Vivemos num mundo em que as necessidades emocionais se entrelaçam com a nossa identidade. Desde cedo, aprendemos a buscar reconhecimento e validação externa: queremos ser vistos, amados, respeitados. Mas o que acontece quando essa necessidade se torna uma prisão invisível? O monge Ajahn Jayasaro nos convida a refletir sobre esse ciclo de desejos e medos, oferecendo uma perspectiva libertadora por meio dos ensinamentos budistas.
A prisão das necessidades
O desejo de ser aceite não existe isoladamente; ele sempre carrega a sua contrapartida sombria: o medo da rejeição. Quando buscamos a aprovação dos outros, criamos uma vulnerabilidade interna que nos faz reféns da opinião alheia. O temor de parecer fraco, burro ou indigno se torna um fantasma constante. Talvez o medo mais profundo seja o de sermos invisíveis, irrelevantes num mundo que cada vez mais exige protagonismo. Essa busca incessante por validação externa cria uma prisão onde os nossos sentimentos e autoestima dependem do olhar alheio.
O Caminho da libertação
Ajahn Jayasaro nos lembra que essas necessidades e medos são parte inerente da experiência humana enquanto estivermos presos à noção de identidade (sakkāyadiṭṭhi). No budismo, o conceito de “noção de identidade” refere-se ao apego à ideia de um “eu” fixo. Essa ilusão nos leva a crer que necessitamos de validação constante.
Até que possamos transcender essa ilusão do “eu” e do “meu”, esses anseios sempre nos acompanharão em algum grau. A sociedade alimenta esse ciclo ao reforçar a ideia de que o nosso valor depende da aprovação externa, tornando-nos reféns da opinião alheia e da constante comparação. No entanto, o caminho para a verdadeira liberdade não está em satisfazer essas necessidades, mas em reconhecê-las como projeções da mente condicionada. A prática do Caminho Óctuplo, ensinada pelo Buda, oferece um meio de enfraquecer esse apego. Ao cultivarmos clareza mental e autoconsciência, percebemos que a nossa verdadeira segurança não está nas aprovações externas, e nos tornamos cada vez mais à vontade com a sensação profunda de bem-estar que vem com a clareza interna e a consciência.
Um sinal de progresso no caminho é a noção crescente de refúgio no Buda, Dhamma e Sangha, as 3 joias do budismo, juntamente com o enfraquecimento do nosso anseio pela validação dos outros. Esse refúgio não significa um afastamento do mundo, mas sim um realinhamento de prioridades. Em vez de buscarmos reconhecimento fora, aprendemos a valorizar a lucidez e o bem-estar que emergem da compreensão profunda da realidade.
Atravessar o caminho do desapego é um desafio, mas também uma oportunidade de verdadeira liberdade. Quando reconhecemos que a necessidade de validação é uma construção da mente, podemos começar a dissolvê-la. Ao fazê-lo, encontramos um contentamento que não depende dos outros, mas sim da nossa capacidade de ver a realidade com clareza e aceitação. Assim, deixamos de ser escravos da aprovação alheia e nos tornamos verdadeiramente livres.
É sempre importante no entanto ressaltar que devemos ter em atenção para não cairmos no egoísmo e narcisismos, no sentido de deixarmos de nos importar com o que os outros pensam para começarmos a olhar apenas para o nosso umbigo, sem atenção às consequências para nós e para os outros, e nem o enfraquecimento dessa necessidade deve ser uma desculpa para a estagnação e para não nos melhorarmos como pessoa. A diluição do nosso anseio pela validação dos outros, apontado por Ajahn Jayasaro, deve ser acompanhado por compaixão e sabedoria, para gradualmente experimentarmos a libertação.
Através da observação atenta dos estados mentais, conforme ensinado pelo Buda no Satipatthana Sutta (MN 10), podemos ver claramente como surgem e cessam os padrões de busca por aprovação. Esta compreensão experiencial gradualmente nos liberta da necessidade compulsiva de validação externa, de “máscaras” ou “maquilhagem”. A libertação dessa necessidade está intimamente ligada ao entendimento profundo de anattā (não-eu), como ensinado pelo Buda no Anatta-lakkhana Sutta (SN 22.59). Quando começamos a ver através da ilusão do “eu” permanente, os quatro tipos de apego (upādāna) – especialmente o apego à noção de identidade (attavādupādāna) – começam naturalmente a enfraquecer. Este processo é apoiado pelo cultivo dos brahma-viharas (metta, karuna, mudita e upekkha), que nos ajudam a desenvolver relações mais saudáveis e menos dependentes, baseadas na genuína bondade e compaixão, em vez da necessidade de aprovação.
Referência: Ajahn Jayasaro, Yellow Pages, 17/08/2024; Cânone Páli.
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