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O Buda e os Princípios Democráticos

“Pode ser uma surpresa para muitos saber que em assembleias de budistas na Índia, há dois mil anos ou mais, são encontrados os rudimentos do nosso próprio sistema parlamentar, conforme praticado hoje.”Lord Zetland, ex-vice-rei da Índia.

Tradução do ensaio “The Buddha and Democratic Principles” de Buddhadāsa P. Kirthisinghe. Publicado pela Buddhist Publication Society em 1963. | Ver original.

O princípio básico de uma forma democrática de governo é a liberdade e a dignidade do indivíduo, é ter igualdade perante a lei. Nenhum ser humano pode ser chamado de livre a menos que seja capaz de seguir a sua vocação sem ser impedido por barreiras de castas, classe ou privilégio especial. Num sentido mais profundo, nenhum ser humano é verdadeiramente livre até que possa, sem medo ou pressão da coerção autoritária, desenvolver as suas potencialidades inatas e se aperfeiçoar moldando o seu próprio Kamma ou destino. Foi o Buda que, pela primeira vez, ensinou e realizou esses valores por meio do seu Dhamma. Isso levou ao florescimento de uma civilização que, até hoje, é uma maravilha na história da humanidade.

Três séculos depois levou, pela primeira vez nos anais da humanidade, a estabelecer hospitais para pessoas e animais e a organizar uma educação universal que culminou na criação de centros internacionais de aprendizagem, hoje conhecidos como universidades. Com a disseminação do budismo na grande Ásia a partir do século III a.C. estimulou a formação de novas civilizações em função do talento dos habitantes de cada Estado. Essas civilizações produziram uma gama fascinante de formas de arte e dança, literatura, e instituições sociais e económicas baseadas no Dhamma.

Valores Democráticos

Os pré-requisitos reconhecidos de culturas democráticas são:

  • Uma economia produtiva para elevar o ser humano acima do nível de pobreza e miséria.
  • Uma sociedade progressiva, com segurança e oportunidades para todos.
  • Uma sociedade alfabetizada e com educação universal.
  • Liberdade pessoal e autossuficiência.
  • Um sistema de ética baseado na lei moral.
  • Respeito profundo pelo sistema de valores e instituições que ajudaram cada cultura a evoluir para grandes civilizações.

Esses valores foram respeitados na antiga civilização budista da Ásia, particularmente no período Asokan do século III a.C., o período áureo da história indiana. Essas condições existem hoje no Japão altamente industrializado, onde há uma civilização predominantemente budista, e nos Estados budistas da Ásia recém-surgidos. Essas nações tecnicamente atrasadas estão reconstruindo as suas economias para elevar o padrão de vida do seu povo. Entre elas, o Ceilão tem uma sociedade quase totalmente letrada, com educação gratuita desde o jardim de infância até à universidade.

O budismo deu a cada homem ou mulher uma independência robusta, ao invés da dependência da misericórdia de um Deus Criador para os melhorar. O Buda ensinou ao ser humano a capacidade de pelo seu próprio esforço se auto-ajudar para levar uma vida nobre. Para alcançar as mais elevadas condições de mente e coração, o Buda disse que o homem deve trabalhar do seu próprio jeito. Ele afirmou que as próprias ações do homem o tornariam nobre e o aconselhou a se proteger contra ações que o rebaixariam.

Além disso, o Buda afirmou que todos os seres, incluindo os seres humanos, estão sofrendo e, através do seu Nobre Caminho Óctuplo, ele deu uma receita eficaz de como acabar com esse sofrimento. Uma vez que esse Caminho é uma estrada de progresso gradual, é inteligível e praticável por todos, mesmo nos degraus mais baixos do desenvolvimento humano. Ninguém está excluído de alcançar a libertação final se apenas der resolutamente um passo após o outro nessa estrada. Assim, vemos que o Buda concedeu igualdade a todos os seres humanos – um princípio fundamental numa sociedade democrática.

Assim, o Buda fundou uma mensagem clara de liberdade humana. Ele disse. “Tomem refúgio em vocês mesmos; Sejam a vossa própria salvação. Com fervor e alta resolução trabalhem na vossa própria salvação.” [1]

O Buda apontou a loucura absoluta das distinções artificiais entre os humanos. Na época do Buda havia um rígido sistema de castas na Índia. O sistema determinava e fixava o lugar das pessoas na ordem social pelo simples facto de que o pai de alguém era de tal e tal descendência e tinha tal e tal ocupação. As castas inferiores não receberam educação e foram colocadas em posição inferior na escala social, e isso com tal rigidez que uma pessoa de casta inferior dificilmente poderia escapar da sua situação. O Buda se revoltou contra essa injustiça e afirmou a igualdade de todos os homens no que diz respeito aos seus direitos básicos.

O Buda, sem hesitar, admitiu na sua Ordem de Monges também pessoas das chamadas castas inferiores – barbeiros, talhantes, varredores e os intocáveis – junto com os membros das castas nobres e sacerdotais. Ele não fez absolutamente nenhuma distinção entre eles. Todos receberam homenagem, reverência e respeito de igual forma . Alguns membros da nobreza ficaram chateados com essas ações do Buda e um deles ousou desafiar o Buda a dar uma definição do que é um nobre. Foi então que ele declarou:

“Nenhum homem é nobre por nascimento,
Nenhum homem é ignóbil por nascimento.
O homem é nobre pelos seus próprios atos,
O homem é ignóbil pelos seus próprios atos.”

Comentando o discurso do Buda no Sigālovāda Sutta, que é baseado na ética social, o mundialmente famoso académico britânico, Professor Rhys Davids, presidente do Departamento de Religião Comparada da Universidade de Manchester, Inglaterra, diz: “Feliz teria sido a aldeia ou o clã nas margens do Ganges, quando as pessoas estavam cheias do espírito gentil de sentimentos fraternos, o nobre espírito de justiça, que respira por meio dessas simples palavras.” Ele acrescenta: “Não menos feliz seria a aldeia às margens do Tamisa, hoje, da qual isso poderia ser dito”.

Ele continua: “A doutrina do Buda de amor e boa vontade entre os homens é exposta aqui, em ética doméstica e social, com detalhes mais abrangentes do que em qualquer outro lugar… E, na verdade, podemos dizer até agora deste Vinaya ou código de disciplina, tão fundamentais são os interesses humanos envolvidos, tão sã e ampla é a sabedoria que os imaginou, as declarações são atuais e praticamente tão importantes hoje quanto eram então, em Rajagaha (Índia). ”

O Buda condenou veementemente todos os sacrifícios realizados em nome da religião, particularmente aqueles que envolviam sacrifícios de animais. Naquela época, acreditava-se que os sacrifícios expiavam o pecado e protegiam contra os espíritos malignos. O Buda disse que esses sacrifícios eram cruéis e inúteis, pois é somente por meio de uma vida nobre que o ser humano pode se elevar e estar seguro contra o mal.

A compaixão do Buda se estendeu também àqueles que estavam enfermos. Uma vez ele disse aos seus discípulos: “Quem quer que, monges, cuide dos enfermos, vai cuidar de mim”. E nesse espírito hospitais para animais e pessoas foram mais tarde estabelecidos durante o reinado de Asoka no século III a.C.

O Buda condenou qualquer tipo de escravidão. Ele estabeleceu regras de ouro para a maneira correta de ganhar a vida, de forma que não se prejudicasse os outros, e isso incluía também que qualquer tráfico de seres humanos estava fora dos limites para um budista.

O movimento da temperança deve o seu início ao Buda, que pediu aos seus seguidores que se abstivessem de usar ou vender bebidas alcoólicas e outros intoxicantes.

Evangelho da Tolerância

O Buda também proclamou o evangelho da tolerância, da compaixão, da bondade amorosa e da não violência. Ele ensinou os seres humanos a não desprezarem outras religiões nem menosprezá-las. De acordo com o Kalama Sutta, o Buda declarou ainda que uma pessoa não deve nem mesmo aceitar os seus próprios ensinamentos, a menos que os considere de acordo com o seu próprio raciocínio.

Durante o tempo do Buda existiam vários grandes reinos na Índia, como Magadha e Kosala, e alguns deles foram estabelecidos na forma democrática de governo. O Buda favoreceu a forma democrata sobre a forma oligárquica de governo, pois era um melhor tipo de governo para conduzir a sociedade à estabilidade.

O Buda demonstrou uma grande admiração pelos Vajjis ou Licchavis. No Mahāparinibbāna Sutta, ele comparou os Licchavis aos Trinta e três Deuses (Tāvatiṃsa-deva). Ele também advertiu Vassakāra, ministro do rei Ajātasattu, que os Vajjis permaneceriam invencíveis enquanto aderissem às sete regras de bem-estar de uma nação (aparihāniya dhamma), nomeadamente:

  • Reuniões frequentes para consulta.
  • Concordia em ação.
  • Aderência às injunções e tradições.
  • Respeito aos mais velhos.
  • Respeito às mulheres, que nunca devem ser molestadas.
  • Reverência aos locais de culto dentro e fora do território.
  • Proteção dos santos dignos no território.

O Buda continuou: “Enquanto os Vajjis se reunirem frequentemente em conselho, se juntem e se dispersem em harmonia (e observarem as outras regras de bem-estar), a sua prosperidade é esperada, não o seu declínio.”

Reinado de Asoka

O Imperador Asoka trabalhou com energia incessante para a propagação do Budismo e o transformou numa religião mundial. O período Asokan de 325 a 288 a.C. tem um significado especial para a humanidade, pois é um dos mais ilustres períodos democráticos e liberais da história.

Na sua época, Asoka estabeleceu jardins públicos, ervas medicinais foram cultivadas, árvores foram plantadas ao longo das estradas, hospitais foram estabelecidos para pessoas e animais. Ele abriu poços para uso público, e instituições educacionais e religiosas cresceram em todo o país.

O falecido H. G. Wells escreve no seu Outline of World History: “Em meio às dezenas de milhares de nomes de monarcas que lotam as colunas da história, suas majestades e graciosidades, e soberanias e altezas reais e semelhantes, o nome de Asoka brilha e brilha quase como uma estrela só. Do Volga ao Japão, o seu nome ainda é homenageado. A China, o Tibete e até a Índia, embora tenha deixado a sua doutrina, preservam as tradições da sua grandeza. Mais homens vivos guardam a sua memória hoje do que os que ouviram os nomes de Constantino e Carlos Magno.”

Afirma-se que Asoka foi um dos primeiros a garantir a igualdade de género ao enviar o seu próprio filho e a sua filha ao Ceilão para o trabalho missionário. Neste vasto império, Asoka tratava todos os seus súditos com igual justiça e não admitia privilégios de casta ou classe.

A formação do pensamento democrático originou-se na Índia antiga com a disseminação do budismo a partir do século III a.C. Numa introdução ao livro Legacy of India, Lord Zetland, ex-vice-rei da Índia, afirma: “E pode ser uma surpresa para muitos saber que em assembleias de budistas na Índia, há dois mil anos ou mais, são encontrados os rudimentos do nosso próprio sistema parlamentar, conforme praticado hoje.”

O professor G. P. Malalasekera diz: “A disseminação do budismo de país para país na grande Ásia foi sem derramamento de sangue e é por si só um grande processo democrático nunca testemunhado por nenhuma outra religião mundial.”

World Buddhism, Anual Vesak 1963.

N. do T.: [1]: Attadīpa Sutta (SN 22.43). A citação mais precisa pode ser encontrada aqui,

Repúblicas na época do Buda (links externos – eng):

Veja também:


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