Sutras e Textos Canónicos Theravada

Os dez episódios mais engraçados do Cânone Páli

O Cânone Páli não é alicerçado apenas em ensinamentos e histórias sérias, vários momentos de humor também podem ser encontrados nas antigas escrituras budistas. Ajahn Sujato compartilha os 10 episódios do Cânone Páli que considera mais engraçados. A lista de episódios divertidos inclui um yakkha a dar uma palmada na careca de Sariputta, o Brahma envergonhado por não ter a sabedoria do Buda, a derrota humilhante de Mara, entre outros momentos engraçados. Cada história ressalta os ensinamentos budistas por meio da sátira e sagacidade. O artigo sugere que insights profundos podem emergir do humor dentro do Dhamma, ilustrando o lado mais leve das escrituras budistas.


Titulo original: “The Ten Funniest Scenes from the Páli Canon”, por Ajahn Sujato.
Publicado originalmente no site pessoal de Ajahn Sujato em 29/11/2011, com licença CC0 | Ver original.
Tradução de Manuel Sanches para o Olhar Budista.

O quê?! O Cânone Páli é profundo, difícil, revolucionário: mas, certamente, não é engraçado. E se for, porque é que o é? Qual é a natureza e o propósito do humor do Dhamma?

Felizmente vou deixar de fora assuntos pesados relacionados com interpretação e vou apresentar aqui a lista definitiva dos episódios mais engraçados. Se o leitor tiver outras sugestões, por favor deixe-as nos comentários. Nesta lista terei em consideração apenas os suttas antigos. Há bastante mais humor no vinaya, e ainda mais nas jatakas, mas seria demasiado difícil escolher [entre tantas fontes].

10. Saccaka recebe a sua punição

Onde? Majjhima Nikaya 35, Culasaccaka Sutta.

O que acontece? Saccaka, o asceta errante, aparece em alguns suttas. Aqui ele ameaça confrontar o Buda num debate acerca dos cinco agregados e da doutrina da não-eu, apresentando uma elaborada série de símiles acerca de como irá arrastar o Buda “como um enorme elefante se divertiria a lavar cânhamo.”

Nota do Tradutor: Esta imagem do elefante é estranha, mas confirmei no original: “And just as a sixty-year-old elephant might plunge into a deep pond and enjoy playing the game of hemp-washing, so I shall enjoy playing the game of hemp-washing with the recluse Gotama.” In The Middle Lenght Discourses of The Buddha: A New Translation of the Majjhima Nikāya, translated by Bikkhu Ñaṇamoli and Bikkhu Bodhi (Boston: Wisdom Publications), 323.

Onde está a piada? Enquanto Saccaka está a vangloriar-se, não há dúvida que o seu orgulho terá uma queda dolorosa, e o sutta não nos desilude. Ele acaba completamente humilhado, “sentado” [abatido] e deprimido. Mas como qualquer bom abatimento em contexto de debate, isto mostra-se ser um antídoto necessário para o seu orgulho. Ele acaba por se tornar um arahant.

9. A vanglória de Brahma

Onde? Digha Nikaya 11, Kevaddha Sutta.

O que acontece? Um monge procura a resposta à questão: “Onde é que os quatro grandes elementos cessam sem deixar rasto?” Ele pergunta aos deuses, mas eles aconselham-no repetidamente a perguntar a alguém no patamar superior (o que é, em si, uma adorável sátira acerca da natureza burocrática da hierarquia celeste), até que ele chega ao reino de Brahma. Brahma aparece e vangloria-se: “Eu sou Brahma, o Grande Brahma, Pai de Tudo…”. Mas continua a evitar a pergunta. O monge é tão persistente que, eventualmente, Brahma pega nele pelo braço, põe-no de parte, e sussurra-lhe: “Na verdade, eu não sei a resposta à tua pergunta. Devias ter perguntado ao Buda!”

Onde está a piada? É uma brilhantemente precisa crítica das pretensões religiosas. A fanfarronice e o “ladrar sem morder” são revelados pelo que são. Enquanto que esta história por si só é dirigida aos Brahmans, outros textos deixam claro que o Buda respeitava a boa prática dos Brahmans da antiguidade (afinal de contas, ele atingira jhanas suficientes para se tornar um Brahma em primeiro lugar). A questão aqui é que a autoridade religiosa é suportada por aparências superficiais, e com uma algum questionamento dedicado e persistente qualquer pessoa pode ver o que está debaixo.

8. Sariputta é golpeado

Onde? Udana 4.4, Junha Sutta.

O que acontece? Um yakkha que por ali passava vê Sariputta a meditar durante a lua cheia, sendo a sua cabeça acabada de rapar um tentador alvo para o bordão de um ogre. Sem conseguir resistir, e apesar dos avisos do seu amigo, ele desfere um golpe na cabeça de Sariputta, que dividiria uma montanha em duas. Sariputta mantem-se sentado, sem se deixar perturbar, e o golpe faz ricochete. Mais tarde, Moggallana pergunta-lhe se ele viu algo fora do comum, e Sariputta responde: “Não, mas tenho uma ligeira dor de cabeça.”

Onde está a piada? Vá lá. Um enorme troll a esmagar uma careca que brilha ao luar? Como é que isto não é engraçado? Esta episódio é puro humor físico e mostra um divertido contraste entre a religião violenta dos yakkhas – que, não nos esqueçamos, era uma prática religiosa comum que costumava envolver sacrifício humano – e o cultivar pacífico dos budistas. Ficamos sem dúvida acerca de onde a verdadeira força se encontra.

7. Sakka dá a volta

Onde? Samyutta Nikaya 11.6, Kulavaka Sutta.

O que acontece? Na guerra interminável entre os deuses e os titãs, os deuses perderam a batalha e estavam a fugir, com os titãs a persegui-los de perto. O caminho por onde fugiram levá-los-ia a atravessar uma floresta repleta de aves delicadas, com crias nos seus ninhos. Sakka não foi capaz de colocar em perigo criaturas tão inocentes, então instruiu o seu cocheiro, Matali, que desse a volta, mesmo que isso significasse enfrentar os seus inimigos. Os titãs, no entanto, assumiram que Sakka tinha dado a volta porque tinha reforços militares. Aterrorizados, fugiram, e os deuses ficaram vitoriosos – e salvaram as aves.

Onde está a piada? Sakka é a versão budista de Indra, o feroz deus védico da guerra. Ele é o arquetípico herói ariano, levando o seu povo em ataques de carroça, pilhando e massacrando na alegria da força e da vitória. Os textos budistas transformam-no, mas não sem algum esforço, num porta-voz pela não-violência. Tal como todas as alegorias religiosas, esta apresenta, de um modo leve, uma alegoria política a favor da ideia que a não-violência pode ser uma fonte de força e sucesso político.

6. A humilhação de Mara

Onde? Sutta Nipata 3.2, Padhana Sutta

O que acontece? Mara cansa-se ao tentar derrotar o Buda, mas acaba por encontrar algum rumo. Enquanto que as representações mais tardias representam o exército de Mara como um depravado grupo de monstros, esta história mais antiga apresenta dez fatores puramente psicológicos enquanto exército de Mara: o desejo, o cinismo, e afins. Mara experimenta tentar o Buda a viver uma vida de mérito favorável e desistir do seu esforço pelo Despertar. Mas o Buda mostra-se impenetrável, e Mara acaba deprimido, dizendo que tem tanto acesso ao Buda como um corvo a debicar uma pedra. Este episódio acaba com a imagem inesquecível do “troll deprimido” a deixar o seu alaúde escorregar de debaixo do braço e a desaparecer.

Onde está a piada? Mara é, dificilmente, o modelo do mal que esperaríamos em comparação com o Satanás cristão. Ele é mais semelhante às figuras do charlatão/vigarista da mitologia folclórica; mas ele acaba por ser aquele que é enganado. A sua derrota inevitável é um padrão, repetido em incontáveis histórias. Como o Coiote dos desenhos-animados Looney Tunes (outro exemplo da figura do vigarista), a diversão é ver a sua (ainda que, admirável) persistência e ingenuidade, sabendo desde o início que todos os seus esforços estão condenados à partida… Podia ter escolhido qualquer um de vários dos contos de Mara para esta parte, mas senti que este episódio, pela sua grande natureza arquetípica, mereceu o lugar. Uma menção especial, todavia, para Majjhima 50, Maratajjaniya: Mara entra em Moggallana para o possuir, e Moggallana diz que se sente como se tivesse a barriga cheia de feijões.

5. A doutrina de Dighanakha

Onde? Majjhima Nikaya 74, Dighanakha Sutta.

O que acontece? Dighanakha aproxima-se do Buda e, sem cerimónia, declara-lhe a sua doutrina. Com um nome que significa “Unhas-longas,” o leitor já deve imaginar que isto não vai acabar bem. A sua doutrina é “nada, seja o que for, é prazeroso para mim.” O Buda responde com uma das melhores respostas rápidas [original: one-liner] nos suttas: “Bom, esta visão é sua, isso dá-lhe prazer?”

Onde está a piada? A resposta do Buda é aguçada, graciosa, e vai direta ao coração do assunto. Tal como o melhor humor, não é apenas divertido, mas aponta para uma verdade profunda: as pessoas religiosas muitas vezes dizem ter largado o mundo, mas é o apego aos seus ideais religiosos que os está a prender.

4. As mulheres de Ratthapala

Onde? Majjhima Nikaya 82, Ratthapala Sutta

O que acontece? Ratthapala é o filho de uma família rica. É-lhe permitido que abandone o lar (para ser asceta) pelos seus pais apenas depois de se abster de comer quase ao ponto de morrer. Quando ele regressa à sua família depois de atingir o despertar, eles tentam-no a voltar às coisas mundanas, colocando uma grande pilha de outro à sua frente e servindo-lhe comida deliciosa. As ex-mulheres de Ratthapala vêm ter com ele, com intenção de seduzi-lo. Elas perguntam-lhe: “Como são elas, as donzelas divinas, por quem estás a seguir a vida monástica?” Ratthapala diz: “Irmãs, nós não vivemos a vida monástica pelas donzelas divinas.” Elas gritam num lamento: “Ele chamou-nos ‘irmãs’!” e caíram num desmaio.

Onde está a piada? As interpretações acerca deste episódio podem variar! Sim, é um típico cenário de “a mulher tenta o asceta”; mas não acho que seja tão sexista como possa parecer fora de contexto. O grande volume deste sutta tem Ratthapala a lidar com os seus pais carentes, e mais tarde com um rei. As mulheres aparecem apenas neste episódio específico, e são um transparente mecanismo de narrativa. Eu acho a imagem das mulheres a lamentar “Ele chamou-nos de irmãs” e a desmaiar simplesmente muito exagerado. Elas parecem enfadonhas valley-girls; e para mim o humor está na inocência da sua resposta, em contraste rígido com as mulheres fortes e sábias que se podem encontrar noutros suttas. Parece-me um exemplo exagerado, contrastando lindamente com o ensinamento mais melancólico e profundo com que o sutta acaba. O sutta como um todo é um dos mais dramaticamente conseguidos em todo o cânone, e o seu efeito é parcialmente conseguido com a fusão de elementos mais pesados e mais leves. De qualquer modo, se o leitor continuar a achar que esta história é uma prova do sexismo no Cânone Páli, talvez não esteja familiarizado com…

3. A canção de liberdade de Mutta

Onde? Therigatha 1.11, Muttatheri

O que acontece? Uma monja desperta canta acerca da sua liberdade das três coisas tortas: o almofariz, o pilão e o seu marido corcunda.

Onde está a piada? As políticas sexuais, parece-me, mudaram, mas pouco. Estes curtos versos vão alegremente do mundano para o sublime, falando com inteligência e âmago acerca da realidade que é a desilusão doméstica. Em vez de oferecer uma solução à moda da Cinderela (o belo príncipe irá levar-te com ele e poderás viver num castelo – com outra pessoa a cozinhar e limpar), eles oferecem uma solução genuína: liberdade do nascimento e da morte.

2. A fé de Citta

Onde? Samyutta Nikaya 41.8, Nigantha

O que acontece? Citta, um discípulo leigo muito inteligente e capaz, vai ver Mahavira (conhecido em páli como Nigantha Nataputta), o líder dos jainistas e o rival principal de Buda. Mahavira pergunta-lhe se ele tem fé na alegação do Buda faz ao dizer que existe um estado mental tão quieto que todo o movimento mental e pensamento aplicado desaparecem. Citta responde que não tem fé na alegação do Buda. Mahavira maravilha-se com esta resposta, incha o peito e declara: “Vêm? Nem os seguidores do Buda acreditam nele!” E elogiou Citta pela sua honestidade. Citta, todavia, pergunta a Mahavira: “O que é melhor, fé ou conhecimento?” Mahavira concorda que conhecimento é melhor. Citta declara então que sempre que o quer entra na segunda jhana onde não há movimento ou aplicação da mente, e atinge inclusive jhanas superiores também. Portanto ele não precisa de fé: ele fala a partir do seu conhecimento pessoal. Mahavira fica devastado: ele olha para o lado, para os seus seguidores, e comenta como acha Citta mentiroso e desonesto.

Onde está a piada? Infelizmente, nem as escrituras jainistas nem as budistas mencionam que Buda e Mahavira se tenham conhecido pessoalmente. Para além da típica crítica às pretensões religiosas, Citta expõe algumas das falhas do sistema jainista segundo a perspetiva budista. Ao focarem-se demasiado na autopunição, eles não têm a tranquilidade necessária para a meditação profunda, e assim não conseguem ver a verdade. Para além disso, Mahavira vangloria-se bombasticamente de saber tudo, no entanto é tão facilmente feito por tolo – e, ainda por cima, por um mero leigo.

1. A canção de amor de Pancasikha

Onde? Digha Nikaya 21, Sakkapanha Sutta

O que acontece? Sakka quer fazer algumas perguntas ao Buda, mas não consegue uma entrevista com ele, visto que o Buda está em retiro. Pancasikha, o músico deva [orignal: gandhabba], oferece-se para ajudar, e sem se manter demasiado perto, faz uma serenata ao Buda a exaltar “o Buda, os arahants, e o amor.” Ele canta acerca da sua amada Suriyavacchasa, “a donzela das coisas belas,” cuja beleza gloriosa ele cobiça “como os arahants amam o Dhamma.” O seu desejo cresce tal como o mérito das ofertas feitas aos arahants; e se ele se unisse com a sua amada, ele iria regojizar-se tal como o Buda ao atingir o Despertar! Apesar da ultrajante natureza inadequada da canção, o Buda recompensa-o com um elogio simpático: “O som da tua voz uniu-se bem com o som do teu alaúde.” Foi amável, e evitou habilmente comentar o conteúdo da canção. (Incidentalmente, certos mitos mais tardios fariam do alaúde de Pancasikha exatamente o alaúde que teria caído ignominiosamente de debaixo do braço de Mara no episódio mencionado anteriormente. Talvez não seja assim tão implausível, visto que ambos os eventos estão intimamente relacionados com o do Despertar do Buda.)

Onde está a piada? Uma canção de amor no Cânone Páli! Apesar destes versos serem talvez a canção de amor mais antiga registada na literatura indiana, eles estão claramente a gozar com clichés já comuns na altura. Mesmo quando a música não fala diretamente sobre budismo, usa imagens tipicamente budistas: tal como o elefante que se deixa mergulhar num refrescante lago de flores-de-lótus, Pancasikha deseja mergulhar no peito da sua amada. Fazendo referência à futura literatura indiana, por exemplo, a Ashvaghosa, os versos estão ironicamente conscientes da sua própria tensão: o amor dela irá garantir-lhe o doce libertar semelhante à água que arrefece o fogo, mas ao mesmo tempo ele é como um peixe preso num anzol, o seu coração vinculado, e os seus pensamentos confusos. O leitor pode ver esta questão como uma genuína canção erótica, ou como uma exposição do sofrimento da luxúria. E, tal como no Ratthapala Sutta, a narrativa é sofisticada o suficiente para se mover de uma aproximação muito leve até aos assuntos pesados que são abordados mais à frente.

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