Ação no Mundo Sociedade e Política

Proteger a dignidade humana da ameaça do niilismo moral

Bhikkhu Bodhi aborda a dignidade humana, intuitivamente compreendida e essencial, mas ameaçada pelo niilismo moral. Este niilismo é impulsionado por fatores como o capitalismo predatório, a tecnologia invasiva, as autocracias e a guerra. A solução reside na compaixão consciente, solidariedade e coragem para construir uma sociedade mais justa.

No Vietname, para o Dia Internacional do Vesak observado pela ONU, na Cidade de Ho Chi Minh, de 5 a 8 de maio, o Ven. Bhikkhu Bodhi proferiu o discurso principal a 6 de maio. O seu tema foi: “Proteger a Dignidade Humana da Ameaça do Niilismo Moral”. Nas suas observações finais, focou-se em Gaza como “o epicentro da disputa entre as forças do niilismo moral e a nossa obrigação de proteger a dignidade humana”. Segue-se aqui uma tradução da adaptação do discurso.

Por Bhikkhu Bodhi
Tradução do artigo: Protecting human dignity from the threat of moral nihilism, 22/05/2025 (Lion’s Roar)
Consultado também: El significado de la dignidad humana (Dokusho Villalba)

O significado da dignidade humana

É difícil estabelecer uma definição simples de dignidade humana com a qual todos concordariam. A dignidade humana é uma ideia que parecemos compreender intuitivamente, em vez de através de uma definição formal. A Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU abre com a afirmação de que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos.” Nos artigos seguintes, explicita os direitos que decorrem da ideia de dignidade humana, acima de tudo o direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal; à liberdade de pensamento e expressão; e muitos mais. As violações da dignidade humana incluem ações como explorar e oprimir outros, infligir-lhes tortura e castigos degradantes, e humilhá-los devido ao seu estatuto social, raça, religião ou identidade de género.

A ideia de dignidade humana implica que cada pessoa possui um valor inerente e, portanto, merece respeito e consideração. Mesmo os prisioneiros têm certos direitos que as autoridades devem reconhecer.

Os textos budistas não mencionam explicitamente a ideia de dignidade humana, mas diria que a ideia está implícita nos preceitos budistas. Os preceitos dizem-nos que devemos tratar os outros da mesma forma que esperamos que eles nos tratem a nós. Não devemos matá-los, roubar os seus pertences, difamá-los ou magoá-los de forma alguma, porque cada pessoa preza a sua própria vida, segurança e bem-estar. As virtudes da bondade amorosa e da compaixão, centrais na ética budista, também reforçam um compromisso com a dignidade humana.

A deriva para o niilismo moral

Chego agora à segunda parte da minha palestra, sobre os fatores em ação no mundo de hoje que ameaçam a dignidade humana e nos estão a empurrar para o niilismo moral. Estes são tipos de comportamento que pressupõem que os seres humanos não têm valor inerente e, portanto, podem ser rebaixados, explorados, torturados e até mortos sem remorsos.

Mencionarei brevemente quatro fatores que nos empurram para o niilismo moral, mas existem ainda outros que não terei tempo de discutir.

(1) O primeiro fator que nos empurra para o niilismo moral é o sistema económico transnacional impulsionado pelo capitalismo predatório não regulamentado. Este sistema opera sob a premissa de que o objetivo de uma empresa é maximizar os lucros. O paradigma trata todos os ativos não monetários — terra e rios, minerais e árvores, animais e seres humanos — como meros meios para gerar ganho financeiro. Os lucros enormes enriquecem executivos e investidores, mas trazem miséria e desespero a muitos fora dos seus círculos privilegiados.

As empresas petrolíferas e químicas poluem o nosso ambiente e expulsam os povos indígenas das suas terras ancestrais. As cadeias de fast-food exploram trabalhadores sem lhes pagar adequadamente e despedem-nos quando já não conseguem trabalhar com a máxima eficiência. As empresas farmacêuticas aumentam os preços dos medicamentos para além da capacidade das pessoas poderem pagar pelos medicamentos de que necessitam para se manterem vivas.

O capitalismo corporativo cria uma grande divisão entre os super-ricos e todos os outros. Hoje, os 1% mais ricos detêm 43% da riqueza mundial; os 50% mais pobres detêm cerca de 1%. Esta desigualdade extrema tem um impacto prejudicial na saúde física e mental. Aqueles na extremidade inferior da escala perdem o seu sentido de autoestima, e muitos sucumbem a “mortes por desespero” devido ao alcoolismo, uso de drogas, saúde precária e suicídio.

(2) Um segundo fator que contribui para o niilismo moral é o papel invasivo que a tecnologia computacional desempenha atualmente nas nossas vidas. Embora a internet nos tenha trazido imensos benefícios, também representa sérias ameaças à dignidade humana. Aqueles que dominam estes sistemas podem recolher milhares de milhões de dados pessoais sobre nós em apenas alguns segundos. Podem usar esta informação para influenciar as nossas opiniões políticas, mudar as nossas escolhas de consumo, prejudicar as nossas perspetivas de emprego e destruir o nosso estatuto legal. A tecnologia computacional em si é um ativo precioso, mas se não regularmos adequadamente os meios eletrónicos, eles virar-se-ão contra nós, tornando-se mesmo ferramentas de controlo totalitário.

A internet também oferece aos aspirantes a autocratas um caminho fácil para o poder. Tweets e outras mensagens instantâneas podem incitar multidões enfurecidas, desencadear violência e destruir as hipóteses de um político rival. Mentiras ecoam pela internet, repetidas tantas vezes que as engolimos como factos.

(3) Nos últimos anos, várias grandes democracias têm vindo a transformar-se em autocracias de direita dominadas por líderes autoritários. Os autocratas ascendem frequentemente ao poder opondo a sua base, aqueles a quem chamam “as pessoas reais”, contra aqueles que tratam como bodes expiatórios: imigrantes, pessoas gays e trans, pessoas de raça diferente e seguidores da “religião errada”. Se os aspirantes a autocratas ganharem poder, poderão prender, deportar ou fazer “desaparecer” as suas vítimas. Depois de décadas na clandestinidade, o fascismo tem vindo a ressurgir, usando agora uma linguagem mais suave, mas procurando conquistar seguidores com os mesmos velhos apelos ao ressentimento racial, à ansiedade económica e à necessidade obsessiva de punir aqueles que são percepcionados como inimigos.

Numerosos comentadores salientaram que a democracia é frágil e deve ser vigilantemente defendida. Se não tivermos cuidado, podemos dar por nós a viver num mundo invertido, onde aplaudimos os nossos carrascos como nossos salvadores.

(4) O quarto fator que conduz ao niilismo moral é a forma contemporânea de conduzir a guerra. Embora toda a guerra viole a dignidade humana, a forma de conduzir a guerra hoje ultrapassa os padrões mais básicos de decência. Nações em guerra destroem deliberadamente hospitais, escolas, igrejas e centrais elétricas. Raptam crianças e torturam prisioneiros. Massacram civis e publicam fotos das suas vítimas nas redes sociais. Desvalorizam indiferentemente as baixas civis reduzindo-as a “danos colaterais”. Os acordos internacionais elaborados após a Segunda Guerra Mundial definem os limites da conduta legítima na guerra, no entanto, hoje os governos espezinham essas regras, distorcendo as barreiras de proteção que sustentam a ordem moral global.

Isto completa o meu breve levantamento de quatro ameaças à dignidade humana. O que faz com que estas quatro tendências se qualifiquem como tipos de niilismo moral é um projeto partilhado de desumanização. Para explorar trabalhadores de baixos salários, é preciso fingir que eles não têm necessidades humanas. Para recolher os dados pessoais de outros, é preciso ignorar as pessoas reais por detrás dos dados. Para ascender ao poder atacando os vulneráveis, é preciso tratá-los como alvos legítimos de ódio. Para matar civis e torturar prisioneiros, primeiro é preciso desumanizá-los.

Daqui se segue que a chave para combater o niilismo moral é a afirmação da dignidade humana. Temos de destacar a humanidade daqueles que estão em risco. Temos de nos ver nos outros, abraçá-los nos nossos corações e agir corajosamente em sua defesa.

Como é uma sociedade digna?

Chego agora à terceira parte da minha palestra, levantando a questão: “Que tipo de sociedade, consistente com os ensinamentos budistas, pode sustentar e aumentar a dignidade humana no mundo de hoje?” Para contrariar as forças hostis à dignidade humana hoje, não basta apenas apontar os perigos que enfrentamos. Temos também de apresentar uma visão alternativa ao nosso sistema atual, o modelo de uma ordem social que afirme a dignidade humana, um mundo onde todos ganham.

Para providenciar essa visão, sugiro seis pilares de uma ordem social que personifique o ideal da dignidade humana.

(1) O primeiro requisito é um mundo com um ambiente natural seguro, belo e florescente — um onde evitemos os perigos desencadeados pelas alterações climáticas descontroladas e pela poluição industrial. Para realizar tal mundo, temos de reduzir os resíduos tóxicos e fazer uma rápida transição para fontes de energia limpas e renováveis, partilhando os seus benefícios com todos neste planeta. Temos também de fazer esforços determinados para proteger outras espécies além dos seres humanos, garantindo que preservamos as florestas, selvas e lagos e um reino animal próspero.

(2) Um mundo seguro seria também um mundo de paz, onde já não recorremos à guerra para resolver tensões. Os conflitos entre nações devem ser resolvidos através da discussão, mediação e compromisso, com a ONU como a plataforma adequada para tais negociações. Devemos visar a abolição completa das armas nucleares e outras armas de destruição maciça.

(3) No domínio social, devemos aspirar a um mundo com uma governação democrática mais genuína, onde os cidadãos tenham o poder de moldar as decisões cruciais que afetam as suas vidas. Uma democracia saudável adotaria leis rigorosas que impedissem empresas e doadores super-ricos de influenciarem eleições através de doações de campanha e grupos de pressão. O governo deve refletir a vontade do povo, não de empresas gigantescas e bilionários interessados em mais riqueza e poder.

(4) Uma ordem social justa requer também um padrão de vida razoavelmente igual para todos os seus residentes, incluindo não-cidadãos. A igualdade perfeita de riqueza e rendimento é um ideal impossível, mas todos os residentes de um país devem ser capazes de satisfazer as suas necessidades materiais básicas: casa, alimentação nutritiva, vestuário e cuidados de saúde. Investigadores notaram que as sociedades mais igualitárias são também as mais felizes; as mais desiguais, as mais violentas e stressantes.

(5) Numa democracia vibrante, os cidadãos devem receber uma educação abrangente que os prepare para o cumprimento dos seus deveres cívicos. As escolas devem oferecer disciplinas obrigatórias nas áreas das humanidades e ciências sociais, em ética e civismo, e capacitar os estudantes para o pensamento crítico. Os governos devem apoiar generosamente o ensino superior, concedendo bolsas de estudo a estudantes mais pobres para que todos possam se beneficiar de estudos avançados.

(6) Devemos garantir que a igualdade de género prevaleça a todos os níveis da sociedade, para que as mulheres possam realizar todo o seu potencial. Em relação à ordem monástica budista, os líderes monásticos devem conceder pleno reconhecimento à Bhikkhuni Sangha e tomar medidas para autorizar a ordenação de bhikkhunis nas suas respetivas linhagens. Existem meios no Vinaya para legitimar a ordenação de bhikkhunis e, com uma mente aberta e flexível, podemos adotar tais meios.

Realizar a dignidade humana hoje

De seguida, quero apresentar brevemente um conjunto de valores de que necessitamos para realizar uma ordem social que afirme plenamente a dignidade humana. Chamo a este conjunto de valores, enraizado na ética budista, “compaixão consciente.” A compaixão consciente não é uma mera simpatia passiva pelo sofrimento dos outros, mas um compromisso ativo de se opor a sistemas de opressão e de procurar alternativas conducentes ao bem geral.

O valor central da compaixão consciente é a solidariedade, a capacidade de nos identificarmos com os outros. A solidariedade flui do reconhecimento da unidade essencial de todas as pessoas, da compreensão de que todos os seres humanos desejam estar bem, felizes e seguros; que todos procuramos estar livres da violência e do sofrimento. A solidariedade dá origem ao amor e à compaixão: o amor como uma preocupação ativa em promover o bem-estar dos outros; a compaixão como a aspiração de libertar as pessoas e outros seres sencientes do sofrimento.

“Como líderes budistas, não devemos ficar silenciosamente à margem. Temos de estar à altura das exigências do momento, encontrar as nossas vozes e usá-las para apelar à paz e à justiça.”

Para que a compaixão consciente tenha sucesso, precisamos ainda de outra qualidade, nomeadamente, a coragem, que corresponde às paramitas da energia (viriya) e da determinação (adhitthana). No trabalho da compaixão consciente, coragem significa a prontidão para seguir o apelo da consciência, para agir corajosamente, sem medo, em nome de todos aqueles cujas vidas e dignidade estão sob ameaça. Compaixão consciente não é apenas ser simpático, não é apenas ser bondoso. Requer a coragem para lutar, gentilmente e não-violentamente, pelos princípios congruentes com o amor e a compaixão. Requer a vontade de agir ainda que isso implique um grande risco pessoal.

Observações finais

Concluirei a minha palestra com algumas observações adicionais. Devo dizer primeiro que nestas observações estarei a declarar o meu ponto de vista pessoal. Não estou a representar o Comité do Dia de Vesak da ONU, o Governo do Vietname ou qualquer outra organização.

Quero terminar destacando uma região do mundo que poderia ser chamada o epicentro da disputa entre as forças do niilismo moral e a nossa obrigação de proteger a dignidade humana. Refiro-me à Faixa de Gaza, onde, neste momento, está em curso um terrível genocídio, uma campanha brutal de extermínio visível para nós em tempo real nas nossas televisões e ecrãs de computador. Este é o ponto de convergência onde o nosso compromisso com a dignidade humana nos deveria envolver numa luta implacável contra as forças do niilismo moral, que conduzem a sua campanha de devastação com diplomacia suave e arsenais abastecidos com as armas mais letais.

A resposta de Israel ao horrível ataque do Hamas de 2023 quebrou todas as barreiras éticas, ameaçando despedaçar a ordem global baseada em regras, enraizada no direito internacional e nos direitos humanos. Em apenas dezoito meses, Israel matou mais de 55.000 pessoas em Gaza, quase 70 por cento delas mulheres e crianças. As suas bombas reduziram casas, hospitais, centros de ajuda e universidades a pó; as suas forças executaram professores, médicos, jornalistas e trabalhadores humanitários a sangue frio. Nos últimos dois meses, Israel impôs um bloqueio total a Gaza. Um bloqueio total significa, literalmente: sem comida, sem água potável, sem eletricidade, sem equipamento médico.

Vietnamitas de uma geração mais velha sabem o que é enfrentar bombardeamentos diários, quando não sabiam se eles ou os seus entes queridos estariam vivos amanhã. O povo de Gaza enfrenta agora uma provação semelhante. Em Gaza, poderíamos ver vinte membros da nossa família dizimados por um único ataque de rocket. Os nossos filhos poderiam perder os seus braços e pernas. Não teríamos acesso a cuidados médicos e toda a nossa família estaria a ficar deliberadamente esfomeada. Como podemos tolerar isto?

Por favor, tenham em mente que não estou a olhar para esta crise primariamente como uma questão política. Estou a encará-la como uma questão de ética humanitária. Estamos perante uma campanha de aniquilação que abriu as portas ao caos moral e estilhaçou a própria ideia de dignidade humana. O genocídio em Gaza deve queimar a nossa consciência e mover-nos à ação — para defender um povo cuja humanidade está a ser degradada e violentamente esmagada. Sei que estas são palavras fortes, mas falo como uma pessoa de origem judaica, nascida e criada numa família judaica em Brooklyn, Nova Iorque.

Tenho notado que os líderes budistas falam incessantemente de compaixão, paz, justiça e dignidade humana, mas quando se trata de criticar o genocídio de Israel contra os palestinianos, parecem perder a voz. Não sei se isto se deve a medo ou indiferença, mas precisamos de ser corajosos. Como líderes budistas, não devemos ficar silenciosamente à margem. Temos de estar à altura das exigências do momento, encontrar as nossas vozes e usá-las para apelar à paz e à justiça. Devemos insistir que Israel ponha fim à sua violência contra o povo de Gaza, e devemos apoiar a aspiração do povo palestiniano a um estado soberano autónomo próprio, com plena representação nas Nações Unidas.

Devemos lembrar-nos de que um ataque à dignidade humana de uma comunidade é um ataque à dignidade de todos. Ao sermos solidários com o povo palestiniano, demonstramos a nossa compaixão, a nossa coragem e o nosso compromisso com a humanidade.

Muito obrigado pela vossa atenção. Permitam-me concluir desejando a todos uma alegre celebração de Vesak. Que as bênçãos da Sagrada Joia Tríplice estejam com todos vós.

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Bhikkhu Bodhi
O Venerável Bhikkhu Bodhi é um monge budista americano, presidente da Associação Budista dos Estados Unidos, e fundador e presidente da Buddhist Global Relief, bem como antigo editor e presidente da Buddhist Publication Society em Kandy, Sri Lanka. As suas extensas traduções do cânone Pali têm informado a prática do dharma no mundo de língua inglesa durante décadas.

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