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Crentes no karma acreditam que coisas más só acontecem a pessoas más, mas isso é uma compreensão incorreta

De acordo com um estudo publicado pela Associação Americana de Psicologia na revista Psychology of Religion and Spirituality, a maioria das pessoas que acreditam no karma acham que coisas más só acontecem a pessoas más. Neste artigo vamos conhecer mais sobre esse estudo e a perspetiva budista.

Os investigadores pediram a mais de 2.000 pessoas de várias origens religiosas e não religiosas que escrevessem sobre as suas experiências com o karma, tendo se percebido nas suas respostas uma linha comum. Quando os participantes escreveram sobre si próprios, 59% contaram histórias de serem recompensados pelas suas boas ações. Já nas histórias sobre os outros, 92% contaram como o infortúnio se abateu em parceiros traidores, rufias e colegas de trabalho.

Cindel White, a autora principal do estudo, afirma que: “Pensar no karma permite que as pessoas assumam o crédito e sintam orgulho nas coisas boas que lhes acontecem, mesmo quando não se sabe exatamente o que fizeram para criar o bom resultado. Mas também permite que as pessoas vejam o sofrimento de outras pessoas como uma retribuição justificada.”

White, que estuda a forma como os motivos psicológicos interagem com a espiritualidade, diz que os resultados ajudam a compreender como as nossas mentes formam juízos sobre nós próprios e sobre os que nos rodeia.

Entre as respostas dos participantes são encontradas afirmações como:

“Acredito firmemente em fazer doações de caridade aos mais necessitados, por mais pequenas que sejam. Ao fazê-lo, beneficiou-me muito e, ocasionalmente, levou a que as pessoas me fizessem favores sem pedir.”

“Conheci um tipo que era sempre rude e cruel para toda a gente; nunca fez nada de bom durante toda a sua vida. Foi-lhe diagnosticado um cancro e eu não pude deixar de pensar que era o karma”.

O estudo identifica a tendência para nos vermos como merecedores de boa sorte, mesmo na ausência de causas diretas, como uma forma de “enviesamento de atribuição”, um conceito que tem sido estudado por psicólogos durante décadas.

“A teoria da atribuição e os preconceitos de atribuição, são a ideia geral de que as pessoas atribuem certas coisas que lhes acontecem a elas ou a outras pessoas de acordo com formas que as fazem sentir bem consigo próprias”, considera Patrick Heck, um psicólogo investigador da Consumer Financial Protection Bureau que não esteve envolvido no estudo.

Em certos casos, o preconceito de atribuição funciona como uma estratégia para fortalecer a autoestima, o que pode ajudar as pessoas a lidar com os desafios da vida, explica White. No entanto, em outras situações, esse viés pode afastá-las do rumo certo, ao ignorarem as contribuições alheias ou os fatores externos que influenciam o sucesso. Por outro lado, a ideia de que o sofrimento alheio é uma forma de punição nasce da necessidade humana de acreditar num mundo justo. Segundo Heck, essa crença pode servir como uma maneira de lidar com a complexidade da vida.

Cindel White revelou que a sua próxima pesquisa irá investigar como as crenças relacionadas ao karma influenciam a tomada de decisões. Patrick Heck acrescenta que preconceitos baseados em crenças podem ter impactos concretos, sobretudo em áreas como a formulação de políticas públicas e o sistema de justiça.

Segundo Yudit Jung, professora de psicologia na Universidade Emory, preconceitos sociais como racismo e classismo muitas vezes se baseiam na ideia de que certos grupos são “inferiores” por terem agido de forma socialmente inaceitável — o que afeta tanto o tratamento recebido quanto a disposição em ajudar. Jung, que também atua como psicanalista, acredita que esses preconceitos são comuns e funcionam como mecanismos de defesa, enraizados na infância e no desejo de segurança.

“Trabalho muito com os pacientes para (desenvolver) compaixão e um sentido de humanidade partilhada, reconhecendo que somos todos uma mistura de bom e mau. Não se trata de influenciar a religião. Trata-se da ética básica de um paciente,” declara Jung.

Referência: CNN Portugal.

Perspectiva budista

O conceito do karma pode variar entre as diferentes tradições espirituais, mas do ponto de vista budista, essa compreensão do karma é incorreta e simplista. Na realidade, já no tempo do Buda existia esse entendimento erróneo.

No Sīvaka Sutta (SN 36.21), o errante Moliyasivaka pergunta ao Buda: “Mestre Gotama, há alguns contemplativos e brâmanes que possuem esta doutrina e entendimento: ‘Tudo aquilo que uma pessoa experimentar, quer seja prazer, dor, ou nem dor, nem prazer, tudo é causado pelas ações passadas.’ Agora, o que o Mestre Gotama diz disso?”

O Buda responde enumerando diversas causalidades, tais como:

  1. Desequilíbrios biliares
  2. Desequilíbrios fleumáticos
  3. Desequilíbrios de vento
  4. Combinação destes
  5. Mudanças climáticas
  6. Comportamento descuidado
  7. Violência externa
  8. Resultados kármicos

Esse tipo de causas têm que ser entendidos dentro do contexto da época, por exemplo os desequilíbrios humorais (bile, fleuma, vento) podem ser entendidos hoje como condições médicas, genéticas e biológicas. O ponto aqui é que, nem tudo o que experimentamos é resultado do karma passado, o karma é apenas uma das múltiplas causas possíveis com relação ao que experienciamos.

O Buda termina dizendo:

“Agora quando esses contemplativos e brâmanes possuem esta doutrina e entendimento: ‘Tudo aquilo que uma pessoa experimentar, quer seja prazer, dor ou nem dor, nem prazer, tudo é causado pelas ações passadas,’ então eles vão além daquilo que conhecem por si mesmos e daquilo que é aceito no mundo como verdadeiro. Portanto, eu digo que esses contemplativos e brâmanes estão equivocados.”

A relação entre ações e resultados por vezes pode ser direta, mas muitas vezes é amplamente complexa. Uma pessoa pode ter feito tanto ações hábeis quanto inábeis, e os resultados podem amadurecer em diferentes momentos. Pessoas boas podem experimentar resultados difíceis de karmas passados, enquanto pessoas que agem de forma inábil podem ainda estar experimentando resultados positivos de boas ações anteriores.

Se no Cūḷakammavibhaṅga Sutta (MN 135) o Buda detalha relações causais mais diretas, no Mahākammavibhaṅga Sutta (MN 136) o Buda revela as sutis complexidades na atuação do karma.

É importante entender que o karma, ou mais precisamente karma-vipaka, não é um sistema de punição e recompensa, não é determinista, é um processo emaranhado de causa e efeito que opera junto com outras leis naturais.

Sendo uma teia complexa de causas e condições em que muitas variáveis estão presentes, para seres não esclarecidos fica na maioria das vezes praticamente impossível asseverar que o que determinada pessoa está a experienciar è devido especificamente a uma ação concreta e identificável. No Acintita Sutta (AN 4.77), o Buda lista o karma como um dos 4 não conjeturáveis, advertindo que tentar compreender completamente os detalhes precisos do karma é uma loucura.

Essa visão simplista de “coisas más só acontecem a pessoas más” pode levar à falta de compaixão e ao julgamento incorreto, contradizendo os ensinamentos do Buda sobre karuna (compaixão) e metta (amor-bondade).

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