A medicina tradicional tibetana, também conhecida como medicina Sowa-Rigpa, é um sistema médico tradicional que incorporando técnicas como a análise do pulso, da urina, da língua, e até dos olhos, para o diagnóstico de doenças. Para os tratamentos enfatiza a importância da conduta mental e física e do estilo de vida. Sugere a modificação da dieta e de certos tipos de comportamentos, prescreve medicamentos compostos por materiais naturais (como ervas e minerais) e terapias físicas (como a acupuntura tibetana, moxabustão, etc).
Conteúdo:
- Características da Sowa-Rigpa
- O Livro dos Quatro Tantras (rGyud-bZhi)
- Men-Tsee-Khang, o Instituto de Medicina e Astrologia Tibetana
- Investigação da UE
- Mantra do Buda da Medicina
Características da Sowa-Rigpa
A Sowa-Rigpa é uma das mais antigas tradições de cura do mundo. É parte integrante da cultura tibetana, foi desenvolvida ao longo de muitos séculos e é baseada na antiga literatura budista indiana (como o Abhidharma e tantras Vajrayana), na Ayurveda e também na medicina chinesa. Continua a ser praticada no Tibete, Índia, Nepal, Butão, Ladakh, Sibéria, China e Mongólia, bem como mais recentemente em partes da Europa e da América do Norte. Segundo a medicina tibetana muitas das doenças resultam, em última análise, dos três venenos mentais referidos no budismo: ignorância, ganância e raiva. A medicina tibetana segue as Quatro Nobres Verdades do Buda, que aplicam a lógica do diagnóstico médico ao sofrimento.
Para se ter uma boa saúde, a teoria médica tibetana afirma que é necessário manter o equilíbrio dos três princípios do funcionamento do corpo: rLung, mKhris-pa, e Bad-kan.
- rLung é responsável pela capacidade do corpo de circular substâncias físicas (como o sangue), energéticas (como os impulsos do sistema nervoso) e não-físicas (como os pensamentos). No desenvolvimento embrionário, a expressão mental do materialismo se manifesta como o sistema de rLung. Existem cinco subcategorias distintas de rLung, cada uma com localização e função específica: Srog-‘Dzin rLüng, Gyen-rGyu rLung , Khyab-Byed rLüng, Me-mNyam rLung, Thur-Sel rLüng.
- mKhris-pa é caracterizado pelos atributos quantitativos e qualitativos do calor, e é a fonte de muitas funções como a termorregulação, o metabolismo, a função hepática e o intelecto discriminador. No desenvolvimento embrionário, a expressão mental da agressão se manifesta como o sistema de mKhris-pa. Existem cinco subcategorias distintas de mKhris-pa, cada uma com localização e função específica: Ju-Byed mKhris-pa, sGrub-Byed mKhris-pa, mDangs-sGyur mKhris-pa, mThong-Byed mKhris-pa, mDog-Sel mKhris-pa. mKhris-pa é muitas vezes traduzido como bile.
- Bad-kan é caracterizado pelas atributos quantitativos e qualitativos do frio, e é a fonte de muitas funções como os aspetos da digestão, a manutenção da nossa estrutura física, a saúde das articulações e a estabilidade mental. No desenvolvimento embrionário, a expressão mental da ignorância se manifesta como o sistema de Bad-kan. Existem cinco subcategorias distintas de Bad-kan, cada uma com localização e função específica: rTen-Byed Bad-kan, Myag-byed Bad-kan, Myong-Byed Bad-kan, Tsim-Byed Bad-kan, Byor-Byed Bad- kan. Bad-kan é muitas vezes traduzido como fleuma.
No Tibete alguns dos maiores mosteiros mantinham muitos milhares de monges, eles eram divididos de acordo com as suas faculdades, incluindo uma de medicina. Leva 9 anos para alguém se qualificar como médico e 12 para se tornar um bom médico. Estudar medicina tibetana demanda aprender e saber de cor milhares de páginas de livros, por isso muitas vezes esse processo é iniciado ainda na infância. No processo de formação os alunos assistem a consultas dadas pelo medico principal e o seu assistente, semelhante ao que ocorre na formação académica contemporânea.
Os químicos tibetanos dizem que centenas de preparos são feitos de milhares de plantas. Como nem todas essas plantas são encontradas no Tibete, no passado os tibetanos organizavam expedições de importação, particularmente para as escarpas indianas dos himalaias. Ao contrário da medicina tradicional chinesa, não são utilizados produtos de origem animal para produzir os medicamentos.
No antigo documentário “A Mensagem dos Tibetanos“, o narrador diz que os tibetanos não têm problemas em reconhecer o sucesso da medicina atual, mas um medico suíço estava tao convencido do sucesso da medicina tibetana que começou a aprender tibetano para puder estudar com os seus colegas de Lhasa. O narrador alega que é claro que existe um conflito entre as nossas especialidades farmacêuticas, com medicamentos feitas miligrama a miligrama, e os medicamentos dos tibetanos feitos por aproximação, mas depois de um ano de observação, esse medico suíço disse que não há dúvidas sobre as recuperações que os tibetanos obtêm. Os médicos tibetanos têm ideias muito precisas sobre que pílulas das centenas que possuem devem ser prescritas para doenças em particular, mas especialmente para pacientes em particular. Eles se concentram mais em tratar o ser humano como um todo do que tratar os sintomas de uma dor ou desordem orgânica.
Além de um exame detalhado dos olhos, o diagnostico sempre leva em conta a análise do pulso e da urina, como a observação das reações que acontecem numa amostra de urina quando é batida, particularmente a velocidade do aparecimento e desaparecimento da espuma que se forma.
O Livro dos Quatro Tantras (rGyud bZhi)
O rGyud bzhi é o principal livro-texto da medicina tibetana. É citado com frequência em quase toda a literatura médica tibetana e é o texto que os estudantes devem dominar antes de se tornarem médicos.
O rGyud bzhi deverá ser uma tradução de um livro médico sânscrito intitulado Amṛṭahṛdayāṣṭaṅgaguhyopadeśa Tantra (A Essência do Néctar: O Manual dos Ensinamentos Secretos dos Oito Membros), mas as suas origens não são totalmente conhecidas. Alguns praticantes afirmam que são ensinamentos do próprio Buda (o que é improvável), outros acreditam que é um texto do Séc. XII com origem no Tibete da autoria de Yuthog, e outros permanecem céticos quando ao autor original.
O mais provável é que o rGyud bzhi seja um texto nativo tibetano, escrito numa época em que as tradições da Índia, China e Grécia se encontraram e se misturaram dentro de uma estrutura budista, daí ser notório a influência de todas essas culturas, com predominância da indiana.
Os quatro tantras presentes no livro sãos os seguintes:
- Primeiro tantra – rTsa rgyud (Manual da raiz): É um esboço geral dos princípios da medicina tibetana. Discute os humores no corpo, os seus desequilíbrios e as ligações com a doença. Para diagnosticar doenças aborda predominantemente a análise do pulso e a análise visual da língua e urina. Esta secção é composta por seis capítulos. O texto compara o sistema médico com uma árvore. Três raízes brotam em nove caules, que se ramificam em 47 ramos com 224 folhas. As nove hastes representam as nove secções da ciência médica, os ramos representam informações gerais e as folhas ilustram os detalhes.
- Primeira raiz: explica o organismo humano e o seu funcionamento. Abrange duas hastes, que representam o corpo saudável e o corpo doente. O corpo saudável é representado por três ramos e 25 folhas, o corpo doente por nove ramos e 63 folhas.
- Primeira haste: representa o corpo saudável e tem três ramos. Um dos ramos representa os três humores, o outro representa os constituintes corporais (essência nutricional, sangue, tecido muscular, gordura ou tecido adiposo, ossos, medula e fluido regenerativo) e o terceiro ramo representa as três excreções do corpo (fezes, urina e transpiração).
- Segunda haste: representa o corpo doente. Esta secção trata das três causas, das quatro condições, das seis diferentes entradas, das localizações e das quinze vias das doenças. Discute-se também a associação do avanço das doenças com a idade do paciente, as estações do ano e o local de residência do paciente. Além disso, os nove distúrbios fatais, as doze contra-indicações devido ao tratamento inadequado e a condensação de todos os distúrbios em natureza quente e fria também são indicados.
- Segunda raiz: informa sobre os métodos de diagnóstico, o exame da língua e da urina, a análise do pulso e o questionamento que deve ser feito ao paciente sobre os sintomas da doença, o seu estilo de vida, etc.
- Terceira raiz: aborda os métodos terapêuticos, a dieta, o comportamento, preparações médicas e tratamentos externos.
- Primeira raiz: explica o organismo humano e o seu funcionamento. Abrange duas hastes, que representam o corpo saudável e o corpo doente. O corpo saudável é representado por três ramos e 25 folhas, o corpo doente por nove ramos e 63 folhas.
- Segundo tantra – bShad rgyud (Manual da explicação): Expande e elucida os princípios do primeiro tantra. Oferece teorias gerais sobre assuntos como a anatomia, fisiologia, psicopatologia, embriologia e tratamento. Aborda o ciclo vital (conceção, parto, funcionamento dos três humores e sinais da morte), causas, condições e classificação das doenças. Especifica as propriedades dos ingredientes medicinais e explica detalhadamente a dieta, o comportamento e as regras para a manutenção da saúde, etc. Também contém um código que os médicos devem respeitar no exercício da sua profissão. Esta secção é composta por 31 capítulos.
- Terceiro tantra – Man ngag rgyud (Manual instrucional): É o mais longo dos tantras. Explica em detalhe as doenças, qual o desequilíbrio humoral que causa a maleita e fornece conselhos práticos para o tratamento. Esta secção é composta por 92 capítulos.
- Quarto tantra – Phyi rgyud (Manual subsequente): Discute métodos de diagnóstico diferentes e mais avançados e explica a preparação de medicamentos, tais como comprimidos, pós, xaropes, manteigas medicinais, medicamentos evacuativos, etc. Também inclui técnicas terapêuticas como a moxabustão, terapia com agulhas, massagem, pequenas cirurgias e sangria (na medicina refere-se à retirada de sangue). Esta secção é composta por 27 capítulos.
O texto completo abrange 5900 versículos agrupados em 156 capítulos. Embora haja instruções escritas nos Quatro Tantras, a transmissão oral do conhecimento médico ainda permanece um elemento forte da Medicina Tibetana.
Men-Tsee-Khang, o Instituto de Medicina e Astrologia Tibetana
O 13º Dalai Lama (1876-1933) passou grande parte da sua vida a promover a cultura tibetana, especialmente a medicina e a astrologia, tendo compilado e escrito muitos livros sobre medicina. Em 1916, com a finalidade de preservar e expandir o sistema médico tibetano, estabeleceu em Lhasa, no Tibete, o Instituto de Medicina e Astrologia Tibetana.
Em 1949 o Tibete foi invadido pelo regime comunista chinês e durante a Revolução Cultural (1966-1976) cerca de 6000 mosteiros foram destruídos, assim como estátuas, livros religiosos, de medicina, e de astrológica. Também florestas foram destruídas e o meio ambiente afetado. Como consequência direta da repressão perpetrada pelo governo chinês, mais de 1,2 milhões de tibetanos morreram.
A fim de preservar e promover a riqueza da cultura tibetana, muitas instituições, mosteiros e escolas foram restabelecidas na Índia sob os auspícios do 14º Dalai Lama. Men-Tsee-Khang foi um dos institutos restabelecido e atualmente deverá ser o maior instituto de medicina tibetana do mundo. A instituição passou por um desenvolvimento significativo desde a sua criação e hoje abriga vários departamentos académicos, tais como:
- Farmácia: fabrica diferentes formas de pílulas;
- Pesquisa Clínica: realiza pesquisas sobre doenças como diabetes, cancro, hepatites e hipertensão em colaboração com o sistema de análise científico ocidental;
- Materia Médica: identifica e documenta ervas e dedica-se à preservação de espécies de plantas e ao cultivo de espécies raras para pesquisa;
- Pesquisa de Produtos à Base de Plantas: fabrica produtos à base de plantas para o rejuvenescimento do corpo e da pele com base no sistema tradicional tibetano;
- Laboratório de Garantia de Qualidade: verifica a qualidade das matérias-primas, medicamentos e produtos de saúde à base de plantas de acordo com os métodos científicos e normas GMP (Good manufacturing practice/Boas Práticas de Fabricação);
- Colégio: é responsável pela formação de médicos e astrólogos tibetanos.
Investigação da UE
Entre 22 de junho de 2011 e 21 de junho de 2013 a União Europeia financiou um projeto orçado em € 183 606,40, com o objetivo de produzir o “primeiro aprofundamento critico da história da medicina tibetana no exílio desde 1960 até ao presente, focando-se particularmente na dinâmica da sua globalização, mercantilização e farmacêutica.” Para isso foram usados na investigação uma “combinação de métodos de pesquisa histórica e etnográfica para documentar o último meio século de desenvolvimento da medicina exílio-tibetana na interface do conhecimento tradicional, ciência moderna, mercado global, ética budista e política nacionalista.” Pertendeu-se assim “traçar a disseminação global da medicina tibetana (particularmente para a Europa) nas últimas décadas e torná-la compreensível para vários públicos (académicos, profissionais médicos, decisores políticos), documentando as suas causas e dinâmicas.”
Alguns dos resultados deste projeto foram os seguintes:
- Ampla cobertura dos média.
- 4 artigos em revistas académicas internacionais.
- 1 capítulo de livro e 4 reviews de livros publicados.
- Apresentações/palestras e simpósios internacionais sobre a medicina tibetana.
- O cientista do projeto co-fundou em 2012 uma rede académica chamada de “Diálogos de Viena em Antropologia Médica”, que acolhe regularmente palestras internacionais e interdisciplinares e fóruns de discussão em Viena sobre a medicina tibetana. A rede tem recebido académicos de renome.
- A rede também promove ativamente a colaboração entre as instituições participantes, o que inclui várias universidades e institutos académicos de Viena.
- Em setembro de 2013, o cientista do projeto foi eleito para para o conselho da IASTAM, a International Association for the Study of Traditional Asian Medicines. Ele também se juntou a duas redes internacionais de pesquisa (PharmAsia e o South Asian Medical Heritage).
- Foram iniciadas colaborações com o Centro Austríaco do Tibete em Hüttenberg, com o Dharamsala Men-Tsee-Khang (Instituto de Medicina e Astrologia Tibetana de Dharamsala), com a faculdade de medicina da Universidade Central de Estudos Tibetanos em Sarnath, Índia, e com o Conselho Central de Estudos de Medicina Tibetana, em Dharamsala, Índia.
Mantra do Buda da Medicina
Bhaisajyaguru formalmente Bhaisajyaguru Vaidurya Prabha Raja (Mestre de Medicina e Rei da Luz Lápis Lazuli), é descrito no homónimo Bhaisajyaguru Vaidurya Prabha Raja Sutra, comumente chamado de Sutra do Buda da Medicina, como um bodhisattva que fez doze grandes votos com o objetivo de abençoar, proteger e ajudar todos os seres. Bhaisajyaguru começou a ser chamado de Buda da Medicina após uma tradução do Sutra pelo Xuanzang. O Sutra faz parte da literatura Mahayana e a iconografia tem diversos significados. Existem várias práticas associadas ao Buda da Medicina, nomeadamente dentro do sistema médico tibetano, como a recitação do mantra do Buda da Medicina juntamente com outros tratamentos e práticas.
Tayata Om Bekandze
Bekanze Maha Bekandze
Randze Samundgate Soha
“Que todos os seres possuam a felicidade e as suas causas.
Possam todos os seres estarem livres do sofrimento e das suas causas.
Possam todos os seres permanecerem para sempre na alegria.
Possam todos os seres permanecerem em equanimidade, livres do apego e da aversão.”
Referências: Tibetan Buddhist Encyclopedia; Wikipédia; Men-Tsee-Khang 1, 2; Projeto da UE “The History of Tibetan Medicine in Exile”; Documentário “A Mensagem dos Tibetanos”.
O objetivo deste post não é apresentar uma defesa incondicional da medicina tradicional e alternativa, nomeadamente da tibetana, em detrimento da medicina moderna. Graças à medicina moderna muitas doenças foram e são ultrapassadas. Mesmo o Dalai Lama, que defende a medicina tibetana, também é tratado com a medicina moderna e não a exclui. A medicina tibetana terá os seus benefícios e méritos, mas quem procurar por esses tratamentos deverá ter em atenção com que profissional se está a tratar, evitar cair em charlatanismo (como vimos são bastantes anos de formação, não é com uns cursos de fim de semana que alguém está qualificado) e não descurar a medicina moderna. Este post é meramente informativo, o autor deste post e site não se responsabiliza por qualquer inconveniente que eventualmente o(a) leitor(a) possa vir a ter por experimentar este tipo de medicina motivado(a) pela leitura do post.
Sugestões de leitura para aprofundamento (links externos):
- A Medicina Tibetana: Os Princípios Básicos (Study Buddhism)
- Details of Tibetan Medicine: 4 Treatment of Disease (Study Buddhism)
Veja também:
Agradeço. Será que é acessível aqui em São Paulo?
Desconheço…