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O que faz de ti um Budista?

“Embora em essência seja bastante simples, o budismo não se presta a uma explicação fácil. Ele é complexo, vasto e profundo, quase além da imaginação. Embora seja não-religioso e não-teísta, é difícil alguém apresentar o budismo sem um tom teórico ou religioso. A medida que o budismo chegou a diferentes partes do mundo, as características culturais que foi acumulando o tornaram ainda mais complicado de decifrar.”Dzongsar K. Rinpoche

Palestra: O que faz de ti um Budista? | Tsering Paldron

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O que faz você ser Budista? Os quatro selos | Dzongsar Khyentse Rinpoche

Trechos do livro “O que faz você ser budista?“, por Dzongsar Khyentse Rinpoche. Postado originalmente em português no BudaVirtual. Confira também o artigo em inglês da Shambhala Sun.

Certa vez, eu estava num avião, na poltrona do meio da fileira central de um vôo transatlântico, quando um homem simpático sentado ao meu lado fez uma tentativa de ser cordial. Vendo minha cabeça raspada e saia cor de vinho ele concluiu que eu era budista. Quando foi servida a refeição, o homem atenciosamente se ofereceu para pedir uma refeição vegetariana para mim. Tendo presumido corretamente que eu era budista, ele também presumiu que eu não comia carne. Esse foi o início da nossa conversa. O vôo era longo e, para afastar o tédio, passamos a falar sobre o budismo.

Com o passar do tempo, tenho me dado conta de que as pessoas freqüentemente associam o budismo e os budistas à paz, à meditação e à não-violência. De fato, parece que muitos pensam que vestes cor de vinho ou de açafrão e um sorriso sereno é tudo o que se precisa para ser budista. Sendo eu um budista fanático, devo me orgulhar dessa reputação, especialmente por seu aspecto de não-violência, tão raro nesta época de guerras e violência, sobretudo a violência religiosa. Ao longo da história da humanidade, a religião parece ter gerado brutalidade. Ainda hoje, atos de violência praticados por extremistas religiosos dominam os noticiários. No entanto, posso dizer com confiança que, até o presente, nós budistas não nos desonramos. A violência nunca teve um papel na propagação do budismo. No entanto, em razão da formação budista que recebi, também me sinto um tanto descontente quando vejo o budismo ser associado a nada além de vegetarianismo, não-violência, paz e meditação. O príncipe Sidarta, que sacrificou todo o luxo e o conforto da vida nos palácios, deveria estar em busca de algo mais do que mansidão e vida campestre quando se pôs a caminho para descobrir a iluminação.

Embora em essência seja bastante simples, o budismo não se presta a uma explicação fácil. Ele é complexo, vasto e profundo, quase além da imaginação. Embora seja não-religioso e não-teísta, é difícil alguém apresentar o budismo sem um tom teórico ou religioso. A medida que o budismo chegou a diferentes partes do mundo, as características culturais que foi acumulando o tornaram ainda mais complicado de decifrar. Roupagens teístas, como incenso, sinos e chapéus multicoloridos conseguem atrair a atenção das pessoas, mas, ao mesmo tempo, podem ser obstáculos. Elas acabam pensando que isso é tudo o que constitui o budismo, afastando-se, assim, da sua essência.

Às vezes, por frustração com o fato de os ensinamentos de Sidarta não terem se propagado o suficiente para o meu gosto, e às vezes por ambição pessoal, eu acalento ideias de reformar o budismo: fazer dele algo mais fácil, mais direto e puritano. É um desvio e um engano imaginar (como às vezes faço) que o budismo possa ser simplificado e formatado em uma série de práticas predefinidas e calculadas – tais como meditar três vezes ao dia, observar certos códigos de vestimenta e pautar-se por certas crenças ideológicas, como, por exemplo, a de que o mundo inteiro deveria ser convertido ao budismo. Se pudéssemos prometer que essas práticas trariam resultados tangíveis imediatos, penso que haveria mais budistas no mundo. No entanto, quando me recupero dessas fantasias (o que raramente faço), uma mente mais sóbria me adverte de que um mundo cheio de pessoas autodenominadas budistas não seria, necessariamente, um mundo melhor.

Muitos crêem, erroneamente, que Buda é o “deus” do budismo; mesmo pessoas em países normalmente identificados como budistas, como a Coréia, o Japão e o Butão, têm essa atitude teísta em relação a Buda e ao budismo. Esse é o motivo pelo qual, ao longo deste livro, os nomes Sidarta e Buda são usados como sinônimos, para lembrar que Buda era apenas um homem, e que esse homem se tornou Buda.

É compreensível que algumas pessoas possam pensar que os budistas sejam seguidores desse homem externo chamado Buda. O próprio Buda, porém, salientou que não deveríamos venerar a pessoa, mas, sim, a sabedoria que ela ensina. Também existe a pressuposição de que a reencarnação e o carma constituem os elementos mais essenciais do credo budista. Há muitos outros equívocos grosseiros. Por exemplo, o budismo tibetano por vezes é designado “lamaísmo” e em alguns casos o zen não é sequer considerado budismo. Algumas pessoas ligeiramente mais informadas, mas também equivocadas, podem fazer uso de palavras como vacuidade e nirvana, sem compreender o seu significado.

Quando surge uma conversa como a que tive com meu companheiro de viagem, uma pessoa que não seja budista pode perguntar casualmente: “O que faz de alguém um budista?” Essa é a pergunta mais difícil de responder. Se a pessoa tem um interesse genuíno, a resposta completa não serviria de assunto para uma conversa ligeira à mesa, e generalizações podem levar a mal-entendidos. Suponhamos que você dê a resposta verdadeira, a resposta que aponta para a base fundamental dessa tradição de 2.500 anos.

A pessoa é budista se aceitar as quatro verdades a seguir:

  • Todas as coisas compostas são impermanentes.
  • Todas as emoções são dor.
  • Todas as coisas são desprovidas de existência intrínseca.
  • O nirvana está além dos conceitos.

Essas quatro afirmações, ditas pelo próprio Buda, são conhecidas como “os quatro selos”. De modo geral, selo significa uma marca que confirma a autenticidade. Por uma questão de simplicidade e fluência, vou aqui me referir a essas afirmações tanto como selos quanto como “verdades” – sem as confundir com as quatro nobres verdades do budismo, que tratam unicamente dos aspectos do sofrimento. Embora se acredite que os quatro selos abarquem a totalidade do budismo, a impressão que se tem é que as pessoas não querem ouvir falar sobre eles. Quando desacompanhados de mais explicações, eles servem apenas para arrefecer os ânimos e, em muitos casos, não despertam maior interesse. A conversa se desvia do assunto e as coisas param por aí.

O Primeiro Selo

Esses Quatro Selos estão também muito interligados, como veremos. O primeiro diz que todas as coisas compostas são impermanentes. Não há um único fenômeno que possamos imaginar que não seja composto e, portanto, não esteja sujeito à impermanência. Podemos aceitar facilmente certos aspectos da impermanência, como a mudança do tempo; há, porém outros aspectos, igualmente óbvios, que não aceitamos. Embora nosso corpo seja visivelmente impermanente, envelheça a cada dia, não queremos aceitar isso. Certas revistas populares que vendem a juventude e a beleza exploram essa atitude. Se pensarmos em termos de visão, meditação e ação, a visão de seus leitores poderia ser concebida em termos de não envelhecer, passar adiante do envelhecimento de algum jeito.

Contemplando essa visão de permanência, a ação desses leitores é freqüentar academias de ginástica, fazer cirurgia plástica e se meter em todo tipo de complicações. Aos seres sublimes isso pareceria ridículo, baseado em uma visão equivocada. Ao olhar para esses diferentes aspectos da impermanência, como o envelhecimento, a morte, a mudança do tempo, etc., os buddhistas têm uma única coisa a declarar – esse primeiro selo: fenômenos são impermanentes porque são compostos. Tudo que é feito de partes reunidas, cedo ou tarde, irão se dispersar.

Quando dizemos “composto”, isso inclui o tempo, o espaço e as dimensões. O tempo é composto e, por isso, impermanente. Sem o passado e o futuro, o presente não existe. Se o momento presente se tornasse permanente, não haveria futuro, pois o presente estaria sempre aqui. Tudo que podemos fazer – por exemplo, plantar uma flor ou cantar uma canção – tem um começo, meio e fim. Se enquanto estivéssemos cantando uma canção faltasse o começo, o meio ou o fim, não haveria como cantar a canção, o que faz desse ato algo composto.

Poderíamos, então, nos perguntar, “E daí?” “Por que se preocupar com esse tipo de coisa?” “O que há de tão importante nisso?” “Tem um começo, meio e fim – e daí?” Não é que os budistas estejam de fato preocupados com começos, meios e fins. Esse não é o problema aqui. O problema está no fato de que, quando a impermanência está presente, a incerteza e o sofrimento também estão presentes.

Algumas pessoas acham que o budismo é pessimista, sempre falando de morte, morrer, impermanência, velhice – mas isso não é necessariamente verdade. A impermanência é um alívio! Eu não tenho uma BMW hoje e é graças à impermanência desse fato que eu posso vir a ter uma amanhã. Sem a impermanência eu ficaria preso à não-posse de uma BMW e nunca poderia vir a ter uma. Eu posso estar me sentindo muito deprimido hoje e, graças à impermanência, amanhã eu posso estar me sentindo ótimo. A impermanência não é necessariamente uma má notícia; tudo depende de como a interpretamos e a compreendemos. Mesmo que hoje nossa BMW seja riscada por um vândalo ou que nosso melhor amigo nos deixe na mão, não vamos ficar tão preocupados assim.
Quando não reconhecemos que toda coisa composta é impermanente, isso é um engano, uma ilusão. Quando compreendemos isso – e não só intelectualmente – ficamos livres desse engano. É a isso que chamamos de liberação: ficar livre da crença unidirecionada e bitolada de que as coisas são permanentes. Mesmo o caminho, o precioso caminho budista, também pertence à esfera do composto, quer gostemos disso ou não. Ele tem um começo, tem um fim, tem um meio.

Quando você compreende que todas as coisas compostas são impermanentes e você vive alguma perda, você tem condição de aceitar esse fato. Visto que todas as coisas são impermanentes, esse fato é de se esperar.

Segundo Selo

Todas as emoções são dor. Nós aceitamos que certas emoções, como a raiva ou o ciúme, são dor. Mas o que dizer do amor e do carinho, da bondade e da devoção? O que dizer dessas emoções que são agradáveis, belas, adoráveis? Nós não as encaramos como sendo dor. No entanto, as emoções implicam em dualidade, o que, ao final, cria sofrimento. Emoções como o choro, a dor, a raiva, são na verdade apenas o amadurecimento de emoções mais sutis; surgem no final de um processo. Elas são as menos perigosas e logo se exaurem. A causa é a verdadeira emoção, a mente dualista, e isso inclui quase todos os pensamentos que temos.

Por que isso é dor? Porque é equivocado. Toda mente dualista é uma mente equivocada, uma mente que ignora a natureza das coisas. O que é que se entende por dualidade? De um lado, estamos nós; de outro, nossa experiência. Ela é relativa, pois podemos ver que pessoas diferentes percebem o mesmo objeto de diferentes modos. Um homem pode pensar que uma mulher seja bonita, e para ele isso é verdade. Mas se essa verdade fosse independente, então uma outra pessoa também teria que ver essa mesma mulher como bonita. Essa verdade não é independente; depende da mente de cada um, da projeção de cada um.

A mente dualista cria muitas expectativas, muito medo, muitas esperanças. Onde quer que a mente dualista exista, existe a esperança, existe o medo. A esperança é uma forma perfeita e sistematizada de sofrimento. Com relação ao medo nenhuma explicação é necessária, mas nossa tendência é pensar que a esperança não é sofrimento. Na verdade, porém, é um grande sofrimento e definitivamente é uma fonte de dor.

O Buda ensinou “conheça o sofrimento”. Essa é a Primeira Nobre Verdade. Muitos de nós tomamos erroneamente o sofrimento pelo prazer. O prazer que tenho hoje é, na verdade, a própria causa da dor que vou estar experimento mais cedo ou mais tarde. Uma outra forma que o budismo tem de colocar isso é dizer que, quando uma grande dor fica menor, tomamos isso por prazer. Esse é o período que chamamos de felicidade.
Além disso, a emoção é algo que não tem uma existência intrínseca. Quando uma pessoa que está com sede vê água em uma miragem, tem um sentimento de alívio, “Ah, encontrei água!”. Porém, à medida que se aproxima, a qualidade e a percepção desaparecem e, por fim, resta a decepção. Esse é um aspecto bastante importante da definição de emoção, segundo o budismo: “Algo que não tem nada em sua essência”. “Algo que não tem existência autônoma” – isso mesmo, existência autônoma.

Os budistas concluem que todas as emoções são sofrimento porque são dualistas, o que quer dizer que estão envoltas em incerteza e são acompanhadas de esperança e medo, não tendo, em última análise, qualquer natureza dotada de existência intrínseca. Então, podemos dizer que elas não valem a pena tanto assim. Tudo o que criamos por intermédio das emoções, ao final, é completamente fútil e doloroso. Por essa razão os budistas fazem meditação shamatha e vipassana. O benefício que isso nos traz é soltar o laço com o qual as emoções nos prendem, soltar a fixação que temos em relação às emoções.

Nota: Vale acrescentar este trecho de outro mestre, Dzogchen Ponlop Rinpoche, sobre as emoções e o budismo: ‘Quando falamos sobre emoções, geralmente o que vem a mente são estados bem intensos de sentimento. Muitas vezes, olhamos as nossas emoções como ambivalência: elas podem ser desafiadoras, mas também nos são preciosas. Vemo-nas como algo nobre, mas também como algo devastador. Graças a seu poder, as emoções nos levam a superar nosso auto interesse convencional, inspirando atos de coragem e sacrifício pessoal, ou alimentam os nossos desejos a ponto de sermos levados a trair aqueles que amamos e a quem deveríamos proteger. Nas artes, seriam mais semelhantes a poesia e a música do que a documentários, por exemplo. A palavra ”emoção”, porém, não transmite adequadamente o que se quer dizer o termo no escopo budista. A diferença é que, no contexto budista, a palavra ”emoção” sempre se refere a um estado mental agitado, perturbado, aflito, sob a égide da ignorância e, muitas vezes, confuso. A qualidade de agitação ou perturbação implica que a mente emocional é um estado mental sem claridade e, que por isso, também é um estado que nos faz agir sem reflexão, isto é, sem sabedoria. Assim, as emoções são consideradas estados mentais que obscurecem a nossa consciência e que, portanto, interferem na nossa capacidade de ver a verdadeira natureza da mente. Por outro lado, os sentimentos que aumentam a experiência de abertura e claridade, tais como o amor e compaixão e a alegria, não são considerados ”emoções” no sentido budista; pelo contrário, são vistos como fatores mentais positivos, aspectos da sabedoria ou qualidades da mente desperta. Porém, qualquer sentimento muito forte – ainda que receba o rótulo de ”amor” – governado por traços possessivos, de apego mundano, de autogratificação ou por questões de controle é, sem dúvida, uma emoção no sentido convencional.”

O Terceiro Selo

Todos os fenômenos são desprovidos de existência intrínseca. Aqui estamos falando de shunyata, vacuidade. Quando dizemos todos os fenômenos, isso inclui todas as coisas, até mesmo o Buda, a iluminação ou o caminho. Os budistas definem fenômeno como algo que possui características e que seja um objeto percebido por um sujeito. É a ignorância que toma o objeto como algo externo e faz com que ignoremos a verdade daquele fenômeno. A verdade do fenômeno é o que denominamos shunyata, vacuidade, o que dá a entender que ele não possui uma essência que exista verdadeiramente.

Quando um sujeito enganado vê um objeto, este é interpretado como algo que existe verdadeiramente. No entanto, a existência que o sujeito imputa ao objeto é uma suposição equivocada que aparece apoiada em diferentes condições. Como no caso de alguém que vê uma miragem, a pessoa não tem diante dos olhos uma miragem dotada de existência verdadeira. Ao falar em vacuidade, o Buda queria dizer que as coisas de fato não existem como equivocadamente acreditamos que elas existam, e que as coisas são, em realidade, vazias dessa existência falsamente imputada.

Por que acreditam no que são, na realidade, apenas projeções confusas, os seres sencientes sofrem, e para corrigir isso o Buda ensinou o Dharma.

De modo muito simples, podemos nos referir à vacuidade dizendo “a maneira como as coisas aparecem não é como elas realmente são”. Como expliquei ao falar sobre as emoções, quando você olha para um fenômeno como se estivesse olhando para uma miragem, ele desaparece à medida que você se aproxima, ainda que no princípio parecesse real.

A vacuidade é, às vezes, denominada dharmakaya e, em um contexto diferente, poderíamos estar descrevendo como o dharmakaya é permanente, imutável, permeia tudo – todas essas palavras poéticas e belas. Essas são palavras místicas que dizem respeito ao caminho. Agora, porém, estamos tratando do terreno, da base, estamos nos esforçando para adquirir uma compreensão intelectual. No caminho é possível retratar o Buda Vajradhara como um símbolo do dharmakaya ou da vacuidade, mas do ponto de vista acadêmico até mesmo pensar em pintar o dharmakaya é um erro.

Pergunta: Se nós próprios somos dualistas, podemos chegar a compreender a vacuidade, que é algo que está além de qualquer descrição! Os buddhistas são muito escorregadios. Você tem razão: não podemos nunca falar da vacuidade absoluta, mas podemos falar de uma “imagem” da vacuidade. Então, você pode avaliá-la, contemplá-la e, por fim, chegar à verdadeira vacuidade. E se você dissesse, “Mas isso é facilitar as coisas demais, isso é uma embromação”, os budistas diriam, “Mas é assim que as coisas funcionam”. Se você precisa encontrar alguém com quem nunca tenha estado antes, eu posso descrever essa pessoa para você, mostrar-lhe uma fotografia dela e, com a ajuda dessa imagem, você pode ir e achar a verdadeira pessoa. O caminho, em última instância, não é racional, mas do ponto de vista relativo, é muito racional, pois se casa com as convenções relativas do nosso mundo. Quando falo da vacuidade, tudo que estou apresentando é uma “imagem” da vacuidade. Não posso lhe mostrar a verdadeira vacuidade, mas posso lhe contar porque as coisas não são dotadas de existência intrínseca.

O Buda ensinou três caminhos diferentes em três momentos separados, conhecidos como Os Três Giros da Roda [As Três Voltas do Dharma]*. Porém, ele resumiu esses três caminhos em uma única frase: “Mente; não há mente; a mente é luminosa”. Aqui “Mente” se refere ao “primeiro giro da roda”, o primeiro conjunto de ensinamentos. Indica que o Buda ensinou que há uma “mente”, e isso serve para afastar a visão niilista de nenhum céu, nenhum inferno, nenhuma causa e efeito. Quando ele disse, “Não há mente, isso reflete o ponto de vista de que a mente é apenas um conceito e que não existe algo como uma mente dotada de existência verdadeira”. A terceira afirmação, “A mente é luminosa”, aponta para a natureza búdica, a sabedoria sem equívocos nem ilusões que existe deste o começo.

Nagarjuna, um grande sábio, disse que a finalidade do primeiro giro foi afastar tudo que é não-virtuoso. Quando a não, virtude aparece? Quando você se torna eternalista ou niilista. Portanto, para pôr fim aos atos e pensamentos não virtuosos, o Buda fez o primeiro sermão. O segundo giro, no qual o Buda ensinou sobre a vacuidade, foi apresentado para afastar o apego ao eu, bem como o apego aos fenômenos como verdadeiramente existentes. O terceiro giro destinou-se a afastar todos os pontos de vista, todas as visões, até mesmo a visão da ausência do eu. Os três conjuntos de ensinamentos do Buda não pretendem introduzir algo de novo; sua finalidade é apenas eliminar a confusão.

Como budistas, praticamos compaixão, mas, se nos falta a compreensão deste terceiro selo, a compaixão pode ser um tiro que sai pela culatra. Se você fica apegado à meta da sua compaixão, ao solucionar um problema é possível que você passe por cima do fato de que a sua idéia de solução está inteiramente baseada na sua interpretação, e você pode acabar vítima da esperança e do medo, vítima da decepção. Você pode se tornar um bom praticante do Mahayana e, uma vez, duas vezes, você tenta ajudar os seres sencientes. Mas, porque lhe falta a compreensão deste terceiro selo, pode ser que você fique cansado de ajudar os seres sencientes.

Um outro tipo de problema que também vem da falta de compreensão da vacuidade e que ocorre com budistas mais superficiais ou enfastiados, tem a ver com a questão de que, nos círculos budistas, se você não aceita a vacuidade, então você não está por dentro. Assim, fingimos que apreciamos a vacuidade e fingimos meditar sobre ela. No entanto, quando não a compreendemos adequadamente, pode surgir um efeito colateral nocivo.

Dizemos, “Ah, tudo é vacuidade. Posso fazer tudo o que eu quiser”.

Ignoramos e violamos os detalhes do karma, a responsabilidade sobre nossos atos. Você se torna deselegante e também uma fonte que leva os outros a perder inspiração. Sua Santidade o Dalai Lama muitas vezes faz referência a essa falha que é a não-compreensão da vacuidade. A compreensão correta da vacuidade nos leva a ver como as coisas são inter-relacionadas e como temos responsabilidade por nosso mundo.

Você pode ler milhões de páginas sobre esse assunto. Só de Nagarjuna você pode ler cinco comentários diferentes que tratam basicamente deste tópico.

Há também comentários escritos pelos seguidores de Nagarjuna. Existem incontáveis ensinamentos sobre o estabelecimento da visão da vacuidade. Nos templos ou monastérios Mahayana canta-se o Sutra do Coração, o Prajnaparamita, que também é um ensinamento sobre o terceiro selo.

As filosofias ou religiões podem dizer “as coisas são ilusórias”, “o mundo é maya, ilusão”, mas há sempre uma ou duas coisas que ficam de fora por serem tidas como verdadeiramente existentes – como Deus, a energia cósmica, seja lá o que for. No budismo, não é isso que acontece. Tudo no samsara e no nirvana, da cabeça do Buda até um pedaço de pão, tudo é vacuidade. Não há nada que não esteja incluído na verdade última.

Pergunta: No budismo há tanta iconografia que parece ser objeto de meditação ou de adoração. No entanto, seu ensinamento parece me conduzir para a compreensão de que tudo isso é inexistente. Quando você vai a um templo, vê muitas estátuas belas, cores e símbolos. Eles são importantes no caminho. Isso é o que chamamos “imagem” da sabedoria, “imagem” da vacuidade. Ainda assim, mesmo enquanto seguimos pelo caminho e aplicamos seus métodos, precisamos saber que o caminho, em última instância, é uma ilusão. O caminho, de modo bastante hábil, coaduna-se com a nossa mente habitual e, ainda assim, tem o potencial de, ao final, despertá-la.

O Quarto Selo

Com a explicação dada sobre a vacuidade acho que de algum modo já descobrimos que o nirvana está além dos extremos. Esse último selo também é um ponto de vista único ao budismo. Em muitas filosofias ou religiões a meta final é alguma coisa na qual podemos nos firmar, a qual podemos conservar: “a meta final é a única coisa verdadeira que existe”. No budismo, porém, a meta não é fabricada; por isso não pode ser guardada. Por isso dizemos: ela está “além dos extremos”. Talvez imaginemos que, de algum modo, poderíamos ir para um lugar onde houvesse um sofá melhor, um chuveiro melhor, uma rede de esgotos melhor, algum tipo de nirvana onde você não precisa nem mesmo de controle remoto, onde todas as coisas aparecem no momento em que você pensa nelas. No entanto, como disse antes, não introduzimos alguma coisa que não estava presente antes. A meta é alcançada quando removemos o que havia de artificial e obscurecedor. Não ficamos apegados a uma verdade última dotada de existência real, a um nirvana que realmente existe.

Quer você seja um monge ou monja que tenha renunciado à vida mundana, quer seja um yogui que pratique métodos tântricos profundos, quando você busca abandonar ou transformar o apego às suas próprias experiências, se você não tem familiaridade com esses quatro selos, você estará encarando suas experiências como manifestação de alguma coisa má, satânica, ruim. Isso quer dizer que você estará longe da verdade. Todo o budismo tem por objetivo levar à compreensão da verdade. Se houvesse alguma permanência verdadeira nas coisas compostas, se houvesse prazer verdadeiro nas emoções, o Buda teria sido o primeiro a recomendá-las, dizendo: “Por favor, guardem e prezem essas coisas”, porque o que ele queria, em sua grande compaixão, era que tivéssemos o que é verdadeiro, real.

Quando você tiver uma clara compreensão desses quatro selos como a base da sua prática, você se sentirá confortável, independentemente das experiências que surgirem. Desde que você mantenha esses quatro selos como a sua visão, nada pode sair errado. A pessoa que mantém esses quatro selos no coração ou na mente, a pessoa que os contempla, é budista. Embora não ostente o rótulo de budista, ela será uma seguidora do Buda.

A mensagem dos quatro selos deve ser entendida literalmente – não em sentido metafórico ou místico – e ser levada a sério. Os selos, porém, não são dogmas ou mandamentos. Com um pouco de contemplação, vemos que eles nada têm de moralismo ou ritualismo. Não se fala em boa ou má conduta. Eles são verdades leigas fundadas na sabedoria, e a sabedoria é o que mais interessa a um budista. A moral e a ética ficam em segundo plano. Não é por dar umas tragadas ou pular a cerca de vez em quando que alguém fica impedido de ser budista. O que não vale dizer que é dada carta branca à perversidade e à imoralidade.

Falando de modo geral, a sabedoria provém de uma mente que possui o que os budistas chamam de “visão correta”. No entanto, a pessoa nem sequer precisa se considerar budista para ter a visão correta. Em última análise, é essa visão que determina a nossa motivação e ação. É a visão que nos guia no caminho do budismo.

Se adotamos comportamentos saudáveis em acréscimo aos quatro selos, isso faz de nós budistas ainda melhores.

Não é necessário lembrar essas quatro verdades o tempo todo, incessantemente. Mas elas precisam residir na sua mente. Você não anda por aí se lembrando sem parar do seu nome; porém, quando alguém pergunta o seu nome, você se lembra dele no mesmo instante. Não há dúvida. Uma pessoa que aceite esses quatro selos, ainda que independentemente dos ensinamentos de Buda, ainda que jamais tenha ouvido o nome Buda Sakiamuni, pode ser considerada uma pessoa que segue o mesmo caminho que ele.

A BELEZA DA LÓGICA DOS QUATRO SELOS

Como um exemplo do primeiro selo – a impermanência – considere a generosidade. Quando começamos a compreender a primeira verdade, passamos a enxergar todas as coisas como transitórias e desprovidas de valor, como se pertencessem a um saco de doações destinado ao Exército da Salvação. Não precisamos necessariamente dar tudo o que possuímos, mas não temos nenhum apego ao que possuímos. Quando enxergamos que os nossos bens são todos fenômenos compostos e impermanentes, que não podemos ficar agarrados a eles para sempre, a generosidade já está praticamente consumada.

Ao compreender o segundo selo, que diz que todas as emoções são sofrimento, passamos a ver que o principal culpado, o avarento, é o eu, pois ele nada tem a nos dar, a não ser uma sensação de pobreza. Portanto, se não nos apegamos ao eu, não há motivo para nos apegar aos nossos bens; assim, a dor da avareza desaparece. A generosidade passa a ser um ato de alegria.

Ao entender o terceiro selo, que diz que todas as coisas são desprovidas de existência intrínseca, vemos a futilidade do apego, porque todas as coisas às quais nos agarramos não têm uma natureza verdadeira. É como sonhar que você está distribuindo um bilhão de dólares para desconhecidos na rua. Você pode dar com generosidade, já que é dinheiro de sonho; ainda assim, você consegue colher todo o prazer que a experiência oferece. A generosidade baseada nessas três visões, inevitavelmente, nos leva à compreensão de que não há uma meta. Ela não é um sacrifício que suportamos a fim de obter reconhecimento ou assegurar um renascimento melhor.

A generosidade sem expectativas, sem cobranças, sem uma etiqueta de preço, oferece um vislumbre da quarta visão: a verdade de que a liberação, a iluminação, está além dos conceitos.

Se formos medir a perfeição de um ato virtuoso, como a generosidade, por parâmetros materiais – quanto de pobreza foi eliminada -, nunca chegaremos à perfeição. A miséria e os desejos dos miseráveis nunca têm fim. Mesmo os desejos dos ricos nunca têm fim; na realidade, os desejos dos seres humanos jamais poderão ser plenamente satisfeitos. De acordo com Sidarta, porém, a generosidade deve ser medida pelo grau de apego à coisa dada e ao eu que está dando. Ao perceber que o eu e tudo que ele possui é impermanente e desprovido de natureza verdadeira, nos desapegamos, e essa é a generosidade perfeita. Por isso, o primeiro ato que é recomendado nos sutras budistas é a prática da generosidade.

UMA COMPREENSÃO MAIS PROFUNDA DO CARMA, DA PUREZA E DA NÃO-VIOLÊNCIA

O conceito de carma é, inegavelmente, a marca registrada do budismo e também se enquadra nessas quatro verdades. Quando as causas e condições se aglutinam e não há obstáculos, as conseqüências se manifestam. A conseqüência é o carma. Esse carma é colhido pela consciência – a mente ou o eu. Se a ação do eu é motivada por ganância ou raiva, é criado carma negativo. Se um pensamento ou ação brota do amor, da tolerância e do desejo de que o outro seja feliz, é criado carma positivo. No entanto, a motivação e a ação – assim como o carma que delas decorre – são, em essência, como um sonho, uma ilusão. A transcendência do carma, quer positivo ou negativo, é o nirvana. Qualquer “boa ação” que não seja baseada nessas quatro visões é só uma ação moralmente correta; não é, em última análise, o caminho de Sidarta. Ainda que você dê de comer a todos os seres famintos do mundo, se a sua ação for completamente alienada dessas quatro visões, ela será um mero gesto benfazejo, não o caminho da iluminação. Na verdade, pode ser um ato moralmente correto destinado a alimentar e sustentar o ego.

É por causa dessas quatro verdades que os budistas têm a possibilidade de praticar a purificação. Se uma pessoa acredita que carrega as manchas do carma negativo, ou que é fraca ou “pecadora”, e isso a deixa frustrada, porque ela imagina que esses obstáculos se interponham ao caminho da realização, essa pessoa pode encontrar conforto ao saber que os obstáculos são compostos e, portanto, impermanentes e passíveis de purificação. Por outro lado, se uma pessoa sente que lhe falta capacidade ou mérito, pode encontrar conforto ao saber que o mérito pode ser acumulado por meio da prática de boas ações, pois a falta de mérito é impermanente e, portanto, mutável.

A prática budista da não-violência não se resume a uma postura de submissão com um sorriso nos lábios, nem a uma postura de mansidão ponderada. A causa fundamental da violência é a fixação a uma idéia extremada – por exemplo, uma noção de justiça ou moralidade. Essa fixação em geral vem do hábito de aceitar, sem crítica, visões dualistas como bom e ruim, bonito e feio, moral e imoral. Uma atitude inflexível dessas, própria de um dono da verdade, toma todo o espaço que permitiria a empatia com os outros. Perde-se a sanidade. A compreensão de que todas essas visões ou valores são compostos e impermanentes, assim como o é a pessoa que os manifesta, afasta a violência. Se não há apego ao eu, se o ego não está presente, nunca há motivo para violência. Quando entendemos que os nossos inimigos vivem sob a poderosa influência da ignorância e da raiva, que são prisioneiros de seus hábitos, é mais fácil perdoar comportamentos e ações que nos irritam. Do mesmo modo, se somos insultados por um louco que vive num asilo, não há motivo para a raiva. Quando a crença nos fenômenos dualistas e seus extremos é transcendida, as causas da violência são transcendidas.

OS QUATRO SELOS: UM PACOTE COMPLETO

No budismo, qualquer ação que instaure ou promova as quatro visões constitui um caminho acertado. Mesmo práticas aparentemente ritualistas, como acender incenso, cantar mantras ou fazer meditações esotéricas, buscam nos ajudar a focar a atenção em uma ou mais dessas verdades.

Qualquer coisa que contradiga as quatro visões, inclusive um ato que possa parecer amoroso e compassivo, não faz parte do caminho. Mesmo a meditação sobre a vacuidade passa a ser pura negação, nada mais do que um caminho niilista, quando não se coaduna às quatro verdades.

Para efeito de comunicação, podemos dizer que essas quatro visões formam a espinha dorsal do budismo. Nós as chamamos de “verdades” porque são meros fatos. Não são fabricadas; não são uma revelação mística feita por Buda. Elas não ganharam validade só depois que Buda começou a ensinar. Viver de acordo com esses princípios não é um ritual ou uma técnica. Eles não se enquadram na moral nem na ética; não são propriedade de ninguém nem podem ser patenteados. No budismo, não temos a figura do “infiel” ou “blasfemo” porque não há ninguém a quem ser fiel, a quem insultar ou de quem duvidar. Entretanto, aqueles que não têm conhecimento desses quatro fatos, ou que não acreditem neles, são considerados ignorantes pelos budistas. Essa ignorância não é causa para julgamento moral. Um cientista não chamaria de blasfema uma pessoa que não acredite que o homem pousou na Lua, ou que pense que a Terra é plana – chamaria apenas de ignorante. Do mesmo modo, se ela não acredita nesses quatro selos, não é infiel. De fato, se alguém apresentar prova de que a lógica dos quatro selos é falha, de que o apego ao eu não equivale a sofrimento ou de que algum elemento desafia a impermanência, os budistas, de bom grado, passarão a seguir esse novo caminho. Isso por que o que nós buscamos é a iluminação, e iluminação significa compreensão da verdade. Até hoje, porém, ao longo de todos esses séculos, nenhuma prova surgiu que pudesse invalidar os quatro selos.

Se você ignora os quatro selos, mas insiste em se considerar budista unicamente por ter um caso de amor com as tradições, essa é uma devoção superficial. Os mestres budistas acreditam que, independentemente de como uma pessoa se defina, a menos que ela tenha fé nas quatro verdades continuará a viver em um mundo ilusório, que ela acredita, porém, ser sólido e real. Embora essa crença ofereça temporariamente o doce embalo da ignorância, acaba sempre por levar a alguma forma de ansiedade. A pessoa, então, gasta todo o seu tempo resolvendo problemas e tentando se livrar da ansiedade. A constante necessidade de resolver problemas se transforma numa dependência. Quantos problemas você já resolveu, apenas para ver outros aparecerem? Se você está contente com esse ciclo, então não há do que se queixar. Mas, quando você vê que a solução de problemas nunca tem fim, esse é o começo da busca por uma verdade interior. O budismo não é a resposta para todos os problemas leigos e injustiças sociais do mundo; se você, porém, está num momento de busca, e se existe uma química entre você e Sidarta, essas verdades podem vir a calhar. Sendo esse o caso, você deveria considerar com seriedade seguir por esse caminho.

RIQUEZA EM MEIO À RENÚNCIA

Como seguidor de Sidarta, você não precisa necessariamente imitar todos os atos dele – não precisa escapulir enquanto sua mulher dorme. Muitas pessoas pensam que o budismo é sinônimo de renúncia: deixar para trás casa, família e trabalho para seguir um caminho de asceticismo. Essa imagem de austeridade deve-se, em parte, ao fato de um grande número de budistas reverenciarem os mendicantes descritos nos textos e ensinamentos budistas, assim como os cristãos admiram São Francisco de Assis. Não há como se impressionar com a imagem de Buda caminhando descalço pelas ruas de Magadha, pedindo esmolas com sua tigela, ou Milarepa em sua caverna, subsitindo à base de sopa de urtiga. A serenidade de um humilde monge birmanês ao aceitar esmolas cativa a nossa imaginação.

Há, porém, um tipo completamente diferente de seguidor de Buda: o rei Ashoka, por exemplo, que desceu de sua carruagem real, adornada de ouro e pérolas, e proclamou o desejo de propagar o darma de Buda por todo o mundo. Ele se ajoelhou, apanhou um punhado de areia e declarou que construiria um número de estupas igual o número de grãos de areia em sua mão. E, de fato, ele manteve a promessa. Portanto, alguém pode ser rei, comerciante, prostituta, viciado em heroína, diretor de empresa e, ainda assim, aceitar os quatro selos. Essencialmente, não é o ato de deixar o mundo material para trás que nós budistas cultuamos; antes, é a capacidade de enxergar os padrões habituais do apego a este mundo e à nossa pessoa, bem como a capacidade de renunciar a esse apego.

À medida que começamos a compreender as quatro visões, não nos desfazemos necessariamente das nossas coisas; começamos, sim, a mudar de atitude em relação a elas, modificando assim seu valor. Só porque você tem menos do que uma outra pessoa não significa que você tenha maior virtude ou pureza moral. Na verdade, a própria humildade pode ser uma forma de hipocrisia. Quando compreendemos que o mundo material é impermanente e desprovido de essência, a renúncia deixa de ser uma forma de auto flagelação. Não significa que estamos sendo duros com nós mesmos. A palavra sacrifício adquire um significado diferente. Munidos desse entendimento, tudo passa a ter para nós um significado semelhante à saliva que cuspimos no chão. Não temos nenhum sentimentalismo em relação à saliva. A perda desse sentimentalismo é um caminho de sublime felicidade, sugata. Quando a renúncia é entendida como felicidade, as histórias de muitos outros príncipes, princesas e chefes guerreiros indianos, que outrora renunciaram à vida palaciana, tornam-se menos bizarras.

Esse amor pela verdade e reverência por aqueles que buscam a verdade é uma antiga tradição em países como a Índia. Ainda hoje, em vez de menosprezar os renunciantes, a sociedade indiana os reverencia com o mesmo respeito que reverenciamos os professores de universidades de prestígio como Harvard e Yale. Embora a tradição esteja desaparecendo nesta era em que impera a cultura corporativa, podemos ainda encontrar sadhus nus, cobertos de cinzas, que deixaram para trás carreiras como advogados bem-sucedidos para tornarem-se mendicantes errantes. Fico tocado ao ver como a sociedade indiana respeita essas pessoas, em vez de enxotá-las como pedintes deploráveis ou como uma praga. Não consigo deixar de imaginá-los no Hotel Marriott em Hong Kong. Diante desses sadhus cobertos de cinzas, como se sentiriam os novos-ricos chineses, que tentam desesperadamente copiar os modos ocidentais? Será que o porteiro abriria a porta para que eles entrassem? E como reagiria o gerente do Hotel Bel-Air em Los Angeles? Em vez de cultuar a verdade e venerar sadhus, esta é uma era em que os outdoors são cultuados e a lipoaspiração é venerada.

ABRAÇAR A SABEDORIA, DESCARTAR VISÕES DISTORCIDAS DE MORALIDADE

Ao ler estas linhas, você pode estar pensando, Sou generoso; não tenho tanto apego assim às minhas coisas. Pode ser verdade que você não seja pão-duro; mas, se no meio dos seus atos de generosidade alguém pegar o seu lápis favorito, você pode ficar furioso a ponto de querer arrancar a orelha da pessoa. Ou você pode ficar completamente desgostoso se alguém lhe disser: “Mas isto é tudo o que você pode dar?” Quando damos alguma coisa, ficamos presos à noção de “generosidade”. Nos apegamos ao resultado: se não conquistarmos um bom renascimento, pelo menos esperamos reconhecimento nesta vida ou, quem sabe, uma placa na parede. Também já encontrei muitas pessoas que se consideram generosas simplesmente porque deram dinheiro para um certo museu ou mesmo para os filhos, de quem esperam uma vida inteira de dedicação.

Quando não vem acompanhada das quatro visões, a moral pode, igualmente, ficar distorcida. A moral alimenta o ego, o que nos predispõe ao puritanismo e a julgar aqueles cuja moral difere da nossa. Fixados em nossa versão de moralidade, fazemos pouco dos outros e tentamos impor a eles nossa ética, mesmo que isso signifique privá-los de liberdade. O grande sábio e santo indiano Shantideva, ele próprio um príncipe que renunciou a seu reino, ensinou que é impossível evitarmos, tudo o que seja nocivo; no entanto, se conseguirmos aplicar apenas uma dessas quatro visões, estaremos protegidos de toda não-virtude. Se você acreditar que todo o Ocidente é de certo modo satânico ou imoral, será impossível conquistar e reabilitar metade do mundo, mas, se você é tolerante, isso em si já é a conquista. Você não pode aplainar toda a Terra para caminhar confortavelmente com os pés descalços, mas, ao calçar sapatos, você fica protegido das superfícies ásperas e irregulares.

Quando conseguimos compreender as quatro visões, não só no nível intelectual, mas também no nível das nossas experiências, começamos a nos libertar da fixação em coisas que são ilusórias. Essa sabedoria é o que chamamos de liberdade. Os budistas veneram a sabedoria acima de tudo. A sabedoria ultrapassa a moral, o amor, o bom senso, a tolerância e o vegetarianismo. Ela não é um espírito divino que buscamos em algum lugar lá fora. Nós a invocamos, em primeiro lugar, ouvindo os ensinamentos sobre os quatro selos – não os aceitando por seu valor de face, mas, sim, os analisando e contemplando. Se você estiver convencido de que esse caminho pode afastar um pouco da sua confusão e lhe proporcionar algum alívio, você pode, então, pôr a sabedoria em prática.

Em um dos métodos de ensino mais antigos do budismo, o mestre dá ao discípulo um osso, instruindo-o a contemplar sua origem. Por meio dessa contemplação, o discípulo acaba por ver o osso como o resultado final do nascimento, o nascimento como o resultado final das formações cármicas, as formações cármicas como o resultado final do desejo e assim por diante. Uma vez plenamente convencido da lógica de causa, condição e efeito, ele começa a trazer um estado desperto de consciência para todas as situações e momentos. Isso é o que chamamos de meditação. Aqueles que são capazes de nos trazer esse tipo de informação e de compreensão são venerados como mestres, porque, apesar de sua profunda realização e do fato de que poderiam se retirar para uma vida feliz numa floresta, estão dispostos a permanecer entre nós e explicar a visão do budismo àqueles que ainda vivem em meio à escuridão. Dado que essa informação nos liberta de todo tipo de tropeços desnecessários, automaticamente temos apreço pela pessoa que nos oferece as explicações. Assim, nós, budistas, prestamos homenagem ao professor.

Uma vez que tenha aceitado intelectualmente a visão do budismo, a pessoa pode usar qualquer método que sirva para aprofundar seu entendimento e realização. Em outras palavras, pode se valer de qualquer técnica ou prática que contribua para transformar o hábito de pensar que as coisas são sólidas no hábito de vê-las como compostas, interdependentes e impermanentes. Essa é a verdadeira prática e meditação budistas – não apenas ficar sentado sem se mexer, como um pedaço de pau.

Embora possamos saber intelectualmente que um dia vamos morrer, esse conhecimento pode ser ofuscado por algo tão pequeno quanto um elogio casual. Alguém comenta como são graciosos os nossos dedos, e, quando nos damos conta, já estamos tentando encontrar um jeito de preservar os nossos dedos. De repente, sentimos que temos algo a perder. Hoje em dia, somos constantemente bombardeados por tantas coisas novas que podemos perder, e por tantas outras que podemos ganhar. Mais do que nunca, precisamos de métodos que nos ajudem a lembrar da visão correta e a nos acostumar a ela, talvez até pendurando um osso humano no espelho retrovisor, se não for o caso de raspar a cabeça e se retirar para uma caverna. Combinadas a esses métodos, a ética e a moral tornam-se úteis. A ética e a moral podem ser secundárias no budismo, mas passam a ser importantes quando nos aproximam da verdade. No entanto, mesmo que uma ação pareça salutar e positiva, se ela nos afastar das quatro verdades, o próprio Sidarta recomendou que a deixássemos de lado.

O CHÁ E A XÍCARA: A SABEDORIA EM MEIO À CULTURA

Os quatro selos são como o chá, ao passo que todos os demais meios utilizados para implementar essas verdades – práticas, rituais, tradições e roupagem cultural – são como a xícara. Instrumentos e métodos são observáveis e tangíveis, mas a verdade não. O desafio está em não se deixar levar pela xícara. As pessoas estão mais dispostas a sentar eretas sobre uma almofada de meditação, em um lugar quieto, do que a contemplar o que chegará primeiro, o dia de amanhã ou a próxima vida. As práticas externas são visíveis, de modo que a mente logo as rotula como budismo; já o conceito “todas as coisas compostas são impermanentes” não é tangível e, portanto, é difícil de rotular. Apesar da evidência de que tudo que nos cerca é impermanente, é irônico que não possamos ver o óbvio.

A essência do budismo está além da cultura, embora ele seja praticado por muitas culturas diferentes, as quais usam suas tradições como uma xícara para conter os ensinamentos. Se os elementos dessa roupagem cultural ajudassem os outros seres sem lhes causar mal, e se não contradissessem as quatro verdades, Sidarta incentivaria tais práticas.

Ao longo dos séculos, diversos tipos e estilos de xícaras foram produzidos; entretanto, por melhor que seja a intenção por trás delas e por melhor que funcionem, as xícaras passam a ser um empecilho se esquecermos o chá. Embora sua finalidade seja conter a verdade, tendemos a nos focar no meio e não no resultado. Por isso, as pessoas andam por aí com xícaras vazias, ou esquecem de tomar o chá. Nós, seres humanos, podemos ficar encantados, ou pelo menos distraídos, com as cerimônias e cores das práticas criadas pelas culturas budistas. Incensos e velas são exóticos e atraentes; já a impermanência e a inexistência do eu, não. O próprio Sidarta afirmou que a melhor forma de culto é a simples lembrança do princípio da impermanência, do sofrimento ligado às emoções, da ausência de existência intrínseca dos fenômenos, e do fato de que o nirvana transcende os conceitos.

Superficialmente, o budismo pode parecer ritualista e religioso. Disciplinas budistas, como vestes cor de vinho, rituais e objetos rituais, incenso e flores, até mesmo monastérios, têm forma – podem ser observados e fotografados. Esquecemos que são meios que levam a um fim. Esquecemos que uma pessoa não se torna seguidora de Buda porque faz rituais ou observa certas disciplinas, como ser vegetariano ou usar vestes religiosas. A mente humana, porém, adora símbolos e rituais, a tal ponto que são quase inevitáveis e indispensáveis. As mandalas de areia tibetanas e os jardins zen japoneses são belos; podem nos inspirar e ser, mesmo, uma via para a compreensão da verdade. Mas a verdade, ela própria, não é bela nem não-bela.

Embora seja provável que possamos passar sem coisas como chapéus vermelhos, chapéus amarelos e chapéus pretos, alguns rituais e disciplinas são universalmente recomendados. Não se pode dizer, de modo categórico, que seja errado meditar deitado numa rede, segurando um drinque enfeitado com um pequeno guarda-chuva, se a pessoa estiver contemplando a verdade. Mas antídotos como sentar com as costas eretas trazem grandes benefícios, com certeza. Uma postura correta não só é acessível e econômica, como também tem o poder de roubar nossas emoções de seus rápidos reflexos habituais, que nos engolfam e nos lançam à deriva. Ela abre um pouco de espaço para a sobriedade. Certos outros rituais institucionalizados, tais como cerimônias em grupo e estruturas religiosas hierarquizadas, podem trazer alguns benefícios, mas vale notar que já foram alvo do sarcasmo dos mestres do passado. Tenho para mim que esses rituais são o motivo pelo qual muitos no Ocidente categorizam o budismo como uma seita, muito embora não exista o menor traço do que se poderia chamar de seita nas quatro verdades.

Agora que o budismo está florescendo no Ocidente, ouço falar de pessoas que estão alterando os ensinamentos budistas para enquadrá-los na forma de pensar dos tempos modernos. Se há algo a ser adaptado, são os rituais e símbolos, não a verdade em si. O próprio Buda afirmou que sua disciplina e métodos deveriam ser adaptados, de modo apropriado, a diferentes épocas e lugares. Mas as quatro verdades não precisam ser atualizadas nem modificadas; de qualquer modo, seria impossível fazê-lo. Pode-se trocar a xícara, mas o chá permanece puro. Depois de sobreviver por 2.500 anos e viajar 12.430.059 metros desde a árvore bodhi, na Índia central, até Times Square, em Nova York, o conceito “todas as coisas compostas são impernanentes” continua a se aplicar. A impermanência continua a ser impermanência na Times Square. Não há como torcer essas quatro regras; não há exceções sociais ou culturais.

Diferentemente de algumas religiões, o budismo não é um kit de sobrevivência para a vida, que dita quantos maridos uma mulher deve ter, onde pagar impostos ou como punir os ladrões. Na verdade, os budistas, a rigor, não têm um ritual para a cerimônia do casamento. O propósito do ensinamento de Sidarta não foi dizer às pessoas aquilo que elas queriam ouvir. Ele ensinou movido pelo forte impulso de libertá-las de suas concepções equivocadas e de sua infindável falta de compreensão da verdade. Entretanto, para explicar essas verdades de modo eficaz, Sidarta ensinou por diferentes modos e meios, de acordo com a necessidade de suas diferentes platéias. Essas diferentes formas de ensinamento são hoje rotuladas como as diferentes “escolas” do budismo. A visão fundamental de todas as escolas, porém, é a mesma.

É normal que as religiões tenham um líder. Algumas, como a Igreja Católica Romana, têm uma hierarquia elaborada, liderada por uma figura todo-poderosa, encarregada de tomar decisões e formular julgamentos. Contrariamente à crença popular, não existe no budismo uma figura ou instituição desse tipo. O Dalai-Lama é um líder laico para a comunidade budista que vive no exílio, e um mestre espiritual para muitas pessoas em todo o mundo, mas não necessariamente para todos os budistas. Não há uma autoridade com poder de decidir quem é e quem não é um verdadeiro budista, no que diz respeito a todas as formas e escolas de budismo que existem no Tibete, Japão, Laos, China, Coréia, Cambodia, Tailândia, Vietnã e no Ocidente. Ninguém tem o poder de determinar quem deve e quem não deve ser punido. Essa falta de um poder central pode gerar caos, mas é também uma bênção, pois toda fonte de poder, em todas as instituições humanas, é corrompível.

O próprio Buda afirmou: “Tu és senhor de ti mesmo.” É claro que, se um mestre erudito se dispõe a nos apresentar a verdade, somos seres bem-afortunados. Em alguns casos, esses mestres devem ser reverenciados ainda mais do que Buda pois, embora milhares de budas possam vir, é essa pessoa que traz a verdade até a nossa porta. Encontrar um guia espiritual é algo que está inteiramente nas nossas mãos. Temos toda liberdade para analisá-lo. Quando nos damos por convencidos da autenticidade do mestre, aceitá-lo, suportá-lo e desfrutá-lo passa a fazer parte da nossa prática.

O respeito é muitas vezes confundido com fervor religioso. Devido a aparências externas inevitáveis e também à falta de tato de alguns budistas, quem vê do lado de fora pode pensar que estamos adorando Buda e os mestres da linhagem como se fossem deuses.

Caso você esteja se perguntando como decidir qual caminho é o certo, basta lembrar que todo caminho que não contradiga as quatro verdades deve ser visto como um caminho seguro. Em última análise, os guardiões do budismo não são os mestres graduados, mas, sim, as quatro verdades.

Faltam-me palavras para enfatizar o quanto a compreensão da verdade é o aspecto mais importante do budismo. Durante séculos, estudiosos e pensadores tiraram pleno proveito do convite feito por Sidarta para que analisassem seus achados. Centenas de livros que esquadrinharam e debateram suas palavras são testemunho disso. De fato, a pessoa que se interessa pelo budismo é encorajada a explorar todas as suas dúvidas, sem correr o risco de ser rotulada de blasfema. Incontáveis pessoas inteligentes começaram por respeitar a sabedoria e a visão de Sidarta e só depois manifestaram sua confiança e devoção. É por essa razão que, outrora, príncipes e ministros não pensaram duas vezes antes de abandonar seus palácios em busca da verdade.

Texto extraído do livro “O que faz você ser budista?“, de Dzongsar Khyentse Rinpoche, Editora Pensamento (Brasil). A versão em português de Portugal da Editora Lua de Papel chama-se: O que não faz de ti um budista; a versão inglesa da Editora Shambhala chama-se What makes you not a buddhist.

Veja também:

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Sobre Tsering Paldron, Dzongsar Khyentse Rinpoche

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