História e Arqueologia

O Budismo nas Rotas Marítimas

Em terra, a Rota da Seda teve um papel importante na disseminação do budismo, mas não menos importante foi a disseminação do budismo por rotas marítimas da Bacia do Ganges, na Índia, até ao leste e interior da Ásia, nos primeiros séculos da Era Comum. Essa é uma parte crucial da história budista, os portos marítimos e os locais de conexão localizados nos rios desempenharam um papel significativo na expansão do budismo além da Índia.


Conteúdo:

  1. O Grande Círculo
  2. O comércio e o budismo na estrada marítima
  3. Monges viajantes, peregrinos e artesãos
    1. Faxian (337-422)
    2. Bodhidharma (440-520 ou 470-543)
    3. Yijing (635-713)
    4. Atisa (980-1054)
  4. Difusão da cultura budista: ensinamentos, arte e arquitetura
    1. Uma religião portátil
    2. Tradição escultural: representações de Buda e Bodhisattvas
    3. Arquitetura
      1. Stupas, chaityas e viharas (mosteiros)
      2. Mosteiros esculpidos na rocha
    4. Rituais e cerimónias
  5. 20 Templos Budistas ao longo da Rota Marítima

O Grande Círculo

As práticas, filosofia, arte e arquitetura budista originaram-se na Bacia do Ganges, mas acabaram se espalhando pelas áreas leste, central e sudeste da Eurásia, cobrindo uma área chamada pelo Dr. Lewis R. Lancaster de “o Grande Círculo”.

O arco terrestre setentrional (norte), que inclui a Rota da Sede, estende-se pelo interior da Ásia, da costa oeste da Índia, passando pelo Afeganistão e Paquistão, até a China. O arco marítimo meridional (sul) começa no litoral da Índia e do Sri Lanka e segue as rotas marítimas pelo sudeste da Ásia continental e ilhas adjacentes, até às cidades costeiras chinesas e de lá para a Coreia e Japão.

No livro “The Buddhist Maritime Silk Road”, o Dr. Lancaster introduz o conceito de “Grande Círculo do Budismo”, que abrange tanto a terra quanto o mar.

O ativo comércio fluía ao longo da “borda” desse Grande Círculo através de caravanas terrestres e embarcações. As viagens marítimas no arco sul dependiam dos ventos sazonais: as monções do verão sopram do sudoeste (maio a setembro) e invertem a direção no inverno (outubro a abril). Como resultado, os comerciantes marítimos desenvolveram circuitos de navegação que lhes permitiam usar os ventos das monções para viajar longas distâncias e depois voltarem para casa quando os padrões de vento mudavam.

O budismo prosperou em uníssono com esses sistemas internacionais de comércio terrestre e marítimo. Uma variedade de tradições budistas floresceu dentro do Grande Círculo, cada uma dessas formas de budismo tem textos, rituais e práticas distintas associados a ela.

O comércio e o budismo na estrada marítima

Os navios viajavam do leste da Ásia para a parte ocidental do Oceano Índico e de lá para o Mediterrâneo. A carga que circulava nas rotas marítimas era composta por uma variedade de produtos manufaturados e naturais. Isso incluía a seda da China, pimenta preta das florestas do sul da Índia e noz-moscada e canela do Sri Lanka e da Indonésia, bem como algodão, madeiras aromáticas, pedras preciosas, marfim, vidro, etc.

O budismo estava intimamente ligado ao comércio internacional ou transfronteiriço. As primeiras inscrições indicam que era comum os marinheiros orarem ao Buda por uma viagem segura. As rotas marítimas eram muito desafiadoras, pois muitas vezes eram assoladas por ciclones e tufões, e a pirataria era um perigo sempre presente. Como consequência, o apoio mercantil ao budismo ao longo dessas rotas de viagem ajudou a estabelecer a vida monástica muito além da Índia.

Monges e monjas também seguiam nesses navios mercantes, e os mercadores buscavam um bom karma ajudando-os a viajar para difundirem os ensinamentos do Buda. Todos esses viajantes ajudaram a espalhar as influências culturais e artísticas budistas pelo mar.

Monges viajantes, peregrinos e artesãos

Os primeiros monges budistas fizeram longas viagens para difundirem o budismo pela Ásia. Ao longo do tempo, a transmissão de ensinamentos e de tradições budistas se manifestou numa rica variedade de arquétipos pictóricos, esculturais e arquitetónicos em resposta aos contextos culturais mais amplos das regiões onde esses monges se estabeleceram. O comportamento ritual e cerimonial, juntamente com a música, também proliferaram e foram potencializados por esses vários encontros culturais.

Os professores e peregrinos budistas viajaram em duas direções: enquanto que monges e monjas se mudavam da Índia para introduzirem o budismo em novas áreas, peregrinos de comunidades budistas do Grande Círculo começaram a viajar para a Índia para obterem treino, para encontrarem novos textos canónicos e para venerarem os vários locais associados à vida do Buda. Monges de várias ordens monásticas também viajavam ao lado de comerciantes e marinheiros como enviados diplomáticos.

Artesãos habilidosos na criação de arte com temas budistas, aventuraram-se nos novos entrepostos da cultura budista para aconselhar na construção de complexos arquitetónicos, ajudando assim a espalhar influências culturais e artísticas pelo mar. No entanto, os registos dos primeiros séculos da difusão do budismo além da Índia são escassos, e os nomes de apenas alguns indivíduos carismáticos são conhecidos, tais como:

Faxian (337-422)

Faxian foi o primeiro peregrino budista chinês documentado. Viajou até à Índia por rotas de caravanas e retornou à China num navio mercante, tendo parado ao longo do caminho em Sri Lanka e Java, até ter desembarcado na Península de Shandong, na China, em 413 EC. O objetivo da sua viagem era encontrar textos que contivessem as regras de conduta para os monásticos. Após retornar, Faxian traduziu para chines os textos que coletou na Índia e no Sri Lanka. Como Faxian testemunhou e desempenhou um papel na disseminação do budismo além das suas origens na Bacia do Ganges, o seu relato nos dá um raro vislumbre do tamanho e da importância do movimento budista no século V EC.

Bodhidharma (440-520 ou 470-543)

Bodhidharma foi considerado um grande mestre Chan. Existem inúmeras histórias sobre a sua jornada e a sua prática budista no século V EC, mas é difícil distinguir a pessoa histórica e real da lenda. No entanto, há um consenso geral de que ele partiu do sul da Índia e viajou por mar para Guangzhou, na China. O seu método de transmissão é descrito como envolvendo a comunicação mente a mente. Por vezes ele é retratado sentado de frente para uma parede absorto em meditação. Hoje, Bodhidharma é considerado o fundador da tradição chinesa Chan, uma característica dominante da prática monástica chinesa contemporânea e das artes marciais.

Yijing (635-713)

Yijing foi outro peregrino chinês que rumou até à Índia por mar. Viajando num navio persa, ele chegou à capital do Reino Śrīvijayan em 671 EC. Durante a sua peregrinação de quase 25 anos, ele aprendeu sânscrito, estudou com respeitados mestres, nomeadamente na famosa Universidade de Nalanda, coletou textos budistas, e transcreveu e traduziu textos do sânscrito para o Chinês. Yijing retornou à sua terra natal em 694 EC, levando consigo textos em sânscrito e as respetivas traduções. Entre a sua coleção estavam obras da escola “Somente Consciência”. Como resultado do seu trabalho, um centro dessa escola foi estabelecido em Hangzhou.

Atisa (980-1054)

Atisa foi um viajante budista marítimo do final do século X até ao início do século XI EC. Ele nasceu na Baía de Bengala, perto de uma região famosa pelos seus grandes mosteiros, incluindo Nalanda. Incapaz de encontrar um professor para nutrir o seu interesse pelo budismo tântrico, ele viajou para Śrīvijaya, tendo ficado lá a morar e a estudar durante 12 anos (1012–1024 EC) com o mestre Dharmakīrti. Quando o seu mentor morreu, Atisa voltou para casa e a sua fama como estudioso logo se espalhou. Ele foi posteriormente persuadido a ir para o Nepal, e lá, por volta de 1038 EC, foi solicitado a ir ainda mais para o interior. Pelo resto da sua vida, Atisa viajou pelo Tibete, tendo introduzido a tradição tântrica que ele aprendeu e dominou em Palembang. Essa forma de Tantra ainda é um elemento dominante da prática e pensamento budista tibetano, uma demostração de como as influências budistas marítimas foram subsequentemente espalhadas para o interior e leste da Ásia.

Difusão da cultura budista: ensinamentos, arte e arquitetura

A arte e a arquitetura budista desenvolveu-se à medida que o dharma se espalhou, adaptando-se e evoluindo em cada novo país anfitrião. Das primeiras cavernas rochosas da Índia a stupas e templos icônicos, muitos desses espaços reverenciados são agora monumentos património nacional e Património Mundial da UNESCO. A escultura e a arquitetura estavam intimamente ligadas. Relevos monumentais foram usados ​​para decorar as paredes dos edifícios, e representações de Buda e de Bodhisattvas, figuras-chave no caminho para a iluminação, eram populares nos países ao longo da rota marítima.

Uma religião portátil

A comunidade de seguidores de Buda inicialmente preservou os seus ensinamentos pela recitação oral e, mais tarde, em manuscritos escritos nas superfícies das folhas de palmeiras, casca de bétula e objetos. Muitos desses textos, assim como estatuetas, eram transportados por comerciantes ao longo das rotas marítimas, por vezes com a esperança que dessem sorte durante as perigosas viagens. Na China, por exemplo, um dos primeiros métodos de introdução do budismo no século II dC foi traduzir os ensinamentos e escrevê-los com caracteres chineses em manuscritos de papel. Os cânones budistas em páli, sânscrito, chinês, tibetano, e outros idiomas, foram assim crescendo ao longo dos séculos.

O budismo era assim uma religião portátil, os seus textos podiam ser distribuídos em todos os lugares e traduzidos para qualquer idioma.

Tradição escultural: representações de Buda e Bodhisattvas

Acreditava-se que as relíquias do corpo do Buda mantinham o seu poder onde quer que fossem levadas. Ordens monásticas budistas foram encorajadas a viajar, conviver com pessoas de outras culturas e religiões, e a estabelecerem stupas. A veneração budista foi originalmente manifestada em relíquias dos restos físicos do Buda. Os primeiros budistas não faziam representações do Buda, ele era representado por símbolos como a sua pegada, a árvore Bodhi ou a Roda do Dharma.

No entanto, a partir do segundo século EC, imagens do Buda e de Bodhisattvas começaram a ser feitas, e estas foram copiadas e distribuídas. A prática de retratar narrativas – em particular cenas do nascimento, iluminação, primeiro sermão e a morte do Buda – tornou-se notavelmente popular. Esculturas de narrativas em baixo-relevo lembravam os fiéis dos acontecimentos importantes da vida do Buda e serviam de inspiração para as peregrinações, consequentemente, as imagens budistas se espalharam amplamente ao longo das rotas marítimas e o seu culto tornou-se a prática dominante.

As primeiras imagens budistas esculpidas em pedra exibem uma expressão facial calma, lóbulos das orelhas alongados e elegantes vestes monásticas. Esses protótipos rapidamente adquiriram estilos regionais distintos ao longo das rotas marítimas. Muitas esculturas antigas foram feitas de madeira e, esculturas de bronze posteriores também desempenharam um papel importante na difusão do budismo. Exemplos destes foram encontrados por arqueólogos nos antigos sítios portuários marítimos. Na arte e escultura budistas está incluída uma variedade de divindades e estilos, desde o humilde seguidor budista, até a divindades compassivas com poderes divinos. As divindades são reconhecidas através dos atributos que possuem, as suas poses e gestos com as mãos (mudras).

Um bom exemplo de fusão cultural é a história do Bodhisattva Avalokiteśvara, que é a personificação da compaixão budista, e que tornou-se o padroeiro dos marinheiro. O Avalokiteśvara foi de grande importância ao longo das rotas marítima, tendo ganho popularidade no século VII em todo o Sudeste Asiático. Nos portos marítimos do Sri Lanka existem inúmeras imagens que o retratam olhando para a água no seu papel de protetor de todos os que navegam nela. Quando a sua imagem e história chegou à costa chinesa, encontrou uma divindade para os marinheiros já instalada: a deusa Mazu. Assim como o Avalokiteśvara, ela era a padroeira do mar e protetora dos marinheiros. O Bodhisattva Avalokiteśvara na China ficou então conhecido em forma feminina e pelo nome Guanyin, deusa do mar.

Arquitetura

Stupas, chaityas e viharas (mosteiros)

A arquitetura budista desenvolveu-se na Índia no século III aC em três categorias principais: stupas, chaityas e viharas (mosteiros). As stupas são construídas sobre depósitos relicários localizados nas profundezas das suas fundações. Esses depósitos podem incluir os restos corporais do Buda, textos budistas e esculturas. Quando o Buda entrou no parinirvana, as suas relíquias foram divididas em oito grupos, e uma stupa construída sobre cada um deles. Essas relíquias foram posteriormente redistribuídas pelo rei budista Ashoka. A stupa, portanto, simbolizava o Nirvana do Buda e também a sua vida na terra. Erguer uma stupa era considerado uma forma de adquirir mérito. O chaitya-griha ou chaitya é um templo comemorativo construído para adoração sem depósito de relicários, enquanto que o vihara (mosteiro) é a morada da Sangha.

A stupa e a chaitya foram assumindo novos formatos nos países ao longo da rota marítima. O design da stupa compreende uma base quadrada alta com uma balaustrada onde os devotos realizavam a circumambulação (caminhada ritual no sentido horário). Grandes stupas em forma de sino são encontradas em Anuradhapura, no Sri Lanka, e variantes desse formato podem ser vistos em Mianmar e Tailândia. Na China, Japão, Coreia e Vietname, o Pagode de torre em camadas foi adaptado para o uso budista. No sudeste da Ásia, as estruturas foram projetadas combinando a visão cosmológica budista com uma interpretação local, por exemplo, o Borobudur em Java e o Bayon no Camboja.

Mosteiros esculpidos na rocha

A história dos mosteiros budistas esculpidos na rocha começou durante o reinado do imperador Maurya Ashoka no século III aC. Por mais de 1.000 anos esses locais floresceram. Utilizando apenas ferramentas de ferro rudimentares, cavernas foram escavadas com extraordinária precisão na rocha de penhascos de basalto. Essas cavernas foram projetadas para permitirem apenas um mínimo de luz no interior, mantendo-as frescas e ambientadas para a vida monástica. Elas apoiavam as funções sociais das suas comunidades espirituais (Sangha) com refeitórios e celas (dormitórios).

Alguns dos templos mais suntuosos das cavernas, foram encomendados por comerciantes ricos e, incluíam pilares, arcos e fachadas elaboradas. Eles foram construídos durante o período em que o comércio marítimo floresceu entre o Império Romano e o Sudeste Asiático, possibilitado pela diversificada costeira da Índia ocidental, que facilitou o contacto através do Mar Arábico.

Rituais e cerimónias

Os rituais e cerimónias budistas variam de país para país. A veneração do Buda histórico, e de outros budas e bodhisattvas, envolve mostrar respeito e meditar nas suas qualidades. Para ganhar “mérito” ou boa sorte, são feitas oferendas, incluindo comida e flores. O canto é um meio tradicional de preparar a mente para a meditação, e algumas formas de budismo também usam o canto para fins ritualísticos. Os três principais eventos da vida do Buda (nascimento, iluminação e Nirvana) são comemorados em todos os países budistas.

20 Templos Budistas ao longo da Rota Marítima

Estes são alguns dos templos budistas mais famosos ao longo da Rota Marítima. (Links para a localização no Google Maps)

  1. Ajanta, caverna 26, Maharashtra, India
  2. Vaishali (Ancient city), Bihar, India
  3. Sanchi Stupa, Sanchi, Madhya Pradesh, India
  4. Mosteiro Nalanda, Bihar, India
  5. Abhayagiri Dagoba, Anuradhapura, Sri Lanka
  6. Gal Vihara, Nissankamallapura, Sri Lanka
  7. Pagode Shwedagon, Yangon, Myanmar
  8. Pagode Kyaiktiyo, Mon State, Myanmar
  9. Templo Koe Thaung (Mrauk U), Myanmar
  10. Templo Mahamuni Buddha, Myanmar
  11. Pagode Dhammayazika, Myanmar
  12. Templo Borobudur, Java, Indonésia
  13. Templo Sewu, Java , Indonésia
  14. Angkor Wat, Siem Reap, Camboja
  15. Templo Banteay Chhmar, Banteay Meanchey, Camboja
  16. Templo Ta Prohm, Siem Reap, Camboja
  17. Wat Si Chum, Parque Histórico Sukhothai, Sukhothai, Tailândia
  18. Wat Mahathat, Sukhothai, Tailândia
  19. Templo Kaiyuan, Quanzhou, Fujian, China
  20. Templo Tiantong, Ningbo, Zhejiang, China

Referências: The Buddha at Sea: Atlas of Maritime Buddhism and New Experiences in Museology; Livro “The Buddhist Maritime Silk Road” de Lewis R. Lancaster; Atlas of Maritime Buddhism (City University of Hong Kong); Buddhist Maritime Silk Road (Art Exhibition / Fo Guang Shan Buddha Museum) (este artigo é em grande parte uma tradução de excertos desta última referência).

Veja também:

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