Alimentação

O jejum no budismo

O jejum marca presença no budismo desde os seus primórdios. É crucial distinguir entre o jejum extremo, que Siddhartha Gautama (o Buda) experimentou e subsequentemente rejeitou, e o jejum moderado. O jejum extremo, caracterizado pela auto-mortificação severa, foi considerado ineficaz para alcançar a iluminação, levando o Buda a procurar uma abordagem mais equilibrada. Em contraste, o jejum moderado é praticado no Budismo como um meio para cultivar a autodisciplina, a capacidade de renuncia, e a meditação.

O princípio orientador que permeia a prática do jejum no Budismo é o Caminho do Meio (em páli: Majjhimāpaṭipadā), que preconiza evitar os extremos da indulgência sensorial e da auto-mortificação. No Budismo o jejum não é um fim em si mesmo, mas um meio para alcançar um maior bem-estar espiritual e mental, devendo ser praticado com discernimento.

O jejum também se diferencia entre a prática leiga e a prática monástica. Para os leigos não existe a obrigação do jejum na vida diária, é uma prática que pode fazer parte de retiros ou voluntariamente adoptada em certos períodos. Já para os monásticos vai depender da escola a que pertence, por exemplo no Theravada geralmente os monges não comem após o meio-dia e fazem apenas uma ou duas refeições por dia.

Contexto histórico: a evolução do jejum na tradição budista

A jornada espiritual de Siddhartha Gautama incluiu um período significativo de jejum extremo antes da sua iluminação. Esta experiência é detalhada no Mahasaccaka Sutta (MN 36): “Por comer tão pouco, os meus membros ficaram como os segmentos articulados de uma videira ou bambu. Por comer tão pouco, as minhas costas ficaram como a corcova de um camelo. Por comer tão pouco, as projeções da minha coluna pareciam contas de um cordão. Por comer tão pouco, as minhas costelas se projetavam para a frente tão frágeis como as traves de um celeiro destelhado. Por comer tão pouco, o brilho dos meus olhos se afundou dentro da cavidade do olho, parecendo com o brilho d´água no fundo de um poço profundo. Por comer tão pouco, o meu escalpo enrugou e encolheu como uma abóbora verde, amarga, enruga e encolhe com o vento e o sol. Por comer tão pouco, a pele da minha barriga se uniu à minha coluna; portanto se eu tocasse a minha barriga encontrava a minha coluna e se tocasse a minha coluna encontrava a pele da minha barriga. Por comer tão pouco, se eu urinasse ou defecasse eu caía com a cara no chão ali mesmo. Por comer tão pouco, se eu tentasse aliviar meu corpo esfregando meus membros com as mãos, os pelos, com as raízes apodrecidas, caíam do corpo à medida que eu os esfregava.” Esta fase de auto-mortificação severa demonstra a sua dedicação inicial à busca da libertação.

No entanto, o Buda acabou por abandonar as práticas ascéticas severas, como o jejum extremo, reconhecendo que esse caminho não o conduzia à iluminação. Ele percebeu que a debilidade física extrema resultante do jejum não traria qualquer benefício e que se continuasse assim iria morrer sem alcançar a libertação. Este abandono marcou uma mudança significativa no pensamento espiritual indiano da época, que frequentemente valorizava a austeridade como um meio fundamental para a libertação.

Em fontes canónicas posteriores aos textos budistas mais antigos (EBTs), é contado que Siddhartha Gautama aceitou uma tigela de arroz com leite oferecida por uma jovem chamada Sujata, E assim, a sua força mental e física é restabelecida, até que por fim acaba por atingir o despertar; o príncipe Siddhartha torna-se num Buda. A oferenda de Sujata não foi apenas um ato de bondade, mas um evento simbólico que marcou a rejeição do ascetismo extremo e a adoção de uma abordagem mais equilibrada: o Caminho do Meio.

Com a Sangha monástica já estabelecida, o Buda estipula diretrizes para a forma como os monges se devem alimentar. Uma das regras mais conhecidas é a de não comerem após o meio-dia. A moderação ao comer em páli é chamada de bhojane mattaññutā.

Formas de observância de jejum no budismo

A observância do jejum no budismo pode variar de escola para escola. Abaixo são relatadas 3 práticas, entre outras possíveis.

Como já referido mais acima, no Theravada os monges geralmente não comem após o meio-dia, e tomam apenas uma ou duas refeições. É o suficiente para cultivar a renuncia e ao mesmo tempo manter a saúde do corpo. No Bhaddali Sutta (MN 65), o Buda diz: “Bhikkhus (monges), eu me alimento uma vez por dia. Fazendo isso, eu fico livre de enfermidades e aflições, desfruto de boa saúde, energia e permaneço com conforto. Venham, bhikkhus, alimentem-se apenas uma vez ao dia. Fazendo isso, vocês ficarão livres de enfermidades e aflições, desfrutarão de boa saúde, energia e permanecerão com conforto.”

Quanto aos leigos, essa é uma prática voluntária. É mais usual ser observada em alguns retiros e nos dias de uposatha. O Uposatha são dias de observância em que é feita uma prática mais intensa. Ocorre cerca de uma vez por semana, de acordo com as quatro fases lunares: a lua nova, a lua cheia e os dois quartos de lua entre elas. Em algumas comunidades, como no Sri Lanka, apenas a lua nova e a lua cheia são observadas como dias de uposatha. Em países onde o Mahayana predomina, ao longo do mês podem existir 10 ou 6 dias de uposatha.

Durante o uposatha em que a pratica é mais intensa, os leigos em vez dos 5 preceitos, passam a seguir 8 ou 10, o que inclui não comer após o meio-dia. Os leigos não são obrigados a observarem todos os dias de uposatha, alguns optam por observarem esporadicamente num dia de lua cheia por exemplo, outros todos os dias de lua cheia de cada mês, enquanto que outros exatamente todos os dias de uposatha.

Além isso, nas tradições tibetanas há o Nyungne, que é uma prática intensiva de jejum e purificação baseada na prática tântrica de Chenrezig (Avalokiteśvara de Mil Braços). Geralmente realizada ao longo de dois dias, envolve a manutenção dos oito preceitos no primeiro dia (com uma dieta vegetariana) e a abstenção completa de alimentos e água no segundo dia.

Propósitos e benefícios

Um dos objetivos principais é o desenvolvimento do autocontrole, a capacidade de governar os próprios desejos e impulsos. O jejum pode ajudar a reduzir o tanha (desejo/sede) e o apego. Através da abstenção voluntária de alimentos, os praticantes fortalecem a sua capacidade de resistência a diversas formas de desejo inábil, como a ganância e a luxúria. O praticante desenvolve assim a capacidade de renuncia e desapego dos prazeres sensoriais e, cultiva o contentamento.

Ao privar o corpo de alimentos, a energia que seria utilizada na digestão pode ser redirecionada para a prática meditativa e a contemplação. O jejum pode auxiliar no cultivo de atenção plena (sati), proporcionando maior clareza mental, reduzindo a sonolência, e facilitando estados de concentração mais profundos.

A prática do jejum também desenvolve viriya (energia/esforço) e khanti (paciência). A capacidade de persistir através da fome e do desconforto fortalece a determinação e a perseverança na jornada espiritual.

Algumas pesquisas têm mencionado diversos benefícios físicos do jejum intermitente, que restringe a ingestão de alimentos a uma janela de tempo específica, alinhando-se com a prática budista de jejum.

Dicas e cuidados a ter

Qualquer prática mais intensa deve sempre levar em conta a saúde física e mental individual. O jejum deve ser feito com sabedoria e não é recomendado para mulheres grávidas, doentes ou pessoas com distúrbios alimentares. Durante os períodos de jejum é importante manter uma hidratação adequada. Combinar o jejum com práticas meditativas pode intensificar os seus benefícios espirituais.

A pratica tradicional no budismo é comer uma ou duas refeições até ao meio-dia, e ficar o resto do dia sem ingerir qualquer alimento sólido. Mas a prática pode ser adaptada, se por exemplo o praticante não está a seguir um horário de retiro e almoça após o meio-dia, a última refeição pode ser feita no horário de almoço. Ou em vez de observar o uposatha precisamente no dia de lua cheia por exemplo, que pode calhar num dia trabalho, talvez possa ser melhor fazer essa prática no fim de semana. Há praticantes que por uns 3 ou mais dias também optam por fazer praticas ainda mais intensas de jejum. A forma como cada um vai fazer jejum vai depender da prática individual e da orientação do seu professor budista.

É fundamental manter o equilíbrio do Caminho do Meio, evitando os extremos da auto-mortificação e da indulgência.

Referências: Fasting in Buddhism (Wikipedia), A Buddhist Perspective on Fasting (Urban Dharma), Religious Significance of Fasting (Budsas), Jejum intermitente (Tua Saúde).

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