O Chadô é uma disciplina espiritual, uma maneira de treinar o corpo e a mente. Quando nós o praticamos, a mente deve estar completamente presente em cada gesto.
Além do texto que se segue da autoria da Cristina, conheça ainda no final do artigo uma lenda sobre o chá e outras informações adicionais.
Extraído do antigo site Dharmanet (o site já não existe)
Título original: A Cerimônia do Chá e o Zen-Buddhismo1
Autora: Cristina Rocha
O Chadô2 ou Chanoyu3 é possivelmente a última arte tradicional japonesa a ser desvendada pelos olhos do ocidente. A ikebana, o sumi-e, a arquitetura e, mais que nunca a culinária japonesa, já entraram no vocabulário das grandes metrópoles ocidentais. Mas porque não a cerimônia do chá? Talvez por que demande tempo, dedicação e não resulte num produto final, como um arranjo floral ou uma pintura. Mas é exatamente a cerimônia do chá que fornece a via de acesso mais completa para penetrarmos nos meandros da cultura japonesa.
“O Zen e o Chá Têm o Mesmo Gosto”
É a primeira coisa que se ouve de um professor de Chanoyu. De acordo com a filosofia zen-buddhista, o satori (a iluminação) pode ser atingido através de ações práticas diárias ou da meditação. O Chadô é uma disciplina espiritual, uma maneira de treinar o corpo e a mente. Quando nós o praticamos, a mente deve estar completamente presente em cada gesto. Se ela vagueia, o gesto perde seu ritmo e logo não sabemos o resto da “coreografia”. Somos forçados a parar e retomar o ponto onde nos distraímos. O Chadô se desenvolveu como uma destas práticas que poderiam ser feitas fora dos mosteiros, como um caminho laico. Criado no século XVI, pela nova classe emergente de comerciantes, apresentava-se como uma alternativa cultural para aqueles que possuíam capital mas que não poderiam participar dos círculos da aristocracia ou da elite samurai. Estudiosos do zen, os comerciantes foram introduzindo seus preceitos no que era até então simples passatempo.
Sen no Rikyû (1522-1591), o grande mestre do Chadô, serviu como mestre de chá a ambos os unificadores japoneses 0151 Oda Nobunaga (1534-82) e, posteriormente, Toyotomi Hideyoshi (1536-98). Desfrutando de uma posição tão proeminente, pôde dar um rumo próprio ao Chadô, estabelecendo e levando ao extremo seus princípios filosóficos e estéticos. Entre estes está o wabi, que deriva do verbo japonês wabu (sofrer privações, sentir melancolia) e do adjetivo wabishi (solidão, desconforto), muito usado na poesia dos monges andarilhos do século XII para designar renúncia às coisas materiais. Traduzido em termos estéticos o conceito de wabi valoriza a beleza do imperfeito, do acidental, do rústico, algo que se torna belo devido a sua antigüidade. Segundo esta concepção, apenas apresentando-se exteriormente pobre e imperfeito, é que o objeto consegue fazer com que seu interior, sua essência, se manifeste. Assim, wabi não significa negar ou abandonar os objetos, mas penetrar o mais fundo possível em sua essência.
As inovações de Rikyû, baseadas no wabi, foram grandes: dispensou a mesa portátil dos tempos do chá aristocrático e colocou os utensílios diretamente no tatami, utilizou objetos japoneses, ao invés de somente objetos importados da China, preferia materiais rústicos, deixados em sua aparência natural aos laqueados e pintados. Também as salas onde o chá era servido sofreram modificações visando a simplificação e humildade: abandonou as salas maiores por uma de apenas dois tatami, criou uma porta de entrada tão pequena (nijiriguchi), que os convidados deveriam entrar acocorados (imagine-se grandes generais, com quem Rikyû se relacionava, abaixando-se humildemente à entrada!), e por fim criou um aparador para espadas (katanakake) do lado de fora da sala para que os convidados entrassem no mundo do chá desarmados (isto em meio a guerras de unificação e ao bushido, código de ética samurai, em que a espada simbolizava a alma do guerreiro).
Devido a este desejo de simplificação, de proximidade com a natureza e humildade, Rikyû também preferia utilizar, na decoração da sala de chá, caligrafias de monges zen japoneses (muitas vezes seus professores e amigos), ao invés de pinturas ou poesia chinesas. Fazia isto não só para evitar ostentação, mas por que achava que não havia uso mais vital do papel, do pincel e da tinta do que para transmitir a idéia de satori (iluminação) que era veiculada por aquelas caligrafias.
Sen no Rikyû deu à todas estas invenções formais um conteúdo filosófico que definitivamente colocava o Chadô como uma disciplina espiritual, caminhando par e passo com o zen-buddhismo. Para isto, identificou seus quatro princípios filosóficos básicos: wa (harmonia), kei (respeito), sei (pureza), jaku (tranqüilidade). Wa, harmonia, é o sentimento de perfeita integração entre o convidado, o anfitrião e a natureza. Tanto o anfitrião deve imaginar-se na posição do convidado e fazer tudo para que este se sinta confortável, como o convidado deve perguntar-se como se sentiria se estivesse na posição de anfitrião e, portanto, deve esforçar-se para suprir todos os desejos deste. A relação com a natureza é cara ao povo japonês, os tipos de cerimônia, alimentos a serem servidos, recipientes para servi-los, nomes poéticos dos utensílios, caligrafia, flores, kimonos usados, enfim, tudo deve estar de acordo com a estação do ano presente. Kei, é o respeito e sentimento de gratidão que existe entre convidados, anfitrião e natureza. Nas aulas de Chanoyu aprende-se a respeitar cada objeto, aprende-se que os objetos trazem consigo a alma, o trabalho de quem os confeccionou, ao fazermos reverência aos objetos na verdade estamos fazendo reverência aos seus criadores. Sei, a pureza, refere-se à limpeza e ordem não só no sentido físico, nas salas, utensílios e jardim, mas também no espiritual — pureza no coração (kokoro — termo japonês que significa mente, espírito e coração ao mesmo tempo). Com objetivo similar à atividade do samu (trabalho manual e meditação) do zen-buddhismo, enquanto limpamos as salas, utensílios e jardins, estamos igualmente purificando nosso kokoro. Jaku, é a tranqüilidade que se consegue praticando os três primeiros princípios. Mas é bem mais do que o estado psicológico de tranqüilidade. Ele transcende a mente e o corpo, é espiritual.
Como vimos, Sen no Rikyû assegurou um conteúdo espiritual ao Chadô, transformando o que poderia ter sido apenas uma arte voltada para as formas (kata) numa arte com espírito (chi), espírito este baseado na vida dos mosteiros zen-buddhistas. E fazendo isto, conseguiu estender o Chanoyu a todos os aspectos da existência, fazendo desta arte um verdadeiro modo de vida, que não se encerra numa sala de chá.
Em Que Consiste Esta Prática?
Em primeiro lugar temos um anfitrião que convida alguém para uma reunião de chá (chaji). Este convidado principal deverá indicar mais duas ou três pessoas que ele gostaria que também participassem do chaji. Durante a reunião o anfitrião pouco fica com seu convidado. São estas outras pessoas que vão lhe fazer companhia na pequena sala de chá.
Em seguida o anfitrião escolhe um tema ao redor do qual fará todas as escolhas (da comida, dos utensílios, das flores, caligrafia e doces) ao longo da reunião para que elas tenham uma relação harmoniosa. O tema pode ser a estação do ano que se aproxima, um evento comemorativo ou uma data importante na vida do convidado principal.
Uma cerimônia do chá integral tem a duração de aproximadamente quatro horas e pode ser dividida em três partes:
Primeira Parte
O anfitrião recebe os convidados, prepara o fogo (há uma cerimônia específica para colocar o carvão e incenso no braseiro — shozumi), e serve uma refeição onde vários pratos se sucedem. A seqüência dos pratos segue uma forma rígida, mas cabe ao anfitrião escolhê-los de acordo com o gosto do convidado e com o tema da reunião. Esta refeição, chamada Kaiseki (nome dado às pedras quentes que os monges zen colocavam no estômago para aplacar a fome e o frio nas longas horas de meditação), foi inspirada na comida servida nos mosteiros zen e tornou-se o paradigma da culinária japonesa. Sua aparente simplicidade não consegue esconder o apuro com que os recipientes de diferentes materiais (cerâmica, laca, cristal, porcelana) foram combinados com os alimentos escolhidos de acordo com as estações do ano. O kaiseki não é uma refeição somente para o estômago, mas principalmente para os olhos e espírito (kokoro). Ao fim da refeição, um doce é servido individualmente, já anunciando a terceira parte da reunião, quando finalmente o chá será preparado.
Segunda Parte
Depois da refeição há um intervalo no qual os convidados podem sair ao jardim para caminhar e descansar. Saberão que é o momento de retornar à sala quando ouvirem cinco batidas de gongo. Assim como nos mosteiros zen-buddhistas, o tempo do chaji é marcado pelo som do gongo.
Terceira Parte
A sala encontra-se à meia luz, as janelas foram cobertas com papel de arroz, o anfitrião colocou um arranjo de flores no tokonoma, nicho onde na primeira parte da reunião encontrava-se apenas uma caligrafia. Tudo está limpo e impecável. A terceira parte é o momento em que os dois tipos de chá são servidos. O primeiro é o chamado koicha4, ou chá forte. Ele traduz o clima formal que se instaurou na sala. Os convidados estão em silêncio, observam atentamente os movimentos do anfitrião ao preparar o chá à sua frente. Ele coloca a cumbuca (chawan) preparada no tatami. Todos bebem da mesma cumbuca. Enquanto ela passa de mão em mão sente-se a comunhão dos convidados. É o clímax da reunião, o momento onde todos são um, assim como na doutrina zen-buddhista, em que o ser humano participa da natureza como uma unidade. Findo o koicha, é o momento de se refazer o fogo acrescentando mais carvão (gozumi). Para o segundo tipo de chá o anfitrião traz novos doces mais leves, colocados juntos numa só bandeja, e utensílios próprios para o chá fraco. O clima agora é arejado, os convidados conversam entre si e com o anfitrião, que lhes servirá quantas cumbucas quiserem. Contudo, quando os convidados sentirem que é o momento de partir, devem pedir para que o anfitrião encerre a preparação de chá. Depois de retirar os utensílios da sala, anfitrião e convidados fazem uma reverência agradecendo o momento partilhado juntos. Os convidados saem um a um, não sem antes dirigirem-se mais uma vez às flores e a chaleira para admirá-los. Ao portão, viram-se e, com uma reverência silenciosa, despedem-se de seu anfitrião que veio até a porta da sala dizer-lhes adeus.
No Chanoyu não há diferença entre espectadores e atores. Todos são atores que devem saber o seu papel e comunicar-se simbolicamente através dele. Nenhuma das duas partes pode agir como quiser, mas ambas devem atuar em mútua consideração. Esta atitude, que reflete os quatro princípios mencionados anteriormente — harmonia, respeito, pureza e tranqüilidade — não deve ficar confinada na sala de chá, mas deve estar sempre presente no coração do chajin (pessoa que se dedica ao Chadô).
Notas:
- Este artigo foi baseado na minha dissertação de mestrado: A Cerimônia do Chá no Japão e sua Reapropriação no Brasil: Uma Metáfora da Identidade Cultural do Japonês (ECA/USP). Como parte de trabalho de pesquisa sobre a Cerimônia do Chá fui bolsista por um ano da Fundação Urasenke de Cerimônia do Chá em Kyôtô, Japão entre 1992 e 1993. Igualmente, com uma monografia sobre a Cerimônia do Chá ganhei o primeiro lugar no Concurso Nacional de Monografias promovido pela USP e Associação de Intercâmbio Japão-Brasil para as comemorações do Centenário do Tratado de Amizade Brasil-Japão, em 1995. Com este prêmio novamente fui ao Japão para dar palestras na Universidade de Sophia, Tôkyô.
- Chadô, literalmente “caminho do chá”, é um dos nomes da cerimônia do chá quando encarada de um ângulo filosófico-religioso. Para o zen-buddhismo há vários outros “caminhos”, além do Chadô, para se atingir a iluminação: o shodô (caminho da caligrafia), kendô (caminho das espadas), kadô (caminho das flores), etc.
- Literalmente “água quente para o chá”, nome comumente usado para designar o chá como objeto de estudo.
- O chá para o Chanoyu — o chamado macha — é diferente dos outros tipos de chá, pois não é feito por infusão. Para prepará-lo dentro da sala de chá, bate-se a água quente com o chá em pó, até que se forme uma espuma na superfície.
“A Filosofia do Chá não é mero esteticismo na acepção vulgar do termo, porque exprime, conjuntamente com a ética e a religião, todo o nosso ponto de vista a respeito do homem e da natureza. É higiene, porque impõe limpeza; é economia, porque revela o conforto que existe na simplicidade, mais do que no que é elaborado e caro; é geometria moral na medida em que define o nosso sentido de proporção face ao universo. Representa o verdadeiro espírito da democracia oriental ao fazer de todos os seus partidários aristocratas no gosto.”
Okakura Kakuzō
Na China a cerimónia do chá é chamada de “Cha Yi” ou “Cha Dao” e tem diferentes estilos, como a Gongfu (cerimónia do chá Kung fu) e a Wu-wo (termo budista que em sânscrito se chama anatta; essa cerimónia deriva da Gongfu). Essas cerimónias diferem da japonesa, embora o espirito seja semelhante.
A origem do chá está em volta em mitos e muitas histórias. Uma das lendas diz que o monge budista Bodhidharma, que há mais de 1500 anos chegou à China vindo da Índia, esteve meditando por vários anos numa caverna de uma montanha chinesa. Ele queria manter-se com a mente alerta e consciente mas estava sendo difícil e volta e meia fechava os olhos e começava a cair no sono. Então, para evitar dormir, Bodhidharma cortou as pálpebras e as atirou para o chão. No local para onde as pálpebras foram atiradas nasceu a planta do chá.
Lembrando que o chá, no seu sentido original, é preparado com folhas ou raízes da planta do chá (Camellia sinensis). Quando é usado outra planta é uma infusão, ainda que popularmente se continue a chamar de chá.
Leitura adicional (links externos):
- The Book of Tea – Okakura Kakuzō (ebook em html, inglês)
- O Livro do Chá – Okakura Kakuzō (Goodreads)
Veja também:
- Omotenashi: a hospitalidade na Cerimónia do Chá e no quotidiano
__________ - Enso, o Círculo Zen
- Oryoki: a tigela que contém o suficiente
- A arte de esculpir a impermanência no nevoeiro
- [Vídeo] Wabi-Sabi
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