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Investigue a fundo

Ainda que um Budista busque refúgio no Buddha, não há nenhuma abnegação. Tampouco um Budista sacrifica a sua liberdade de pensamento convertendo-se em seguidor de Buddha. Pode exercer a sua própria livre vontade e desenvolver o seu conhecimento inclusive até ao ponto de tornar-se ele mesmo num Buddha.Narada Mahathera


[Áudio-Palestra] Conclusões Precipitadas | Ajahn Mudito

Shariputra não acreditou em Buddha

O Venerável Shariputra, um dos discípulos do Buddha, era muito astuto. Uma vez quando o Buddha estava expondo o Dharma virou-se para ele e perguntou: “Shariputra, você acredita nisso? “Shariputra respondeu: “Não, eu não acredito”. O Buddha elogiou a resposta. “Isso é muito bom, Shariputra. Você é uma pessoa dotada de sabedoria. Aquele que é sábio não acredita rapidamente; ele ouve com uma mente aberta e depois pesa a verdade dos factos antes de acreditar ou desacreditar.”

Nota: Tentei encontrar esta passagem nos suttas mas não consegui encontrar, também ninguém ainda me conseguiu dar uma referência. Esta história já foi citada pelo Ajahn Mudito e Thich Nhat Hanh e ao que parece a fonte original é um texto do Ajahn Chah. É possível que em algum lugar dos textos canónicos esta história esteja presente, ou então o Ajahn Chan divagou um pouco. De qualquer maneira está de acordo com o escopo de ensinamentos. No Pubbakotthaka Sutta, Buda e Shariputra têm uma conversa com algumas semelhanças com esta história. Existe uma outra história ainda mais semelhante entre um dos principais discípulos leigos do Buda, Citta, e Nigaṇṭha Nāṭaputta, esse momento é relatado no SN 41.8.

Buddha pede para Upali investigar a fundo os seus ensinamentos antes de se tornar seu discípulo

«”O Abençoado esclareceu o Dhamma de várias formas, como se tivesse colocado em pé o que estava de cabeça para baixo, revelasse o que estava escondido, mostrasse o caminho para alguém que estivesse perdido ou segurasse uma lâmpada no escuro para aqueles que possuem visão pudessem ver as formas. Venerável senhor, eu busco refúgio no Abençoado, no Dhamma e na Sangha dos bhikkhus. Que o Abençoado me aceite como discípulo leigo que buscou refúgio para o resto da vida.”

“Investigue a fundo, chefe de família. É bom que pessoas tão bem conhecidas como você investiguem a fundo.”

“Venerável senhor, eu estou ainda mais satisfeito e contente com o Abençoado por me dizer isso. Pois outros líderes de seitas, ao me obterem como seu discípulo, conduziriam uma bandeira por toda Nalanda anunciando: ‘O chefe de família Upali se tornou meu discípulo.’ Mas, ao contrário, o Abençoado me diz: ‘Investigue a fundo, chefe de família. É bom que pessoas tão bem conhecidas como você investiguem a fundo.’ Então pela segunda vez, venerável senhor, eu busco refúgio no Abençoado, no Dhamma e na Sangha dos bhikkhus. Que o Abençoado me aceite como discípulo leigo que nele buscou refúgio para o resto da sua vida.”»

(Upali Sutta) audio_icon_2

Também no Siha Sutta o Buda insta Siha a investigar primeiro os seus ensinamentos.

Palavras de Buddha para os que buscam a verdade

Trecho do livro Budismo em Poucas Palavras (Cap III. É uma religião?), por Narada Mahathera

Ainda que um Budista busque refúgio no Buddha, não há nenhuma abnegação. Tampouco um Budista sacrifica a sua liberdade de pensamento convertendo-se em seguidor de Buddha. Pode exercer a sua própria livre vontade e desenvolver o seu conhecimento inclusive até ao ponto de tornar-se ele mesmo num Buddha.

O ponto de partida do Budismo é raciocinar ou compreender, ou, em outras palavras, Sammā-Diṭṭhi.

Aos que buscam a verdade, o Buddha lhes disse:

“Não aceiteis nada que ouviste – (i.e., porque temos ouvido deste sempre).

Não aceiteis nada por mera tradição – (i.e., porque foi transmitido assim através de muitas gerações).

Não aceiteis nada devido à mera existência de rumores – (i.e., crer no que dizem os outros sem haver comprovações).

Não aceiteis nada simplesmente porque coincide com vossa religião.

Não aceiteis nada por mera suposição.

Não aceiteis nada por mera inferência, por mera dedução.

Não aceiteis nada considerando simplesmente as razões.

Não aceiteis nada simplesmente porque está de acordo com vossas noções preconcebidas.

Não aceiteis nada simplesmente porque os pareça aceitável – (i.e., porque um orador parece bom deveria aceitar-se a sua palavra).”

“Mas quanto tiverem compreendido por vocês mesmos de que – isto é imoral, isto é indigno, isto censura a prudência ou o juízo, isto, quando se faz e se assume, leva à ruína e ao sofrimento – então, rejeite-o realmente.”

“Quando sabeis por vocês mesmos que – estas coisas são morais, são irrepreensíveis, são elogiadas por sua prudência e por seu juízo, estas coisas, quando se fazem e se assumem, conduzem ao bem-estar e à felicidade – então, que vivam agindo em conformidade.”

(Kalama Sutta) audio_icon_2 text_icon

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“Salha, não se deixe levar pelos relatos, pelas tradições, pelos rumores, por aquilo que está nas escrituras, pela razão, pela inferência, pela analogia, pela competência (ou confiabilidade) de alguém, por respeito por alguém, ou pelo pensamento, ‘Este contemplativo é o nosso mestre.’ Quando você souber por você mesmo que, ‘Essas qualidades são inábeis; essas qualidades são culpáveis; essas qualidades são passíveis de crítica pelos sábios; essas qualidades quando postas em prática conduzem ao mal e ao sofrimento’ – então você deve abandoná-las.” […]

“Salha, não se deixe levar pelos relatos, pelas tradições, pelos rumores, por aquilo que está nas escrituras, pela razão, pela inferência, pela analogia, pela competência (ou confiabilidade) de alguém, por respeito por alguém, ou pelo pensamento, ‘Este contemplativo é o nosso mestre.’ Quando você souber por você mesmo que, ‘Essas qualidades são hábeis; essas qualidades são isentas de culpa; essas qualidades são elogiadas pelos sábios; essas qualidades quando postas em prática conduzem ao bem-estar e à felicidade’ – então você deve penetrar e permanecer nelas.”

(Salha Sutta)

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“Bhikkhus, um bhikkhu que é um investigador, sem saber como avaliar a mente de outrem, deveria fazer uma investigação do Tathagata para descobrir se ele é perfeitamente iluminado ou não.” (Vimamsaka Sutta)

Não acreditem em mim, testem e experimentem | Monge Genshô

A fé como amigo e inimigo

O primeiro amigo é a fé, a devoção, a confiança. Sem confiar, não se pode trabalhar, por permanecer agitado com dúvidas e ceticismo. Porém, se a fé for cega, será um grande inimigo. Torna-se cega se perdermos a inteligência discriminatória, o entendimento apropriado sobre o que é a devoção correta. É possível ter fé em alguma divindade ou indivíduo santificado mas, se a fé for correta, com entendimento apropriado, iremos evocar as boas qualidades desse ser e isso nos inspirará a desenvolver essas mesmas qualidades. Tal devoção é cheia de sentido e é de toda a ajuda. Mas, sem tentar desenvolver as qualidades do ser do qual se é devoto, é fé cega, que é muito perigosa.” – S. N. Goenka

“É como o exemplo da fruta amarga. Eu disse a vocês que uma certa fruta tinha gosto de amarga e convidei vocês a experimentar. Vocês teriam que comer um pedaço e experimentar o amargor. Algumas pessoas iriam acreditar na minha palavra se eu dissesse que a fruta era amarga, mas se elas simplesmente acreditassem que era amarga sem nunca experimentá-la, aquela crença seria inútil (mogha), não teria nenhum valor de significado. Se eu descrevesse a fruta como amarga, seria meramente minha percepção dela. Só isso. O Buda não pregou tal crença. Mas você também não pode simplesmente ignorá-la: investigue. Você deve experimentar a fruta por si mesmo, e ao saborear seu sabor de verdade, você se torna a própria testemunha interna. Alguém diz que a fruta é amarga, então você a pega, come e descobre que é realmente amarga. É como se você tivesse se certificando duplamente — se baseando na própria experiência e no que as pessoas dizem. Dessa maneira você pode realmente ter confiança na autenticidade do sabor amargo, você é a testemunha que atesta a verdade”.” – Ajahn Chah, Sofrendo na Estrada (Suffering on the Road)

Seguir o caminho independente ou estar ligado a uma instituição?

Ainda que um budista não sacrifique a sua liberdade de pensamento e nem esteja refém de instituições ou mestres, isso não quer dizer que não seja importante estar ligado a alguma instituição e mestre qualificado, embora não seja uma condição absolutamente necessária.

As instituições e os mestres têm uma grande importância. Nas palavras de Genshô Sensei:

“Sempre tivemos uma natural divisão entre os que se ligam a instituição e os que seguem caminhos independentes, historicamente, no entanto, são as instituições que trouxeram o budismo até os dias de hoje, preservando os textos, transmitindo, impedindo os mais variados exageros, mas com o peso natural de suas burocracias e autoridades. Os centros do Dharma em si, também são instituições. E vemos os benefícios de suas paredes, biblioteca e evidentemente sua organização.”*

Dúvida, análise e desvirtuamento de ensinamentos

Uma observação pessoal:

Um aspecto a referir é que após a pessoa se iniciar no caminho budista depois de uma reflexão e análise que é importante, não é boa ideia estar constantemente a duvidar de tudo, é normal que dúvidas em relação ao caminho surjam, mas elas devem ir diminuindo e a confiança aumentando. Se a mente da pessoa está em constante análise e dúvida sobre a validade dos ensinamentos, isso pode-se tornar num obstáculo. Após a análise inicial, a confiança é importante para a progressão do praticante, ainda assim, uma certa dose de incerteza tem a sua pertinência.

Alguns Budistas também não concordam com algum ensinamento e por isso o rejeitam completamente, desvirtuam e os transformam noutra coisa qualquer, porque o Buda dá a liberdade de não acreditar em algo só porque foi ele que disse.

Mas vejamos a seguinte situação. Se eu quiser refutar uma teoria científica existente, preciso de percorrer um longo processo de estudo e experimentação, actualmente com as qualificações que tenho não estou apto para fazer uma refutação dessa natureza. Eu podia escrever um artigo dizendo que segundo a minha experiência atómos e quarks não existem porque eu não os vejo. Mas quem sou eu para dizer tal coisa? Tenho qualificações e conhecimento para afirmar isso? Fiz as devidas experiências? Não!

Da mesma forma. Não basta ler só alguns textos budistas e formar uma opinião sobre a validade ou não de determinado ensinamento. Sem uma bagagem de conhecimento e/ou algum grau de iluminação, não dá para simplesmente refutar determinado ensinamento de forma categórica. Se não tenho um elevado grau de experiência, como refutar ou validar algo com base na experiência?

De qualquer maneira, claro que tenho total liberdade para não aceitar tudo, para duvidar. Posso aplicar o que me interessa e colocar de lado o que não tem qualquer interesse ou utilidade para mim. Mas… não devo é expor as minhas conclusões pessoais como se fosse algo tipo o verdadeiro budismo e que todos os outros estão incorrectos. Isso acontece e acho bastante problemático, acabamos por fazer mais mal que bem.

Se existem dúvidas quanto a algum ensinamento que faz parte das fundações do budismo, e se decidimos seguir o caminho budista, o melhor é colocar esse ensinamento em segundo plano até que possa começar a fazer sentido mais tarde, usar o ensinamento como uma hipótese de trabalho e não o rejeitar totalmente. Por isso se costuma dizer que o budismo é não-dogmático, se não posso verificar agora, devo trabalhar para chegar ao ponto do nível de realização de um Buda, e verificar pela própria experiência.

Outro aspecto que devemos ter em atenção é a implicação de determinado assunto no conjunto de ensinamentos.

Comparando os suttas dos vários cânones e conhecendo o contexto da época podemos concluir que determinada alegação é improvável ter sido dita por Buda, que não está de acordo com o escopo de ensinamentos e que provavelmente foi alguma adição pessoal dos monges que escreveram o sutta.

Existe também muito simbolismo e alegorias, principalmente nos suttas Mahayama que na sua escrita foram influenciados pelos movimentos artísticos do teatro que surgiam na época, e por isso são cheios de floreados.

Eu posso por exemplo interpretar como alegoria o tufo de pelos que emana luz da testa de Buda, a assembleia de milhares de boddhisatvas a assistir aos ensinamentos do Buda num espaço que se vai a verificar ter uns poucos metros quadrados, e muitas mais afirmações do tipo. Existem explicações simbólicas para esse tipo de coisa, embora também deva referir que alguns mestres afirmam que isso acontece mas num plano que pessoas comuns não conseguem ver. Mas o que importa é que tudo isso não tem implicações no conjunto de ensinamentos. Ver esse tipo de floreados como alegorias é compreensível e não descaracteriza a base dos ensinamentos budistas. No entanto existem outros ensinamentos que a sua refutação ou rejeição terá implicações em todo o escopo de ensinamentos.

Com o que disse acima não pretendo sugerir que nos devemos submeter a um mestre ou guru sem qualquer senso critico, muito pelo contrário, é preciso investigar, até porque muitos que se auto-intitulam de mestres deturpam as palavras do Buda. E a critica é justamente relacionada com essa deturpação. Investigar a fundo é algo que devemos fazer quando pretendemos seguir um mestre, lama ou professor, ou até mesmo quando já o seguimos. Mesmo com instituições credíveis, monges e monjas de reputação, é preciso é ficar atento. Por vezes acontece de quando a instituição cresce e o mestre ou mestra fica popular, começa a surgir uma entourage de bajuladores à volta, e começa o abuso de poder. Isso não é a norma e não é porque a instituição é grande e o monge ou monja é popular que isso acontece, mas devemos manter os olhos abertos. Seja qual for a posição, todos somos pessoas, e pessoas falham. Ter respeito e admiração é aceitável, idolatria é perigoso.

Monges e monjas também têm visões e opiniões pessoais, não é porque o nosso mestre ou qualquer outro considerado grande mestre tem uma opinião, que nós temos de pensar exatamente da mesma forma. Eles também não estão acima da critica, escrutínio e responsabilização, mesmo os de grande prestigio. É obvio que não são perfeitos, também têm defeitos e cada um tem a sua própria personalidade e seu jeito de ensinar. Não devemos nem precisamos de julgar todos os seus atos e nem devemos exigir que sejam santos ou divindades, porém, é esperado um certo tipo de comportamento e mais exigência que aos leigos. Por isso por vezes precisamos de analisar sim os seus comportamentos, não são infalíveis e o que não falta são monges de prestígio que se perderam, que fizeram asneira, algumas com consequências graves, com as pessoas a fecharem os olhos e a arranjarem desculpas, tudo isso devido a um seguidismo e devoção cega. O mais importante de tudo é o Dharma, é pelo Dharma que nos devemos pautar, quando um mestre que é um recetáculo do Dharma nos desilude, ficamos com o Dharma (os bons ensinamentos) e preterimos o nefasto.

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Dúvida no Darma | Padma Dorje

A dúvida tem seu lugar no caminho budista | Ajahn Mudito

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Sugestão de leitura:

Veja também:


Sobre Ajahn Mudito, Monge Genshô, S. N. Goenka, Ajahn Chah

Lista de Mestres e Professores

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