Ambiente e Natureza

Libertação de animais no budismo

A libertação ou salvamento de animais, geralmente para abate, é um prática que ocorre frequentemente no mundo budista. Muitas escolas budistas encorajam os seus seguidores a não apenas evitarem ferir os seres, mas também a salvarem vidas ativamente. No budismo tibetanos é chamado de Tsetar, que se traduz como “libertação de vidas”.


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Origens, motivações e benefícios

Segundo uma lenda do budismo tibetano, no passado, viveu na Índia um rei não-budista chamando Trichen. Ele gostava de comer carne fresca, com o sangue ainda quente, tendo matado dez mil animais. Devido ao amadurecimento kármico das suas más ações, nasceu num dos reinos infernais. A extensão do seu sofrimento foi enorme, durante 100 vezes ele morreu e caiu novamente no inferno, revivendo constantemente grandes momentos de dor. O Ven. Ananda viu o sofrimento deste ser e perguntou ao Buda sobre isso. O Buda respondeu: “Este é o amadurecimento Kármico de um homem que gostava de comer carne tão fresca que o sangue ainda estava quente e que gostava de matar animais”. Ananda perguntou então ao Buda: “Será que existe alguma maneira de libertá-lo?” O Buda respondeu: “Se você deseja libertar este homem do inferno, salve as vidas dos animais nos reinos mundanos e ele será libertado”. Então Ananda salvou vidas para o benefício do homem, e de todos os seres, e ele ficou livre do inferno.

Lendas à parte, a compaixão por todos os seres sempre foi um elemento de suma importância no budismo. Todos os seres sencientes valorizam a sua própria vida e bem-estar, os animais não são excepção. Por isso, salvar vidas é comumente visto como uma forma ideal de obter mérito espiritual e, através de um pequeno ato de compaixão, tornar o mundo um pouco melhor. Acredita-se que além dos benefícios óbvios para os animais (caso libertados de forma correta), essa prática trará benefícios para o próprio praticante e para aqueles a quem as práticas são dedicadas. Em cerimónias de libertação de animais do budismo tibetano, geralmente são entoadas preces para que as criaturas possam ficar livres de renascimento em reinos inferiores. Muitas vezes os méritos também são dedicados a outras pessoas. Diz-se que dedicar o mérito de ações virtuosas é como adicionar gotas de água a um vasto oceano – ela nunca seca, assim com o mérito.

No processo de libertação de animais a motivação deve ser o mais pura possível. Temos que nos colocar na posição desses animais – sentir os seus medos, entender as suas dores e sofrimentos. A motivação deve ser fruto dessa compreensão se querermos genuinamente aliviar o sofrimento desses seres. Há pouco mérito em motivações egoístas. No Budismo, é preciso lembrar, não é como os atos aparentam ser aos olhos comuns, mas a intenção subjacente por detrás dos atos. Uma ação aparentemente positiva feita com motivação maliciosa ou egoísta não trará muitos benefícios para quem a pratica. Por outro lado, um ato percebido como não-virtuoso poderia ser concluído como algo benéfico se a intenção por trás do ato for correta e nobre – beneficiar os seres sencientes!

No entanto, como acontece com muitas boas intenções, quando não praticadas com atenção e habilidade, podem resultar em mais danos do que benefícios.

Problemas que essa prática pode causar

Tradicionalmente a prática envolve em libertar animais que seriam mortos ou explorados, como peixes vendidos em mercados, aves, e animais de quinta em matadouros. No entanto, no meio da crescente popularidade da libertação de vidas nas comunidades budistas em todo o mundo, tornou-se cada vez mais reconhecido que existem muitas consequências imprevistas e potencialmente negativas, tanto para os animais que são libertados como para os ambientes em que entram.

À medida que a prática foi ganhando popularidade e aceitação social, a libertação de vidas evoluiu de um evento ocasional para uma atividade frequente em muitos templos e comunidades budistas de todo o mundo, não apenas para obtenção de mérito, mas também como forma de angariar fundos. Em muitos casos, o que antes era um ato espontâneo de compaixão agora envolve cerimónias formais altamente coreografadas com centenas ou milhares de animais.

Para libertar uma animal na natureza de maneira correta, é preciso muita pesquisa e planeamento. É preciso responsabilidade! Caso contrário, algo que aparentemente é inócuo, pode colocar em causa a própria vida do ser libertado e os ecossistemas.

Condições de sobrevivência

Em alguns países, é uma prática popular para alguns budistas o salvamento de criaturas marinhas vendidas vivas no mercado, como várias espécies de peixes, moluscos, mexilhões, crustáceos, caranguejos, etc. Os animais marinhos são frequentemente vendidos a centenas, senão a milhares de quilómetros das suas casas naturais e, se forem colocados num local inadequado, morrerão ou serão mortos. Cada criatura vem de um habitat específico e tem requisitos diferentes para sobreviver. Infelizmente, isso geralmente não é levado em consideração durante as liberações em massa por budistas. Muitas das criaturas também são jogadas na água sem grande preocupação, como por exemplo atiradas de uma altura em que o impacto da água pode causa ferimentos.

Também em relação às aves é preciso ter um cuidado extremo. Os mercados de aves na Ásia são locais de sofrimento terrível, por isso muitas vezes os budistas compram algumas dessas aves e as libertam em montanhas onde se situa algum templo. Mas esse pode estar longe de ser um habitat adequando, frequentemente essas aves têm que ser resgatadas. Pássaros em gaiolas que são comprados e soltados na natureza acabam por ser mortos por outras aves ou por não conseguirem sobreviverem nas condições do habitat em que foram soltos. Além de tudo isso ser cruel, e de puder ser ilegal, ajuda a perpetuar um mercado impiedoso.

Em alguns centros de Dharma, as pessoas resgatam animais, como cabras, mas fazem muito pouco para cuidar deles. Cuidar de um animal não é algo fácil, principalmente animais de fazenda. Muita gente pensa, por exemplo, que tudo o que uma cabra precisa é de um pouco de relva e pronto. Infelizmente, esse não é o caso. Os animais de fazenda exigem muito trabalho e também dinheiro para que se possa cuidar deles adequadamente. Cada espécie, seja cabra, ovelha, vaca ou porco, tem diferentes necessidades nutricionais, hábitos de alimentação, necessidades de abrigo e assim por diante. Os santuários têm espaço e recursos limitados para se cuidar dos animais resgatados, mas muitas vezes as pessoas pensam que, comprando um animal ou salvando-o da negligência, e deixá-los num santuário para animais o trabalho está feito. Raramente pensam duas vezes no cuidado de longo prazo desse animal ou fornecem qualquer contribuição ao abrigo ou santuário onde deixam o animal.

Impacto ecológico

Em muitas partes do mundo, libertar animais na natureza é ilegal sem a devida permissão das autoridades. Há uma boa razão para isso. Além das razões acima relativas ao habitat errado e à possível morte lenta, há também o impacto no ecossistema recetor.

As criaturas libertadas que conseguem sobreviver podem representar uma ameaça paras as espécies locais e perturbarem o ecossistema. Existem inúmeros exemplos de introduções de diversas espécies com efeitos devastadores no meio ambiente. O animal libertado poderá originar o deslocamento de espécies locais. Também é muito provável que introduzam doenças, principalmente os resgatados de mercados. Se o animal sobreviver, poderá cruzar com espécies indígenas e afetar negativamente o património genético.

Infelizmente, soltar um animal na natureza nem sempre é possível. Para espécies domesticas isso simplesmente pode não ser possível, para espécies selvagens é preciso levar em consideração vários aspetos.

Negócios oportunistas

Com o popularização da prática de libertação de vidas, torna-se cada vez mais comum a atividade de capturar ou criar animais explicitamente para efeitos de libertação – geralmente em troca de dinheiro – resultando num ciclo de sofrimento autoperpetuador e autodestrutivo para os animais que são “libertados”. Devemos por isso ter a capacidade discriminativa, para que atos genuínos de bondade amorosa não promovam o aumento de negócios comerciais nefastos, e em alguns casos ilegais.

Em muitos países existem leis contra a libertação de animais na natureza sem um aval, existem também leis contra a retirada de animais selvagens da natureza. Ao realizarmos as nossas crenças espirituais, será que desejamos apoiar um modo de vida que envolva sofrimento e atividades ilegais?

Libertando com sabedoria

O mestre Hsing Yun, fundador da Ordem Budista Fo Guang Shan, em resposta a uma reportagem do New Zealand Herald, que alerta para os perigos desta pratica, afirmou que: “A compaixão e a tolerância por si só não são suficientes. Elas precisam ser complementados pela sabedoria. Neste mundo, o significado da compaixão é muitas vezes distorcido, levando à indulgência excessiva e ao fechar os olhos para o que está errado. Quando aplicada de forma inadequada, a compaixão pode tornar-se fonte de crimes e transgressões. Por exemplo, a prática comum de libertar animais vivos pode causar danos a mais animais. A doação inadequada e generosa de dinheiro pode apenas alimentar a ganância e a corrupção. Portanto, a verdadeira compaixão e tolerância deve ser complementada pela sabedoria prajna para se evitar seguir o caminho errado, onde as intenções iniciais se tornam fúteis.”

Claramente, a libertação animal como uma prática budista compassiva não é tão simples como pode parecer à primeira vista. Este texto não serve para desencorajar as pessoas de o fazerem, mas sim fazer-nos pensar antes de avançarmos. É preciso fazer com responsabilidade! Só após consideramos cuidadosamente todos os danos potenciais e pudermos concluir que não existem riscos de um dano maior, que estamos realmente a causar benefício e a aliviar o sofrimento, é que a libertação poderá ser justificada, o que é diferente de libertar um grande número de criaturas vivas indiscriminadamente em qualquer lugar. É importante para aqueles que desejam envolverem-se na libertação de vidas, encontrarem uma organização habilitada e com os devidos conhecimentos para essa realização, evitando assim inúmeros problemas.

Mas talvez libertar milhares de criaturas possa não funcionar para nós, porém, adotar um gato ou cão no corredor da morte de um canil poderá ser uma opção válida, caso tenhamos condições e disponibilidade para isso. Ao fornecermos um lar amoroso para o animal ou animais resgatados, ampliamos a nossa compaixão e ajudamos esses animais, criamos uma conexão que, quem sabe, garantirá que estaremos nos ajudando uns aos outros em vidas futuras. Lama Zopa Rinpoche, no livro “Liberating Animals, p.5”, diz que: “É melhor libertar um animal que você mesmo possa cuidar. Ao alimentá-los todos os dias, você realiza a prática do Dharma de fazer caridade e cria muito bom karma, a causa da felicidade. Você não apenas traz felicidade ao animal, mas também cria continuamente a causa da sua própria felicidade futura.”

Além disso, outras alternativas podem ser consideradas, como por exemplo ajudar um santuário de animais (financeiramente e/ou com trabalho voluntário), ajudar um centro de resgate de animais, não contribuir para o mercado de animais, consciencializar sobre os efeitos dramáticos de manter cães acorrentados (que infelizmente ainda acontece), etc.

Por falar em cães acorrentados. Os cães são animais de matilha, são animais sociais que precisam de estar integrados numa família com a qual possam interagir. Privar um cão de interação social e exercício físico é algo extremamente cruel que contraria a sua natureza. Acorrentar um animal tem um efeito muito negativo no seu temperamento, comportamento e saúde. As leis do bem-estar animal têm-se tornado mais rígidas nos países europeus, e particularmente em Portugal manter um cão acorrentado pode ser considerado maus tratos e constituir crime. Manter qualquer tipo de animal preso e confinado causa sofrimento. Ter um pássaro preso numa gaiola privando-o assim da sua própria natureza que é voar é imensamente desumano, possuir animais exóticos confinados é angustiante para esse ser, peixes em aquários exíguos é uma forma de tortura, aliás, peixes em aquários redondos em alguns países da Europa já são proibido. Felizmente algumas coisas têm vindo a mudar paulatinamente, também na UE quer-se acabar com testes em animais, e animais em circos deverá ser uma questão de tempo até serem totalmente abolidos. Mas ainda precisamos de uma maior consciência. Por exemplo, você sabia que um simples guizo na coleira de um gato não é inócuo? Pois é, os gatos são animais furtivos e com uma audição extremante sensível, um guizo causa enorme stress e é bastante perturbador para a saúde psicológica de um gato.

Quando se trata de libertação animal, combinar um pouco de sabedoria com a nossa compaixão promoverá resultados muito melhores e menos sofrimento para nós e para os nossos amigos animais. Temos que ter em mente que os animais, como criaturas frágeis que partilham o nosso planeta e sofrem fisicamente, mentalmente e emocionalmente, devem ser tratados e cuidados com delicadeza e atenção.

Referências: Samyeinstitute, Fpmt, Buddhistdoor.

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