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Aceitando a si mesmo (a)

“Nós não somos nem maravilhosos, nem terríveis. Todos somos seres humanos com todo o potencial e todas as obstruções. Se alguém puder amar este ser humano, que é este “eu” com todas as suas faculdades e tendências, então poderá amar aos outros de forma realista, benéfica e auxiliadora.” Ayya Khema

Trecho do livro “Todos Nós: Assediados pelo Nascimento, Envelhecimento e Morte” de Ayya Khema. [pdf]

É um fenómeno estranho a dificuldade que as pessoas têm de amar a si mesmas. Alguém pensaria que é a coisa mais fácil do mundo porque estamos constantemente preocupados connosco. Estamos sempre interessados em quanto podemos ganhar, quão bem poderemos desempenhar algo, quão confortável algo pode ser. O Buda mencionou num discurso que “Uma pessoa não encontra em nenhum lugar alguém mais querido do que ela mesma ” (Mallika Sutta). Então, com base nisso, por que na verdade é tão difícil amar a si mesmo?

Amar a si mesmo com certeza não significa se entregar ao desejo. Amar de verdade é uma atitude em relação a si próprio que a maioria das pessoas não possui, porque elas conhecem uma quantidade razoável de coisas sobre si mesmas que não são atraentes. Todas as pessoas têm inúmeras atitudes, reações, gostos e desgostos sem os quais elas estariam em melhor situação. Uma opinião é formada a respeito das atitudes de alguém e enquanto as positivas são apreciadas, as outras causam antipatia. Com base nisso, surge a supressão daqueles aspectos de si mesmo com os quais não existe satisfação. A pessoa não quer saber deles e também não os reconhece. Essa é uma das formas de lidar consigo mesmo, que é prejudicial ao crescimento.

Um outro jeito inábil é desgostar daquela parte de si mesmo que se mostra negativa e cada vez que ela surge a pessoa critica a si mesma, o que faz com que a situação fique ainda pior do que antes. Com isso, surge o medo e com freqüência a agressão. Se alguém quiser lidar consigo mesmo de uma forma equilibrada, não traz nenhum benefício fazer de conta que a parte desagradável não existe, aquelas tendências agressivas, irritantes, sensuais e presunçosas, fazendo de conta que está distante da realidade, colocando uma fenda dentro de si. Muito embora uma pessoa assim possa estar mentalmente sã, a impressão que ela transmite é de não ser totalmente verdadeira. Todos nós já topamos com pessoas assim, que são demasiado doces para serem verdadeiras, como resultado da fantasia e da supressão.

Criticar a si mesmo também não funciona. Em ambos os exemplos a pessoa transfere as suas próprias reações para outras pessoas. A pessoa critica os outros por suas deficiências, reais ou imaginárias, ou a pessoa não os vê como seres humanos comuns. Todos vivemos num mundo irreal, devido à delusão do ego, mas este caso é particularmente irreal, porque tudo é considerado ou como perfeitamente maravilhoso, ou como absolutamente terrível.

A única coisa real é que temos dentro de nós seis raízes. Três raízes benéficas, (hábeis), e três raízes prejudiciais, (inábeis). As últimas três são a cobiça, a raiva e a delusão, mas nós também possuímos os seus opostos: generosidade, amor bondade e sabedoria. Desenvolva o interesse por este assunto. Se você fizer uma investigação a respeito disto e não ficar ansioso, então poderá com facilidade aceitar as seis raízes em todas as pessoas, sem nenhuma dificuldade, desde que você tenha visto essas raízes em si mesmo. São raízes subjacentes ao comportamento de todos. Só então poderemos olhar para nós mesmos de uma forma um pouco mais realista, isto é, sem nos criticarmos devido às raízes inábeis, nem nos elogiarmos devido às raízes hábeis, ao invés disso, aceitar a existência delas dentro de nós. Poderemos também aceitar os outros com uma visão mais clara e ter uma maior facilidade nos nossos relacionamentos.

Não sofreremos devido aos desapontamentos e não faremos críticas, porque não viveremos num mundo onde só exista o branco ou o negro, ou as três raízes daquilo que é inábil, ou os seus opostos. Tal mundo não existe em lugar nenhum e a única pessoa que é assim é um arahant . Para as demais pessoas é em grande parte uma questão de grau. Os graus de benéfico e prejudicial são ajustados com tamanha precisão, existindo muito pouca diferença de graduação em cada um de nós, de forma que isso acaba por não ter importância. Todos possuem a mesma tarefa, cultivar as tendências hábeis e extirpar as tendências inábeis.

Aparentemente somos todos muito distintos. Isso também é uma ilusão. Todos enfrentamos os mesmos problemas e também possuímos as mesmas faculdades para lidar com eles. A única diferença é o tempo de treinamento que tenhamos tido. Um treinamento que tenha ocorrido ao longo de muitas vidas terá resultado em um pouco mais de lucidez, isso é tudo.

A lucidez do pensamento provém da purificação das próprias emoções, que é uma tarefa difícil que precisa ser feita. Mas ela só será realizada com êxito quando não for uma comoção emocional, mas um trabalho claro e honesto que a pessoa realiza consigo mesma . Quando for considerado como nada mais do que isso, o tormento será eliminado. A imputação “Eu sou tão maravilhoso” ou “Eu sou terrível” será neutralizada. Nós não somos nem maravilhosos, nem terríveis. Todos somos seres humanos com todo o potencial e todas as obstruções. Se alguém puder amar este ser humano, que é este “eu” com todas as suas faculdades e tendências, então poderá amar aos outros de forma realista, benéfica e auxiliadora. Mas se alguém fizer uma pausa no meio e amar aquela parte que seja agradável e tiver antipatia por aquela parte que não é muito agradável, ele nunca irá se confrontar honestamente com a realidade. Algum dia ele terá que vê-la, tal como ela é. Essa é uma “área de trabalho,” uma kammatthana . É um assunto simples e interessante que diz respeito ao coração de cada um.

Se olharmos para nós mesmos dessa maneira, aprenderemos a nos amar de uma forma benéfica. “Tal qual uma mãe, colocando em risco a própria vida, ama e protege o seu filho, o seu único filho…” (Karaniya Metta Sutta). Torne-se a sua própria mãe! Se quisermos ter um relacionamento conosco que seja realista e que conduza ao crescimento, então precisamos nos tornar nossa própria mãe. Uma mãe sensata sabe distinguir entre aquilo que é benéfico para o seu filho e aquilo que é prejudicial. Mas ela não deixa de amar o seu filho quando ele se comporta de modo prejudicial. Esse pode ser o aspecto mais importante a ser observado em nós mesmos. Todos nós, em uma ocasião ou outra, nos comportamos de modo prejudicial com o pensamento , ou com a linguagem, ou com a ação. Mais freqüentemente com o pensamento, com freqüência razoável com a linguagem e não tão freqüentemente com a ação. Então o que fazer com relação a isso? O que uma mãe faria? Ela diria ao seu filho para não fazer mais aquilo, continuaria amando a criança tanto quanto sempre amou e daria seguimento à tarefa de criar o seu filho. Talvez possamos começar a criar a nós mesmos.

A totalidade deste treinamento é uma questão de amadurecimento. Amadurecer é sabedoria, que infelizmente não está ligada à idade. Se estivesse, seria muito fácil. A pessoa teria uma certeza. Como não existe isso, a tarefa é árdua, um trabalho a ser feito. Primeiro vem o reconhecimento, depois aprender a não condenar, mas compreender: “Assim é como são as coisas.” O terceiro passo é a mudança. O reconhecimento pode ser a parte mais difícil para a maioria das pessoas, não é fácil ver aquilo que ocorre no nosso interior. Essa é a parte mais importante e o aspecto mais interessante da contemplação.

Levamos uma vida contemplativa, mas isso não significa sentarmos em meditação durante o dia todo. Uma vida contemplativa significa que a pessoa considera cada aspecto daquilo que ocorre como parte do aprendizado. A pessoa permanece introspectiva em todas as circunstâncias. Quando a pessoa se torna extrovertida, com aquilo que o Buda chamava de “exuberância da juventude,” a pessoa se dirige ao mundo com os próprios pensamentos, linguagem e ação. A pessoa precisa se controlar e regressar para o seu íntimo. Uma vida contemplativa em algumas ordens religiosas é uma vida de orações. No nosso caminho é uma combinação de meditação e estilo de vida. A vida contemplativa prossegue no nosso íntimo. A pessoa pode realizar a mesma tarefa com ou sem a recordação disso. A contemplação é o aspecto mais importante da introspecção. Não é necessário ficar sentado durante o dia todo observando a própria respiração. Cada movimento, cada pensamento, cada palavra pode fazer surgir a compreensão de si mesmo.

Este tipo de trabalho consigo mesmo irá resultar numa profunda segurança interna, que estará enraizada na realidade. A maioria das pessoas deseja e anseia por esse tipo de segurança, mas não é nem mesmo capaz de expressar o seu desejo. Vivendo num mito, desejando ou temendo constantemente, é o oposto de ter força interior. A sensação de segurança surge quando a pessoa vê a realidade dentro de si mesma, e por causa disso, a realidade em todos os demais, passando a aceitá-la.

Aceitemos o fato de que o Buda conhecia a verdade ao afirmar que todos possuímos sete tendências latentes ou obsessões: desejo sensual, má vontade, idéias especulativas, dúvida, presunção, desejo por ser/existir, ignorância. Encontre-as em você mesmo. Sorria para elas, não desate a chorar por causa delas. Sorria e diga: “Bem, aí estão. Vou tomar uma atitude em relação a vocês.”

A vida contemplativa é vivida com freqüência de forma opressiva. Uma certa falta de alegria pode ser compensada pela extroversão. Mas isso não funciona. A pessoa deveria cultivar um certo contentamento, mas manter-se introspectivo. Não há nada com o que se preocupar ou temer, nada que seja tão difícil. Dhamma significa a lei da natureza e essa lei está presente em nós todo o tempo. De que devemos escapar? Não podemos fugir da lei da natureza. Onde quer que estejamos, somos o Dhamma, somos impermanentes, (anicca), insatisfeitos, (dukkha), sem uma essência, (anatta). Não importa se estamos sentados aqui ou na lua. É sempre a mesma coisa. Então precisamos ter uma abordagem serena em relação às nossas próprias dificuldades e às dos demais, mas sem exuberância e efusão. Preferivelmente, uma constante introspecção que contenha um tanto de contentamento . Isso é o mais eficaz. Se alguém tiver senso de humor em relação a si mesmo, será mais fácil amar a si mesmo de forma apropriada. Também será muito mais fácil amar a todos os demais.

Havia um programa na televisão americana chamado “As Pessoas são Engraçadas.” Nós realmente temos as mais estranhas reações que ao serem observadas e analisadas muitas vezes parecem absurdas. Nós temos desejos e anseios bem estranhos e imagens irreais de nós mesmos. É bem verdade que “as pessoas são engraçadas,” então por que não ver esse lado em nós mesmos? Isso facilita aceitar aquilo que nos parece ser tão inaceitável em nós mesmos e nos outros.

Existe um aspecto da existência humana que não podemos mudar, isto é, que continua ocorrendo a cada momento. Nós já estamos meditando aqui faz algum tempo. O mundo se preocupa com isso? Ele continua o seu caminho. O único que se importa, que fica perturbado, é o nosso próprio coração e mente. Quando há perturbação, agitação, irrealismo e absurdidade, então existe também a infelicidade. Isso é na verdade desnecessário. Tudo apenas é. Se aprendermos a abordar todas as ocorrências com mais equanimidade, com aceitação, então a tarefa de purificação será muito mais fácil. Essa é a nossa tarefa, nossa própria purificação, e só pode ser realizada por nós mesmos.

Um dos melhores aspectos com respeito a isso é que se alguém tiver atenção naquilo que estiver fazendo, se insistir nisso dia após dia sem esquecimento e continuar meditando sem esperar grandes resultados, pouco a pouco eles surgirão. Isso, também, é assim. Enquanto o empenho nessa tarefa persistir, ocorrerá um constante desgaste das impurezas e dos pensamentos irreais, pois não existe felicidade neles e poucos vão querer ficar agarrados à infelicidade. Finalmente, a pessoa esgota aquelas coisas por fazer que estão fora de si mesma. Os livros, dizem todos as mesmas coisas, as cartas, foram todas escritas, as flores, foram todas aguadas, não resta mais nada por fazer, exceto olhar para dentro de si. E com a freqüente repetição disso, uma mudança ocorre. Ela poderá ser lenta, mas já que estivemos aqui por tantas vidas, o que é um dia, um mês, um ano, dez anos? De qualquer maneira, o tempo segue transcorrendo.

Não há mais nada por fazer e nenhum outro lugar para ir. A terra se move num círculo, a vida se move do nascimento para a morte sem que tenhamos, sequer, que nos mover. Tudo acontece sem a nossa interferência. A única coisa que precisamos fazer é estar conectados com a realidade. E quando fizermos isso, descobriremos que amar-nos e amar os outros é uma conseqüência natural; porque estamos interessados na realidade e essa é a verdadeira tarefa do coração – amar. Mas só se também tivermos visto o outro lado da moeda em nós mesmos, e se tivermos feito o trabalho de purificação. Neste caso, não será mais um esforço ou um empreendimento deliberado, mas se tornará uma função natural dos nossos sentimentos mais íntimos, dirigido para dentro, mas luminoso no exterior.

A direção para dentro é um aspecto importante da nossa vida contemplativa. Qualquer coisa que ocorra no nosso íntimo tem repercussões diretas naquilo que ocorre no exterior. A luminosidade e pureza interior não podem ser disfarçadas, nem as impurezas.

Algumas vezes pensamos que podemos representar algo que não somos. Isso não é possível. O Buda disse que apenas conhecemos uma pessoa depois de tê-la ouvido falar muitas vezes e de ter vivido com ela durante muito tempo. As pessoas em geral tentam vender uma imagem melhor do que aquilo que elas na verdade são. Assim, é claro, elas ficam desapontadas consigo mesmas ao fracassarem e igualmente desapontadas com os outros. Conhecer a si mesmo de forma realista possibilita o amor verdadeiro. Esse tipo de emoção proporciona o contentamento necessário para esta tarefa na qual estamos engajados. Ao aceitarmos a nós mesmos como na verdade somos e aos outros, nossa tarefa de purificação, de ir desgastando as impurezas, será muito mais fácil.

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