História e Arqueologia

Vestígios Budistas no Afeganistão: do passado glorioso ao presente trágico

Noutrora o budismo floresceu gloriosamente no Afeganistão, mas tudo é impermanente, e hoje o que restam são ruínas, uma grande parte sem qualquer preservação e quase totalmente destruídas, ainda assim, vestígios da glória passada podem ser encontrados.

Com conflitos incessantes, pronunciar o nome “Afeganistão” pode trazer associações dolorosas, mas também serve como um lembrete de uma longa história, uma rica cultura e uma terra de diversidade religiosa.

O budismo foi uma das principais forças religiosas no Afeganistão durante a era pré-islâmica, tendo chegado à região afegã em 305 a.C., quando o Império Selêucida grego fez uma aliança com o Império Maurya indiano. O Greco-Budismo resultante floresceu sob o Reino Greco-Bactriano (250 a.C – 125 a.C.) e sob o posterior Reino Indo-Grego (180 a.C. – 10 d.C.) no norte do Paquistão e Afeganistão. O Greco-Budismo atingiu o seu apogeu sob o Império Kushan, que usou o alfabeto grego para a sua língua bactriana. Outras religiões como o Hinduísmo e Jainismo também estavam presentes no Afeganistão, embora com menos expressão.

O budismo na região começou a desaparecer após as conquistas muçulmanas no século 7 e se dissipou no século 11 durante a dinastia Ghaznavid do Persianato (977-1186). Embora grande parte da história budista do Afeganistão tenha sido perdida para sempre, numerosos vestígios ainda existem hoje. Vamos agora conhecer alguns deles.

Mosteiro Nava Vihara

Xuanzang, foi um monge budista chinês, viajante e tradutor. A pardir do ano 630, ele viajou por muitos locais budistas no Sul da Ásia, entre os quais o Afeganistão. Xuanzang descreveu essa região nos seus registos como cheia de mosteiros budistas, stupas e santuários. Ele viu milhares de monges Mahayana e não-Mahayana, assim como centenas de mosteiros Mahayana e não-Mahayana. O mais famoso entre eles era o Nava Vihara, que significa novo mosteiro, era o maior mosteiro da época, onde milhares de monges estudavam e divulgavam o budismo, incluindo Prajnakara, o monge com que Xuanzang estudo as primeiras escrituras budistas (agamas). Xuanzang referiu que o Nava Vihara era o mosteiro mais Ocidental no mundo.

O autor árabe, Umar ibn al-Azraq al-Kermani, escreveu no início do século 8 um relato detalhado do Nava Vihara, o relato foi posteriormente preservado numa obra do século 10, o Kitab al-Buldan de Ibn al-Faqih. Ele descreveu o Nava Vihara em termos surpreendentemente semelhantes aos do Kaaba em Meca, o local mais sagrado do Islã. Ele descreveu que o templo principal tinha um cubo de pedra no centro, coberto com um pano, e que os devotos o circundavam e faziam prostração, como é o caso do Kaaba. O cubo de pedra referia-se à plataforma sobre a qual ficava uma stupa, como era o costume nos templos bactrianos. O pano que o envolvia estava de acordo com o costume persa de mostrar veneração, que se aplicava tanto às estátuas de Buda quanto às stupas.

O mosteiro serviu como centro de aprendizagem budista durante séculos e recebia alunos de vários países. Após a conquista islâmica do Afeganistão, o Nava Vihara foi convertido num local muçulmano.

Mes Aynak

Mes Aynak significa “pequena fonte de cobre” e é também chamada de Mis Ainak ou Mis-e-Ainak. Situa-se numa região árida da província de Logar que fica a cerca de 40 km a sudeste de Cabul.

Mes Aynak contém o maior depósito de cobre do Afeganistão, bem como os restos de um antigo assentamento com mais de 400 estátuas de Buda, stupas, um vasto complexo de mosteiros de 40 hectares, casas e áreas de mercado. O local contém também artefactos da Idade do Bronze, sendo que alguns datam de mais de 3.000 anos.

Ao situar-se na Rota da Seda, Mes Aynak produziu uma mistura de elementos da China e da Índia. A riqueza dos residentes de Mes Aynak ficou bem patente no tamanho de longo alcance e perímetro bem guardado do local. Mas a ânsia do Afeganistão em desenterrar o cobre abaixo do local tem contribuído para a sua destruição.

A Embaixada dos Estados Unidos em Cabul forneceu um milhão de dólares de financiamento militar para ajudar a salvar as ruínas budistas. Em Junho de 2013, havia uma equipa internacional de 67 arqueólogos no local, incluindo franceses, ingleses, afegãos e tadjiques, além de centenas de trabalhadores locais. Todos protegidos por 200 guardas armados.

Radar de penetração de solo, fotografia georretificada e imagens aéreas 3D para produzir um mapa digital abrangente das ruínas, foram algumas das tecnologias utilizadas nos trabalhos arqueológicos, que se tornaram nos mais significativos do mundo.

Apesar das dificuldades, o trabalho de resgate continuou em Junho de 2014. A equipa bem mais pequena contava apenas com 10 especialistas internacionais trabalhando no local e menos de 20 arqueólogos afegãos. 7 arqueólogos tajiques também estavam ajudando. Marek Lemiesz, um arqueólogo sénior, disse que mais ajuda era necessária e que a segurança era uma preocupação.

O documentário Saving Mes Aynak conta a história do sítio arqueológico, bem como o ambiente perigoso do local.

Stupa de Topdara

É a maior stupa em pé no Afeganistão e está localizada a norte de Cabul. O explorador britânico Charles Masson visitou o monumento em 1833 tendo afirmado ser “talvez o monumento deste tipo mais completo e bonito nestes países.”

Desde a visita de Masson, a stupa recebeu poucos visitantes e caiu no esquecimento até 2016, quando a ONG Afghan Cultural Heritage Consulting Organization (ACHCO) começou o seu trabalho de preservação e escavação. Em 2019 a sua beleza e grandiosidade ficou amplamente restaurada.

2020 | Créditos: fotos gentilmente cedidas pela Afghan Cultural Heritage Consulting Organization (ACHCO)

Stupa de Shewaki

Este local fica a 11 km do sudeste de Cabul e servia como paragem para peregrinos que se dirigiam até Bamiyan. Além da stupa principal, 8 pequenas stupas budistas, bem como fortificações e 176 outros artefactos foram encontrados em Shewaki.

Há cerca de 2 anos e no meio da guerra, a ACHCO iniciou um processo de restauração, sendo que até agora completaram por volta de 50% da sua escavação. “Quando começámos a nossa escavação, esta stupa estava quebrada em vários lados, tinha grandes danos ao redor, a parte superior da stupa estava seriamente danificada e a parte inferior era subterrânea”, disse Wahid Rahimi, um dos arqueólogos.

A 10 de Agosto, a agência de notícias russa RIA Novosti, publicou uma fotográfica intitulada “Apesar do perigo: uma stupa budista está sendo restaurada perto de Cabul”. Lyudmila Klasanova do Buddhistdoor disse que “A stupa sagrada de Shewaki, datada do século 1 a 3, é um grande símbolo de esperança e luz nesta época sombria de conflito violento. A restauração de um objeto sagrado durante a guerra foi um momento extraordinário na história, levando-nos a refletir sobre o significado do patrimônio cultural como fonte de vida insubstituível. O patrimônio cultural é o nosso legado – aquilo com que vivemos hoje e o que passamos para as gerações futuras.”

Maio de 2021 | Créditos: foto gentilmente cedida pela Afghan Cultural Heritage Consulting Organization (ACHCO)

Stupa de Ahin Posh

Ahin Posh, Ahan Posh ou Ahan Posh Tape significa “local coberto de ferro”. Trata-se de uma stupa e complexo de mosteiros nas proximidades de Jalalabad.

A stupa foi escavada pela primeira vez em Fevereiro de 1879 por William Simpson. Ele limpou a base e cavou um túnel até ao centro. Na escavação foram encontrados os restos de uma estátua colossal de Buda em argila coberta com estuque na entrada do portal principal, com os pés medindo 58 centímetros de comprimento. A stupa foi decorada com capitéis indo-coríntios, indo-persas e capitéis da ordem jónica típica do período romano.

Um compartimento de depósito para relíquias foi encontrado no centro da stupa. O depósito incluía um amuleto de ouro com detalhes em mineral de granete, várias moedas do Império Kushan e até algumas do Império Romano. Este depósito agora faz parte das coleções do Museu Britânico.

De acordo com os arqueólogos, as antigas relíquias da era budista que foram encontradas em Cabul, Jalalabad e Laghman, mostram que essas áreas já fizeram parte da civilização Gandhara.

Esquema de reconstituição da stupa, por William Simpson em1878 | Domínio Público

Stupa de Takht-e Rostam

Situa-se a 2 km a sul da cidade de Haibak e fazia parte do Reino Kushano-Sasanian. A stupa no topo de uma colina foi escavada no solo rochoso, o que a torna única. É encimada por uma harmika e possui várias cavernas em torno da base. É dito que a harmika já abrigou relíquias do Buda. Um tesouro de moedas Ghaznavid foi encontrado por acaso numa das cavernas. A trincheira que circunda a stupa tem cerca de 8 metros de profundidade e dentro das paredes externas foi esculpido um mosteiro com 5 cavernas individuais e várias celas monásticas para meditação. Próximo do local da stupa outras cavernas podem ser encontradas.

Após as conquistas muçulmanas do Afeganistão, o propósito original do mosteiro foi perdido e o complexo foi incorporado à mitologia persa. Na história mais recente as cavernas foram queimadas pelos talibãs, mas em 2021 o governo afegão renovou o local e construiu um salão de apoio aos turistas.

Budas de Bamiyan

Os Buda de Bamiyan foram o maior exemplo da herança budista no Afeganistão. O local é listado pela UNESCO como Património Mundial.

As estátuas monumentais do século 6 foram esculpidas na lateral de um penhasco no vale de Bamyan, situado no centro do Afeganistão. O Buda menor (oriental) tinha 38 metros de altura e o Buda maior (ocidental) 55 metros. Os Budas eram cercados por inúmeras cavernas e superfícies decoradas com pinturas. Estas obras de arte são consideradas uma síntese artística da arte budista e da arte Gupta da Índia, com influências do Império Sassânida e do Império Bizantino, bem como do Tokaristão (nome antigo da Idade Média dado à área que era conhecida como Bactria em fontes gregas antigas; hoje o Tokaristão está fragmentado entre o Uzbequistão, o Tajiquistão e o Afeganistão, mas foi reconhecido como uma unidade única pelo Império Chinês nos séculos 7 e 8 d.C.).

As estátuas de Bamiyan foram explodidas e destruídas em Março de 2001 pelos talibãs. Foi uma grande perda arqueológica e cultural para o Afeganistão e para o mundo budista. Mas apesar da lamentável destruição, são apenas pedras. Não houve qualquer represália budista por causa da explosão dos Budas. Um reporter perguntou ao Dalai Lama o que ele pensava sobre a destruição dos Budas de Bamiyan pelos fanáticos talibãs, estátuas de 1500 anos e Património Mundial, ele respondeu rindo: “eram pedras, não eram?”

Neste post tem accesso a um documentário em inglês sobre as estátuas.

Estátua | Buda de Bamiyan | Afeganistão
O Maior Buda de Bamiyan, em 1963 e 2008 após a destruição | Créditos: Wikipédia – CC BY-SA 3.0

A recuperação do local tem sido estudada. Em 2015 a UNESCO revelou uma proposta para a construção de um Centro Cultura em Bamiyan, no entanto até agora o projeto não foi consumado. E em 2017 o departamento de arquitetura da Mukogawa Women’s University, no Japão, apresentou um projeto para ser edificado em colaboração com a UNESCO e outras identidades, próximo dos Buda originais e que inclui a reconstrução da estátua do Buda oriental e a construção de um museu, o que até agora também não foi materializado.

Imagens digitais do projeto do Centro Cultura em Bamiyan | Créditos: UNESCO

Imagens digitais do projeto de Reconstrução do Buda oriental | Créditos: Mukogawa University

Estes foram alguns dos exemplos mais significativos do património budista no Afeganistão, mas outros monumentos também podiam ter sido descritos tais como o Complexo de cavernas Humai Qal’a, o Mosteiro Tapar Sardar, a Stupa de Guldara, e outros mais.

Em Fevereiro deste ano os talibãs disseram que “Como o Afeganistão é um país repleto de artefactos antigos e antiguidades, e que tais relíquias fazem parte da história, identidade e rica cultura do nosso país, todos têm a obrigação de proteger, monitorar e preservar vigorosamente esses artefactos.” Apesar dessa alegação muitos especialistas em património cultural afegão continuam céticos e temerosos.

A região do Afeganistão já foi palco de uma época gloriosa, mas as últimas décadas foram sofríveis para o povo desse país. Em 1996, a maior parte do Afeganistão foi tomado por fundamentalistas islâmicos do grupo Talibã, que estabeleceram um regime totalitarista radical. Em resposta aos atentados de 11 de Setembro de 2001, os Estados Unidos invadiram o Afeganistão e derrubaram o regime, o que levou a melhores condições para o povo afegão e a menos repressão. Uma coligação da NATO juntou-se à ocupação dos EUA e um novo governo afegão assumiu em 2004, porém os talibãs continuaram a manter o controle e influência sob boa parte do país, especialmente nas zonas rurais e montanhosas. A guerra civil no país continuou entre o novo governo afegão e os insurgentes talibãs, o que resultou em milhares de mortos, atrocidades, atentados terroristas, torturas, sequestros e assassinatos. Como a nova República Afegã dependia imensamente da ajuda económica e militar dos americanos, quando os Estados Unidos e as forças da NATO começaram a retirada em 2021, o exército afegão entrou em colapso e o governo central começou a ruir. Em Maio de 2021, o ano em que se completa 20 anos de guerra no Afeganistão, os talibãs iniciaram uma grande ofensiva generalizada e em poucos meses conseguiram dominar a maioria dos distritos do país. Neste mês de Agosto entraram na capital Cabul, completando assim o colapso da República Afegã.

Referências: Buddhistdoor; Wiki: Buddhism in Afghanistan; Wiki: Xuanzang; Wiki: Nava Vihara; Wiki: Mes Aynak; Afghanistan Analysts: topdara; Tolonews; Wiki: Ahin Posh; Wiki: Takht-e Rostam; Wiki: Buddhas of Bamiyan; Archdaily; Mukogawa.

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