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A poesia de Fernando Pessoa e o Budismo Zen

"Tende a predominar nos estudos pessoanos a tese da afinidade entre a poesia de Alberto Caeiro e o budismo Zen, destacando-se como excepção a justa análise de Richard Zenith (1999), que mostra bem várias diferenças entre Caeiro e o Zen, sendo a principal, a nosso ver, que o poeta português se interessa mais pela natureza do que pelo satori ou iluminação."

[Vídeo-Palestra] A poesia de Fernando Pessoa e a desconstrução budista da noção de «eu» | Paulo Borges

A tese da afinidade entre a poesia de Alberto Caeiro e o budismo Zen | Paulo Borges

(Excerto de: As coisas são coisas? Alberto Caeiro e o Zen)

Tende a predominar nos estudos pessoanos a tese da afinidade entre a poesia de Alberto Caeiro e o budismo Zen, destacando-se como excepção a justa análise de Richard Zenith (1999), que mostra bem várias diferenças entre Caeiro e o Zen, sendo a principal, a nosso ver, que o poeta português se interessa mais pela natureza do que pelo satori ou iluminação. A tese surgiu antecipadamente avalizada com o prestígio de autoridades internacionais como D. T. Suzuki (apud ALMEIDA, 1986) e Thomas Merton (1966). Onésimo Teotónio Almeida (1986) deu conta de como o segundo, um eminente contemplativo católico muito interessado pela espiritualidade oriental e Zen em particular, deu a conhecer alguns poemas por si traduzidos de O Guardador de Rebanhos a D. T. Suzuki, o grande divulgador do Zen no Ocidente, e este reconheceu “uma grande qualidade zen” na poesia caeiriana. O mesmo Onésimo Teotónio Almeida refere outros nomes que apontam na mesma direcção – Leyla Perrone-Moisés (2008: 924; notamos todavia as reservas desta), Armando Martins Janeira e Helena Barros – e conclui inequivocamente: “De qualquer modo, Caeiro é um poeta Zen”.

Entre outros, como Cristina Zhou Miao (2013), que considera que a “qualidade zen” de Caeiro vem de uma reacção à filosofia de Kant e Schopenhauer, também José Eduardo Reis (2007) e Julieta Marques de Almeida (2007) dedicaram à questão estudos bem fundamentados e argumentados que apontam a mesma afinidade, embora seja de notar que nenhum destes três intérpretes teve em conta a leitura diversa de Richard Zenith. O primeiro (2007: 336-337), profundo conhecedor do Zen, considera que muitos dos versos de Caeiro são “uma ilustração poética de uma experiência do mundo aquém dos mecanismos habituais da sua comum representação, de uma experiência directa da realidade tangível que tem como correlato um estado de plena consciência definido negativamente no Budismo Zen por não-mente” ou pelo menos “um estado meta- intelectual em que a coexistência do ser, do ver e do agir predominam sobre a representação conceptual do mundo”. Neste sentido, a sabedoria entrevista em Caeiro seria “congenial” com a prajñā budista, a sabedoria da consciência desperta ou iluminada, que vê as coisas tal qual são, “libertas ou desembaraçadas de reconfigurações conceptuais e vazias de natureza própria” (REIS, 2007: 339). Já Julieta Marques de Almeida (2007: 349) defende que a “paz caeiriana” vem do “conhecimento da vacuidade” que o poeta “encontra precisamente quando procura a essência das coisas”. Ambos os intérpretes estabelecem assim um íntimo nexo entre a experiência de Caeiro e a experiência central do Despertar búdico, a compreensão vivencial de śūnyatā, termo sânscrito traduzido habitualmente como “vacuidade”. Reconhecendo a aparente pertinência de muitas das proximidades apontadas entre Caeiro e o Zen, gostaríamos todavia de submeter a tese desta afinidade a uma investigação conduzida precisamente pela intenção de averiguar até que ponto se pode encontrar realmente uma experiência da vacuidade na obra do heterónimo pessoano. Para o efeito, comecemos por ver o que significa esta em contexto budista. Continue a ler…


“Um dia de chuva é tão belo como um dia de sol.
Ambos existem; cada um como é.”
– Alberto Caeiro, in “Poemas Inconjuntos”
Heterónimo de Fernando Pessoa

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Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.
Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma
Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.
Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.
– Alberto Caeiro, in “Poemas Inconjuntos”
Heterônimo de Fernando Pessoa

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Não sei quantas almas tenho

Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem,
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: “Fui eu?”
Deus sabe, porque o escreveu.
– Fernando Pessoa, in Novas Poesias Inéditas.


Mais informações e documentos (links externos):


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