O Zen geralmente não é associado ao Tibete, mas no passado teve uma forte presença no país das neves. Ambas as tradições têm mais em comum do que possamos imaginar.
A chegada do budismo ao Tibete
Segundo a lenda, o Dharma (ensinamento budistas) chegou ao Tibete como um presente de casamento. A lenda diz que no final do século VII, as famílias reais da China e do Nepal, ofereceram noivas a Songsten, que foi o primeiro dos poderosos reis do Tibete a unificar o país (e a assustar os seus vizinhos). Cada uma dessas duas princesas trouxe consigo um dote incomum: uma estátua do Buda. O templo de Jokhang, em Lhasa, foi então construído para abrigar esses preciosos presentes, que ainda hoje são exibidos com orgulho na capital tibetana. Essas duas mulheres notáveis são lembradas como as matriarcas do budismo tibetano, juntas plantaram as primeiras sementes dos ensinamentos de Buda na Terra das Neves.
Cerca de 100 anos mais tarde, outro rei, Trisong Detsen, decidiu que era hora de levar essa nova fé ainda mais a sério. Ele construiu o primeiro mosteiro budista tibetano na base de uma das montanhas considerada das mais sagradas, e o chamou de Samye, o Inconcebível.
A entrada do Zen no Tibete
Desde o seu inicio que o espirito ecuménico esteve presente no Samye. No centro do mosteiro fica um tempo de 4 andares projetado para refletir os diversos estilos arquitetónicos de todos os vizinhos do Tibete. Capelas e stupas menores ocupavam os terrenos ao redor, criando uma enorme mandala dentro das paredes externas circulares do mosteiro. Juntos, eles compunham um modelo de todo o universo, com todos os continentes e oceanos representados pelas 108 estruturas separadas. Budistas de várias tradições foram convidados a ensinar lá, e monges da Índia e da China logo passaram a residir aí. E assim começa a interação entre o tradição tântrica e Zen.
O Grande Debate em Samye: um confronto entre 2 tradições, o Tantra e o Zen
Talvez inevitavelmente, surgiram conflitos entre as várias escolas budistas em Samye. Como o famoso tibetologista inglês Sam van Schaik explicou em 2011 no seu livro “Tibet: A History”, os budistas tântricos indianos “insistiam na necessidade de combinar a meditação com a análise racional e as práticas básicas de conduta ética”, enquanto que os budistas Zen chineses sentiam que a iluminação exigia apenas que alguém “reconhecesse a verdadeira natureza da sua própria mente”.
As escrituras tibetanas há muito incluem um relato de como os professores indianos trouxeram “um caminho graduado no qual os ensinamentos tântricos e sútricos foram cuidadosamente apresentados como passos para a iluminação”, explica van Schaik no seu novo livro “Tibetan Zen: Discovering a Lost Tradition”, enquanto que os mestres chineses ensinavam a “meditação direta livre de conceitos”. E então, em algum momento da década de 790, de acordo com as histórias tradicionais, surgiram divergências doutrinárias entre budistas indianos e chineses na corte tibetana, e o imperador tibetano pediu que a situação fosse resolvida num debate formal. O debate resultou numa vitória decisiva do lado indiano, e assim, os professores Zen foram enviados de volta para a China.
Isso é o que os tibetanos chamam de o “Grande Debate em Samye”, supostamente realizado no templo de Jampa Ling, na extremidade oeste do mosteiro. Daquele ponto em diante, segundo a sabedoria popular, “a popularidade do Zen declinou no Tibete e os seus textos originais foram praticamente esquecidos”. Enquanto que o Zen prosperou na China, Japão, Vietnam, Coreia e quase todos os outros países Mahayana, no Tibete ele efetivamente desapareceu, e assim o budismo tibetano passou a evoluir exclusivamente das linhagens tântricas indianas.
Essa não é toda a história, o Zen provavelmente prosperou no Tibete durante séculos
O novo livro de van Schaik demonstra claramente que esses relatos unilaterais – incluindo o anterior do seu próprio livro – não são toda a história. Na verdade, o Zen provavelmente prosperou no Tibete por vários séculos, ensinado lado a lado com a abordagem tântrica que hoje consideramos como budismo tibetano.
Van Schaik prova isso, com a tradução pela primeira vez de vários textos Zen tibetanos importantes encontrados em cavernas perto da cidade chinesa de Dunhuang. Esse tesouro de centenas de escrituras budistas descoberto no início do século XX inclui escritos tibetanos de mestres tântricos e Zen, ao lado de uma coleção aparentemente aleatória de “cadernos, listas de compras, exercícios de escrita, cartas, contratos, esboços e versos obscenos.”
Esses primeiros manuscritos tibetanos, esquecidos por mais de mil anos, oferecem uma janela para a existência de uma tradição Zen tibetana que era praticamente desconhecida dos estudiosos, sejam tibetanos, europeus ou chineses. Essa “capsula do tempo” de escritos quotidianos com a presença de textos Zen e tântricos juntos, prova que ambas as tradições continuaram a ser estudadas pelos tibetanos muito depois da datação usual do confronto em Samye.
Nessas cavernas também foi descoberto um relado do Grande Debate de uma perspetiva chinesa. De acordo com o lado Zen, o debate foi realizado por correspondência ao longo de vários anos, e não pessoalmente em Jampa Ling, e segundo a perspetiva Zen, o mestre chinês venceu.
Os dois lados provavelmente tinham mais em comum do que poderíamos imaginar hoje
Esta é a contribuição mais importante de van Schaik para a compreensão popular do Grande Debate – o reconhecimento de que os dois lados provavelmente tinham mais em comum do que poderíamos imaginar hoje.
Estudiosos budistas já questionaram o relato tibetano convencional por pelo menos 50 anos, observando, por exemplo, que vários textos chineses foram incorporados aos cânones tibetanos Kangyur e Tengyur e que abordagens graduais e repentinas para o despertar são encontradas em muitos dos mais antigos sutras Páli. Mas o livro “Tibetan Zen: Discovering a Lost Tradition” de van Schaik, é a primeira tentativa de tornar as evidências acessíveis a não especialistas.
As tensões no Tibete entre os ensinamentos Zen e tântricos ecoam debates tão antigos quanto o próprio budismo. A questão de saber se a iluminação é uma experiência súbita ou gradual é explorada talvez de maneira mais famosa na tradição Zen, no chamado Sutra da Plataforma do Sexto Patriarca , o único texto Zen que normalmente recebe o título elevado de “sutra”, apesar de ser creditado a um mestre que viveu mil anos após a morte do Buda. Cópias deste reverenciado manuscrito budista também foram encontradas nas cavernas de Dunhuang, na China, e também descrevem uma disputa entre visões concorrentes da prática e do despertar. Mas, neste caso, o vencedor indiscutível é o patriarca zen Huineng e a sua “doutrina repentina” de iluminação inerente.
No entanto, a questão central parece longe de ser resolvida até hoje. Os ensinamentos zen e tibetanos modernos parecem oferecer abordagens diferentes para o paradoxo fundamental do budadharma: se somos todos fundamentalmente iluminados, porque não nos sentimos iluminados? Porque precisamos praticar? E porque a prática é tão difícil?
Como van Schaik explica cuidadosamente, as duas alternativas aparentes de iluminação gradual e repentina são, em muitos aspetos, uma falsa escolha, ou pelo menos não uma escolha que qualquer escola sobrevivente do budismo tenha feito de forma clara. O Zen Budismo pode ter se alinhado com o lado “súbito”, mas também desenvolveu uma ampla panóplia de rituais, práticas e literatura ao longo de muitos séculos. O budismo tibetano pode se identificar com a abordagem “gradual”, mas também fala de momentos de realização inesperada, chik charwaem em tibetano.
O Zen tibetano cobre práticas, textos e ideias que são, em alguns casos, dramaticamente diferentes do que frequentemente associamos ao Zen ou ao Tibete. A mais surpreendente delas são as combinações de Zen e tantra. Tanto os professores budistas tibetanos quanto os chineses Chan em Dunhuang aparecem nos manuscritos ensinando uma série de métodos que ligam explicitamente a meditação Zen à prática tantra sadhana. Por exemplo, as técnicas de meditação Zen conhecidas como “observar a mente” (técnicas muito populares em Dunhuang) eram aparentemente usadas como parte da prática tântrica. De maneira semelhante, alguns dos textos que van Schaik traduziu sugerem que “a plataforma de ordenação usada nos rituais Zen pode ser considerada uma representação física da mandala tântrica”. Talvez não por coincidência, van Schaik aponta para frequentes exortações ao Zen secreto encontradas nesses materiais. Podemos não pensar no Zen como um conjunto de instruções secretas, mas nas linhagens Dunhuang, os ensinamentos Zen, como as práticas tântricas, podem ser considerados especiais e esotéricas.
Van Schaik enfatiza que não quer chamar a interação entre o Zen e o tantra no período Dunhuang de “sincretismo”, o que implicaria que o Zen e o tantra fossem entendidos naquela época como duas coisas separadas. Em vez disso, ele argumenta que os manuscritos de Dunhuang revelam um mundo budista mais antigo, agora estranho para nós. Nesse mundo mais antigo de prática e transmissão, “as distinções firmes impostas pelas tradições posteriores” ainda não existiam; os significados de termos como “Zen” ainda estavam sendo definidos.
Existem vínculos entre o atiyoga (que nos manuscritos de Dunhuang é sinônimo de Dzogchen) e o Zen. Van Schaik pensa que o tantra e o Zen eram vistos como complementares e que ambos os papéis poderiam ser assumidos por um único professor, dependendo do público.
O Zen e o Budismo Tibetanos muitas vezes parecem estar em pontos opostos, de um lado a simplicidade do zazen, do outro a cacofonia colorida do universo tântrico, com uma vasta gama de rituais, relíquias e um panteão extravagante de divindades e demónios. Às vezes pode parecer que existe pouco em comum entre essas duas tradições, mas van Schaik nos lembra através do seu trabalho que essas duas grandes tradições nem sempre estiveram tão distantes uma da outra, e que é possível compartilhar os mesmos caminhos novamente. Van Schaik nos exorta a repensar muitas de nossas ideias sobre a história do budismo tibetano e do Zen (ou talvez possamos dizer tradições dhyana).
Imagem de destaque: um mosteiro no Tibete.
Referências (links externos):
The Lost Tradition of Tibetan Zen (Tricycle), Forgotten Encounters of Tibetan Zen (Lion’s Roar).
Veja também:
- O Reino perdido de Khotan
- Arte Budista Tibetana: Pinturas e Mandalas
- Alexandra David-Néel: uma incrível exploradora
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