Introdução de D. T. Suzuki, ao livro “A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen” de Herrigel Eugen. Editora Pensamento, Edição 987.
O que nos surpreende na prática do tiro com arco e na de outras artes que se cultivam no Japão (e provavelmente também em outros países do Extremo Oriente) é que não tem como objetivo nem resultados práticos, nem o aprimoramento do prazer estético, mas exercitar a consciência, com a finalidade de fazê-la atingir a realidade última. A meta do arqueiro não é apenas atingir o alvo; a espada não é empunhada para derrotar o adversário; o dançarino não dança unicamente com a finalidade de executar movimentos harmoniosos. O que eles pretendem, antes de tudo, é harmonizar o consciente com o inconsciente.
Para ser um autêntico arqueiro, o domínio técnico é insuficiente, E necessário transcendê-lo, de tal maneira que ele se converta numa arte sem arte, emanada do inconsciente.
No tiro com arco, arqueiro e alvo deixam de ser entidades opostas, mas uma única e mesma realidade. O arqueiro não está consciente do seu “eu”, como alguém que esteja empenhado unicamente em acertar o alvo. Mas esse estado de não-consciência só é possível alcançar se o arqueiro estiver desprendido de si próprio, sem, contudo, desprezar a habilidade e o preparo técnico. Dessa maneira, o arqueiro consegue um resultado em tudo diferente do que obtém o esportista, e que não pode ser alcançado simplesmente com o estudo metódico e exaustivo.
Esse resultado, que pertence a uma ordem tão diferente da meramente esportista, se chama satóri, cujo significado aproximado é “intuição”, mas que nada tem a ver com o que vulgarmente assim se denomina. Prefiro, por isso, chamá-lo de intuição prájnica. Podemos traduzir prajnâ como sabedoria transcendental, embora essa expressão tampouco reflita os múltiplos e ricos matizes contidos nessa palavra, porquanto se trata de uma intuição especial, que capta simultaneamente a totalidade e a individualidade de todas as coisas. Essa intuição reconhece, sem nenhuma espécie de meditação, que o zero é o infinito e que o infinito é o zero. E isso não constitui uma indicação simbólica ou matemática, mas uma experiência diretamente apreensível, resultante de uma experiência direta. Psicologicamente falando, o satóri consiste numa transcendência dos limites do ego. Do ponto de vista lógico, é a percepção da síntese da afirmação e da negação. Metafisicamente, é a apreensão intuitiva de que ser é vir a ser e vir a ser é ser.
A diferença mais marcante entre o Zen e as demais doutrinas de índole religiosa, filosófica e mística é que, sem jamais sair da nossa vida cotidiana, com tudo o que ela tem de concreto e prático, o Zen tem qualquer coisa que o mantém acima e além da banalidade do cotidiano.
Aqui chegamos ao ponto de contacto entre o Zen, o tiro com arco e as demais artes, como esgrima, o arranjo de flores, a cerimônia do chá, a dança, a pintura etc.
O Zen é a “consciência cotidiana”, de acordo com a expressão de Baso Matsu (morto em 788). Essa “consciência cotidiana” não é outra coisa senão “dormir quando se tem sono e comer quando se tem fome”. Quando refletimos, deliberamos, conceptualizamos, o inconsciente primário se perde e surge o pensamento. Já não comemos quando comemos, nem dormimos quando dormimos. Dispara-se a flecha, mas ela não se dirige diretamente ao alvo e este não está onde devia estar.
O cálculo verdadeiro se confunde com o falso. A confusão introduzida no espírito do arqueiro se traduz em todos os sentidos e em todos os domínios.
O homem é definido como um ser pensante, mas suas grandes obras se realizam quando não pensa e não calcula. Devemos reconquistar a ingenuidade infantil, através de muitos anos de exercício na arte de nos esquecermos de nós próprios. Nesse estágio, o homem pensa sem pensar. Ele pensa como a chuva que cai do céu, como as ondas que se alteiam sobre os oceanos, como as estrelas que iluminam o céu noturno, como a verde folhagem que brota na paz do frescor primaveril. Na verdade, ele é as ondas, o oceano, as estrelas, as folhas.
Uma vez que o homem alcance esse estado de evolução espiritual, ele se torna um artista Zen da vida. Ele não precisa, como o pintor, de telas, pincéis e tintas; nem como o arqueiro, do arco, da flecha, do alvo e dos demais acessórios. Ele tem seus membros, seu corpo, sua cabeça e os órgãos que constituem seu corpo. Sua vida, no Zen, se expressa por meio de todos esses instrumentos importantes, como manifestações suas. Suas mãos e os seus pés são os pincéis. O universo é a tela sobre a qual ele pinta sua vida durante setenta, oitenta, noventa anos. Esse quadro se chama a história.
Hoyen de Gosozan (morto em 1104) disse: “Eis um homem que converte o vazio do espaço numa folha de papel, as ondas do mar em tinta e o Monte Sumeru em pincel para escrever estas cinco sílabas: so-shi-sai- rai-i. “Diante dele eu estendo meu zagu e me inclino profundamente.” Poder-se-ia perguntar o que significa essa maneira fantástica de escrever. Por que é digno da mais alta veneração alguém capaz disso? Um mestre do Zen talvez respondesse: “Como quando tenho fome; durmo quando estou com sono.” Se seu espírito estiver voltado para a natureza, ele também poderia dizer: “Ontem fazia um belo dia e hoje chove.” Mas para o leitor, a pergunta ainda subsiste: “Onde está o arqueiro?” Neste maravilhoso livro, o professor Herrigel, filósofo alemão que viveu durante muitos anos no Japão e se dedicou ao tiro com arco para poder compreender o Zen, nos transmite sua experiência de uma maneira luminosa. Graças à limpidez do seu estilo, o leitor do Ocidente não terá dificuldade em penetrar na essência dessa experiência oriental, até agora tão pouco acessível.
Ipswich, Massachusetts,
Maio de 1953
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