O karaté é comumente referido como o “Caminho das mãos vazias”, mas será que esse vazio representa apenas a ausência de armas? Ou poderá também remeter para o conceito do vazio ou vacuidade que faz parte do budismo? Qual a etimologia do “karaté-do”?
Karaté-do (空手道) é composto por 3 kanji: Kara (空), que significa “vazio”; Te (手), que significa “mão(s)”; e Dô (道), que significa “Caminho” ou “Via”.
O karaté-do faz parte do Budo (武道), que significa caminho marcial. Jigoro Kano, criador do judo, é considerado o percursor do Budo moderno. O Do passou a ser usado no Período Meiji em substituição do termo jutsu (術), associado apenas à técnica de luta. Após essa substituição, um sentido filosófico e espiritual mais amplo foi trazido para as artes marciais japonesas, que visaram preparar as pessoas para todos os aspetos da vida, e não apenas para combate ou autodefesa. Assim, a prática da arte marcial como caminho transcende a mera técnica, promovendo a edificação pacífica do cidadão e o seu desenvolvimento integral, levando em conta os aspetos internos ligados à mente e externos ligados ao corpo.
Outro ponto a se destacar é a separação do karaté-do das técnicas de armas, ou seja o kobudo, que se originou na mesma época que o Te ou Tôde, que era um dos nomes antigos para o karaté, com origem na ilha de Okinawa. Os agricultores para a autodefesa usavam ferramentas rurais, e em termos gerais as técnicas de corpo e armas estavam interligadas. Essa separação parece se dar quando o karaté é levada para o Japão, mas ainda hoje alguns estilos, como o Shito-ryu, mantêm essa união. Porem, como a maioria das escolas de karaté deixou as armas de lado, e como o termo “kara” significa vazio, geralmente o karaté-do é traduzido como o “Caminho das Mãos Vazias”. Há no entanto mais significados que podemos explorar.
A parte “te” é bastante direta, significando “mão”. No entanto, o componente “kara” possui dois significados com pronúncia idêntica, mas representados por caracteres distintos para: “vazio” e “chinês” (referindo-se especificamente à Dinastia T’ang).”
Fazendo uma contextualização bem reduzida, segundo a lenda, o mestre budista Bodhidharma quando chegou à China vindo da Índia, encontrou no mosteiro Shaolin os monges com alguma debilidade física. Ele ensinou então alguns exercícios aos monges, o que teria depois originado o Kung Fu. Lendas à parte, mais tarde vindos da ilha de Okinawa, no mosteiro Shaolin ou outras partes da China algumas pessoas terão aprendido artes marciais e levado para Okinawa, também em Okinawa monges que chegaram da China terão ensinado alguns movimentos de artes marciais. E assim a arte começou a se desenvolver em Okinawa, seguindo o seu próprio caminho e dando origem aos estilos Shuri-te, Tomari-te, e Naha-te, que por sua vez tiveram na origem dos estilos mais modernos como Shorin-ryu (um termo que remete para Shaolin, fundado por Choshin Chibana), Shotokan (fundado por Gichin Funakoshi), Shito-ryu (fundado por Kenwa Mabuni), Goju-ryu (fundado por Chojun Miyagi), Wado-ryu (fundado por Hironori Otsuka), entre várias outros.
Por isso, antes de Gichin Funakoshi introduzir o Karaté-do no Japão no início da década de 1920, o caractere “kara” (唐) significando chinês era comumente usado. Erroneamente muitas pessoas pensavam que o karaté era uma forma de box chinês, no entanto Funakoshi Sensei achava que essa não era a forma mais correta de descrever o karaté de Okinawa e propôs um nome mais adequado para esse sistema de autodefesa: “Dai Nippon Kempo karaté-do” (Grande Método de Punho Japonês Caminho das Mãos Vazias), fazendo uso do caractere para “vazio” em vez daquele para “chinês”. Essa mudança recebeu muitas críticas relacionadas à identidade cultural e até mesmo a questões sociopolíticas, tanto no Japão quanto em Okinawa, mas Funakoshi Sensei manteve a sua posição sobre esse assunto, e ainda hoje usamos esse significado de kara, pois todos os estilos o adotaram.
Funakoshi Sensei considerou que o significado de “kara” como “vazio” era o mais apropriado. Superficialmente, referia-se às mãos vazias de armas, mas Funakoshi também via nisso uma ligação ao conceito budista de vazio ou vacuidade. Sendo praticante do Zen-Budismo e frequentador do Templo Enkakuji, em Kamakura, esse significado tinha para ele ainda mais relevância.
No livro “Karatê-dô: O meu modo de vida”, Funakoshi diz o seguinte:
“Não é fácil dominar a língua japonesa, e também ela nem sempre é tão explícita quanto poderia ser: caracteres diferentes podem ter exatamente a mesma pronúncia, e um mesmo caractere pode ter pronúncias diferentes, dependendo do uso. A expressão karatê é um exemplo excelente. Te é bastante fácil; significa “mão(s)”. Mas há dois caracteres bem diferentes pronunciados kara; um significa “vazio”, e o outro é o caractere chinês que se refere à dinastia Tang e que pode ser traduzido por “chinês”.
[…] O kara que significa “vazio” é definitivamente o mais apropriado. Em primeiro lugar, ele simboliza o facto evidente de que essa arte de autodefesa não usa armas, somente pés desguarnecidos e mãos vazias. Além disso, os estudantes de karatê-dô têm como meta não só aperfeiçoarem a arte de sua escolha mas também esvaziarem o coração e a mente de todo desejo e vaidade terrenos. Lendo as escrituras budistas, encontramos afirmações como “Shiki-soku-zeku” e “Ku-soku-zeshiki”, que literalmente significam “matéria é vazio” e “tudo é vaidade”. O caractere ku, que aparece nas duas admoestações e que pode também ser pronunciado kara, é em si mesmo verdade.
[…] O objetivo do Karatê-dô é a perfeição da mente e do corpo, e por isso expressões que exaltem somente a perícia física nunca deveriam ser usadas em ligação com ele. Como um santo budista, Nichiren, disse tão apropriadamente, quem estuda os sutras deve lê-los não somente com os olhos que estão em sua cabeça mas também com os olhos da alma [do “coração”, do “interior”]. Esta é a admoestação perfeita que o treinando de Karatê-dô sempre deve lembrar.”
Ou seja, quando foi criado o nome karaté-do, foi pretendido que “kara” significasse não apenas “mãos vazias”, mas também carregasse uma conotação mais profunda e filosófica. Esse assunto é explorado em maior detalhe no livro “Karate-do Kyohan”, também do Funakoshi. Uma observação, “Shiki-soku-zeku Ku-soku-zeshiki” está mal traduzido ou foi em parte mal interpretado por Funakoshi, a parte final não significa “tudo é vaidade”. Essa expressão completa significa “a forma é o vazio, vazio é a forma“, e está presente no Sutra do Coração. A vacuidade (sunyata) no budismo remete para o vazio de um eu intrínseco, salientando a interdependência de todos os fenómenos, entre outros significados.
“Caminho das Mãos do Vazio“, representa melhor assim o elemento budista e a filosofia presente no seu nome. A tradução como “Mãos Vazias” ainda é uma tradução válida, desde que seja interpretada também na sua vertente filosófica e não literal. Portanto o karaté, como caminho, busca ir além das amarras do ego, busca remover da mente e coração, o egoísmo, o ódio, a vaidade e a maldade.
“Do mesmo modo que a superfície polimentada de um lago reflete tudo o que está em frente ao mesmo, e que em um vale tranqüilo se perceba o escuso som dos animais, o estudante do karaté deve devastar de seu espírito o egoísmo e a maldade, fazendo um esforço para raciocinar de um modo apropriado em qualquer eventualidade.“
– Funakoshi Sensei
Tiago Frosi escreveu o seguinte sobre o karaté e a prática do kata:
“No Karate nosso verdadeiro inimigo somos nós mesmos.
Você precisa enxergar o mal dentro de si, e um a um atacar e vencê-los (a esses adversários internos que são nossas próprias sombras). Ao treinar o Kata você não enxerga com seus olhos, enxerga com seu Coração. Você não golpeia com suas mãos, golpeia com seu coração. Seu Coração ataca! O Céu e a Terra estão em seu Coração.
O estado de êxtase atingido pelo treinamento verdadeiro do Kata nos deixa sem palavras. É impossível expressar através da fala esta experiência. Este lugar de êxtase é o seu esvaziamento. O Vazio é o mundo que deu origem à sua vida. Nesse mundo não há amigos nem inimigos. É por isso que o conceito de inimigos ou de não ter inimigos reside unicamente em nosso Coração.
As Mãos do Vazio (空手) são as mãos daquele que nesta Terra não tem inimigos. Esse é o verdadeiro Karate. Eu levei muitos anos de treinamento solitário para compreender isso, mas você pode fazê-lo agora mesmo, neste momento. Tome todo mal do mundo e o transforme em bondade. Por favor, não me vejam como um mestre, vamos treinar juntos para alcançar esta meta. Esse é o Caminho daquele que entende o esvaziamento, o verdadeiro objetivo do Karate-Dō (空手道).”
“O verdadeiro sentido das artes marciais consiste em aprender a reconhecer e superar o nosso verdadeiro inimigo; estar além do impulso de lutar contra os outros; transcender as distrações relacionadas ao ego; e harmonizar o homem com a natureza através da prática rigorosa dos princípios morais, do estudo filosófico e do longo processo de auto-aperfeiçoamento.“
– Kenwa Mabuni, fundador do Shito-ryu, um estilo de Karaté-do
Referências: Karetê-Dô: o meu modo de vida (Gichin Funakoshi); The meaning of the word “Karate” (WSKF); Mãos do vazio (Pinto Karate Dojo), Supreme Master Funakoshi Gichin (JKA).
Veja também:
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