Meditação

O lado sombrio do mindfulness: riscos ocultos de uma prática popularizada

A atenção plena (ou meditação mindfulness) conquistou popularidade global como ferramenta eficaz para a redução do stress, o aumento da concentração e a promoção do bem-estar emocional. Empresas, escolas e instituições de saúde incorporaram essa prática nos seus programas, prometendo benefícios que vão desde o aumento da produtividade até à melhoria da saúde mental. No entanto, à medida que a atenção plena se desvincula das suas raízes budistas e se adapta a um contexto secular, surgem preocupações crescentes sobre os seus potenciais efeitos colaterais.

Efeitos psicológicos adversos

Pesquisas recentes, como as discutidas em artigos da ScienceAlert e Big Think, revelam relatos de praticantes que experimentam o aumento da ansiedade, sensações de despersonalização e, em casos extremos, episódios de psicose após retiros intensivos de meditação. Tais experiências adversas são frequentemente associadas a uma introspecção excessiva e não supervisionada.

Além disso, a meditação pode desencadear memórias reprimidas ou traumas passados, especialmente em indivíduos com histórico de transtornos de ansiedade, depressão ou trauma. A prática, que deveria ajudar a compreender e integrar experiências difíceis, pode, sem o devido suporte, resultar em sofrimento emocional ainda maior. Esses efeitos negativos parecem ser pontuais, mas ainda assim existem e por isso não devem ser ignorados.

De realçar que em relação aos benefícios difundidos, muitos deles podem ser também obtidos através de outras atividades, sem o perigo dos efeitos psicológicos adversos e por vezes até mais eficazmente, como por exemplo a prática desportiva.

A desconexão do contexto original

No budismo, a atenção plena não é uma prática isolada, mas parte de um caminho espiritual abrangente que inclui conduta ética, compaixão e compreensão profunda da mente. Esse caminho vai muito mais além do que apenas a melhoria do bem-estar individual. Quando retirada desse contexto, a prática pode se tornar superficial, negligenciando elementos essenciais como o cultivo do bondade-amorosa (metta) e da compaixão.

Sem essa base, os praticantes podem ser mais vulneráveis a efeitos adversos, como dissociação, distanciamento emocional e o surgimento de traumas reprimidos. A superficialidade da atenção plena praticada fora desse contexto também pode limitar os seus benefícios, transformando-a numa simples técnica de relaxamento, sem abordar as questões mais profundas que afetam a mente humana.

O termo original em páli para atenção plena é sati. No Satipatthana Sutta (MN 10 / DN 22) o Buda apresenta os quatro fundamentos, ou quatro bases da atenção plena:

  • Contemplação do corpo (kayanupassana)
  • Contemplação das sensações (vedananupassana)
  • Contemplação da mente (cittanupassana)
  • Contemplação dos dhammas (dhammanupassana)

A prática deve ser feita com compreensão das Quatro Nobres Verdades e sempre acompanhada de fatores como diligencia (atapi) e compreensão clara (sampajañña). Enquanto sati mantém a atenção no objeto de meditação, sampajañña proporciona a compreensão clara do que está acontecendo, tornando-os complementares e inseparáveis na prática.

Sati faz parte do Nobre Caminho Óctuplo, é o sétimo fator referido como atenção plena correta (Samma-sati ) e está intrinsecamente ligado aos outros fatores:

  • Depende de Samma-ditthi (Visão Correta) para direcionamento adequado;
  • Trabalha juntamente com Samma-vayama (Esforço Correto) para equilibrar a prática;
  • Leva a Samma-samadhi (Concentração Correta);
  • Está sempre integrado com sīla (ética), samādhi (concentração) e paññā (sabedoria).

No Mahacattarisaka Sutta (MN 117) o Buda explica como todos os fatores do caminho trabalham em conjunto, mostrando que sati isolado não pode levar à libertação.

Os suttas budistas assim como a literatura de comentários (Aṭṭhakathā) demonstram claramente que a prática nunca foi concebida como uma técnica isolada, é integrada num caminho mais amplo. E por isso a prática secular moderna de mindfulness, divorciada deste contexto completo, pode ser problemática ou limitada nos seus benefícios.

A importância do contexto ético e compassivo

No budismo, práticas como a meditação da bondade-amorosa (metta) e a compaixão são fundamentais para apoiar a atenção plena. Elas ajudam a criar um ambiente emocional seguro, reduzindo o risco de dissociação e promovendo um senso de interconexão com os outros. Quando essas práticas estão presentes, os praticantes se tornam mais abertos à experiência de emoções difíceis, mas de maneira equilibrada e compassiva.

A ausência dessas práticas em abordagens seculares pode deixar os praticantes desprotegidos contra os efeitos adversos de uma introspecção profunda não supervisionada. Num contexto onde não se enfatiza o desenvolvimento de compaixão e empatia, o foco excessivo na auto-observação pode resultar num aumento do narcisismo ou num isolamento emocional progressivo.

O papel das práticas devocionais

As práticas devocionais, comuns em maior ou menor grau nas tradições budistas, também podem desempenhar um papel importante em manter a estabilidade emocional dos praticantes. Práticas devocionais e meditações sobre alegria e amor são seguras em todos os contextos e conectam a mente a uma fonte de refugio e apoio, que incentiva a humildade, a gratidão e a estabilidade emocional.

Como mitigar os riscos

Embora o mindfulness tenha inegáveis benefícios, é essencial que a sua prática seja orientada por profissionais qualificados, especialmente em casos de indivíduos com histórico de trauma ou transtornos mentais. A integração de práticas de compaixão e a adoção de uma abordagem ética são fundamentais para garantir a segurança emocional do praticante.

Outro ponto importante é a necessidade de criar espaços seguros para discutir experiências adversas, sem estigmatizar quem enfrenta dificuldades. Praticantes devem ser incentivados a compartilhar os seus desafios com instrutores ou terapeutas experientes, a fim de evitar a internalização de experiências negativas.

Conclusão

A atenção plena não é uma panaceia e, quando aplicada fora de seu contexto original, pode acarretar riscos sérios. Embora os benefícios sejam inegáveis, é necessário reconhecer que a prática isolada e descontextualizada pode ter consequências psicológicas adversas.

Na meditação encaramos as nossas sombras, as nossas máscaras, a verdade do nosso sofrimento, enfrentamos a realidade do que consideramos o nosso “eu”. É um caminho que não está isento de dor, pode doer. Para algumas pessoas que apresentem alguma fragilidade mental pode eventualmente ser perturbador. A atenção plena e a meditação fora da estrutura budista podem ser prejudiciais. A atenção plena e a meditação dentro da estrutura budista são muito mais seguras.

Portanto, a integração de práticas de compaixão, a orientação adequada e o respeito pelas suas origens espirituais podem ajudar a garantir que a atenção plena seja não apenas eficaz, mas também segura para todos os praticantes. Adotar uma abordagem equilibrada e informada é o caminho mais sólido para colher os frutos dessa prática milenar sem abrir caminho para o seu lado sombrio.

Referências: Sciencealert, Bigthink, The Guardian, Visão, Pema Düddul.

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