreender e transformar a nossa experiência: reconhecemos o sofrimento (dukkha), compreendemos as suas causas (samudaya), vislumbramos a possibilidade da sua cessação (nirodha) e seguimos o caminho para essa libertação (magga). Esta estrutura nos permite agir com clareza e propósito, sem nos perdermos em esperanças irrealistas ou cair no desespero.
Conclusão: a esperança como caminho de transformação
A visão budista sobre a esperança vai além de uma simples expectativa de resultados futuros. Ela é um apelo à presença consciente, ao desapego e ao cultivo de ações compassivas no momento presente. Em vez de alimentar ilusões de controle sobre o futuro, o budismo nos encoraja a viver plenamente cada instante, reconhecendo que as nossas ações, por menores que sejam, contribuem para um mundo mais justo e harmonioso.
A verdadeira esperança nasce da coragem de enfrentar a realidade como ela é, com clareza e compaixão. Nesse sentido, a esperança no budismo não é um desejo passivo, mas uma força ativa de transformação — tanto interior quanto coletiva.
Referências: What is the Buddhist view of hope? (Lion’s Roar), The Hope We Need Now (Lion’s Roar), Helpless, Not Hopeless (Tricycle), Contentamento e esperança: ou porquê Paul Williams está errado sobre o budismo (Budismo e Sociedade). | Imagem de destaque gerada por IA.
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