Os ensinamentos budistas foram originalmente transmitidos e registados em línguas como o páli e sânscrito, e traduzidos de várias formas para outras línguas. Ajahn Appamado, na palestra “Sobre as Cinco Qualidades Espirituais”*, em 08/10/2022, foi questionado se as traduções não podem causar alguma dificuldade e ambivalência na compreensão dos princípios budistas. Ajahn Appamado além de responder diretamente a essa questão também falou sobre a importância de termos contrapontos, mas não baseados na normalidade do mundo que se observarmos não é muito saudável. Segue-se a questão colocada por um praticante e a transcrição da resposta de Ajahn Appamado.
O facto destes ensinamentos terem sido originalmente transmitidos em páli e traduzidos de várias formas para outras línguas, pode causar alguma dificuldade e ambivalência na compreensão dos princípios budistas?
Muita, por isso é que temos de estar sempre a explicar os conceitos do páli. As línguas desenvolvem-se de formas diferentes em partes diferentes do globo, em culturas diferentes, com conceitos diferentes, com noções diferentes, com preconceções diferentes.
Por exemplo a palavra mindfulness [atenção plena em português], que é uma palavra boa em inglês, mas as próprias pessoas cuja lingua nativa é o ingles, dizem que é uma palavra pouco usada fora do contexto da mindfulness e pode realmente não transmitir aquilo que sati quer dizer, porque pode simplesmente querer dizer “vai com atenção”, e isso é muito pouco para aquilo que sati realmente quer dizer.
Concentração é outra questão. E então sim, pode causar alguma dificuldade e ambivalência na compreensão dos princípios. Por isso temos que investigar, temos que aprender, temos que estudar, se queremos realmente perceber se isto [o budismo] faz sentido para nós. E se queremos realmente ir a fundo é importante estudar um pouco, não necessariamente a língua páli, mas estudar os princípios do budismo, na explicação que tem nas várias tradições para percebermos realmente o que é o nirvana por exemplo, o que é que é o samadhi, os jhanas, que são aprofundamentos do samadhi e muitas vezes são traduzidos por estados de concentração. Temos de ver o que isso realmente é. É só concentração? É uma questão de afunilar a nossa mente? Ou tem outros elementos presentes?
Há muita literatura que explica muito bem, de forma detalhada, e ainda assim nem toda a literatura corresponde exatamente uma à outra, ainda há interpretações diferentes, mas vamos ficando com uma noção.
E há aqui uma questão que também é importante. É importante não nos agarrarmos demasiado a uma tradução, por exemplo. É percebermos o que aquilo é realmente, é sentirmos; e mesmo que não consigamos expressar realmente em palavras, sabemos o que é para nós e vamos refinando esse saber, apurando esse saber, ganhado uma confiança no que é que aquilo significa para nós. E até pode vir a significar não exatamente aquilo que originalmente se queria dizer, mas pode ser alguma coisa que vá criando um sentido para nós. Isso é que é importante, o caminho é que é importante, se se faz dentro dos contextos do budismo ou do hinduísmo, islamismo, ou seja o que for, essa não é a questão, a questão é que faça sentido para nós, que consigamos dar um rumo à nossa vida, apanhar o fio à meada. E vamos construindo e cultivando em cima disso.
E é importante ter contrapontos para percebermos se não estamos de alguma forma a sair demasiado do eixo. Não nos vamos contrapor com a normalidade do mundo, porque se observamos não é muito saudável, não é o caminho do meio, é só o que é normal hoje em dia e normal há muitas centenas de anos. […] O normal não quer dizer que seja equilibrado, até temos visto que é bastante desequilibrado.
Esta é uma metáfora muito fraca, mas para dar um aspeto visual, imaginemos que de uma escala de 1 a 100 o 1 é o péssimo e o 100 é o ótimo, se calhar o mundo está nos 10, 20… 30, há muita coisa boa também a acontecer. E portanto, nós não temos que apontar para o 50, temos que apontar para o 100, e também não podemos apontar para o 30, se não vamos ficar todos na mesma. Isso é muito idealista, mas é sem criar um fosso entre nós e os outros, até pela questão da compaixão que vai surgindo naturalmente com o processo do caminho interior e da compreensão sobre a a natureza humana e sobre a mente humana. Vamos criando uma compaixão natural por todos à nossa volta e por nós próprios. E portanto não é para criar um fosso entre nós e as pessoas que vá causar uma divisão. Antes pelo contrário, é um sentido de união que vá puxando todos para um sentido mais elevado do viver e da humanidade, da consciência. Não é para criar um fosso, mas quanto mais puxarmos para o 100, quanto mais lá chegamos… o 100 é o expoente máximo daquilo que podemos fazer como seres humanos, e portanto não querendo aqui agarrar-nos a um objetivo de uma forma apegada… mas vamos fazendo uma caminhada.
E às vezes não vale muito a pena estarmos a fazer comparações porque alguém nos diz “então mas o que é importante é ver um bocadinho de tv à noite, descontrair, etc…”, isso pode ser completamente plausível na vida de cada um, não tem problema nenhum. A meditação é a mesma coisa, podemos fazer 5 minutos uma vez por semana e está bom, é o que resultar para cada um, esse tipo de comparação não podemos realmente estabelecer porque as pessoas estão em pontos muito diferentes; é sem julgamento nenhum. O que é importante é o que cada um faz no ponto em que está. Isso é que é o valor, não é o que faz, é o que faz no ponto em que está. E portanto não vale a pena estarmos a fazer comparações dessas e deixarmo-nos cair porque o mundo está-nos sempre a dizer “estás a ir num caminho um bocadinho diferente daquilo que é o normal”; ótimo, ainda bem, se for para melhor então que seja.
Veja também:
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