Opinião e Perspetivas

A polémica com o Dalai Lama: um beijo perturbador ou um mal entendido?

Dias atrás rebentou uma polémica com o Dalai Lama. Num evento público em que o Dalai Lama dá uma palestra em Dharamsala, Índia, uma criança pede um abraço ao Dalai Lama, a criança é abraçada e o Dalai Lama dá-lhe um selinho, mostrou-lhe a língua e pediu-lhe que a chupasse (de referir que não houve qualquer chupão nem contacto de língua). Um vídeo desse momento ocorrido em Fevereiro tornou-se viral esta semana e chocou muitas pessoas no mundo, principalmente nos países Ocidentais.

O gabinete do Dalai Lama emitiu um comunicado* dizendo que: “Sua santidade deseja pedir desculpa ao rapaz e à sua família, bem como aos seus amigos, pela dor que as suas palavras possam ter causado. Sua santidade costuma provocar as pessoas que conhece de maneira inocente e divertida, mesmo diante de público e diante das câmaras”.

O Dalai Lama é respeitado pela generalidade dos budistas, é uma figura inspiradora para muitos budistas e também para não-budistas, mas é preciso frisar que o Dalai Lama não é como um “papa” do budismo ou um representante de todos os budistas. No budismo existem várias vertentes e escolas, e ainda que todas partilhem de um núcleo comum, existem grandes diferenças entre elas em diversos níveis. O Dalai Lama pertence a uma das escolas tibetanas.

Tenho um grande respeito e admiração pelo Dalai Lama, acho que fez um trabalho extraordinário em prol do budismo, mas a meu ver, e é a minha visão pessoal, o Dalai Lama cometeu um erro e esse episódio jamais deveria ter acontecido, ainda que a meu ver tenha sido realmente uma brincadeira inocente. Este artigo lança um pouco de luz sobre o que aconteceu.


Conteúdo:


Línguas de fora e Beijos, uma questão cultural?

É preciso destacar alguns aspetos e analisar o que aconteceu dentro do contexto sociocultural tibetano, e não apenas precipitadamente do ponto de vista Ocidental. Se à primeira vista, e vendo apenas os segundos exatos do ocorrido, pode parecer um acontecimento perturbador, mudando de ponto de vista, talvez o acontecimento se torne mais compreensível.

Aspetos culturais não servem de desculpa para todas as más ações, ainda hoje se espetam ferros em touros por ser um evento cultura, há culturas em que apedrejar homossexuais ou tapar as mulher dos pés à cabeça é a norma. Não é por ser um aspeto cultural que passa a ser aceitável pois há muito sofrimento envolvido. Porém este é um caso diferente, olhando de uma forma mais ampla teremos um melhor entendimento do que aconteceu.

Numa grande parte dos países mostrar a língua pode ser considerado rude, mas não é o caso do Tibete. Nessa região é uma tradição seguida pelo povo tibetano desde o nono século, quando a região era governada por Lang Drama, que era conhecido por ter uma língua preta. Após a morte do rei, os habitantes locais começaram a mostrar as suas línguas quando solicitados para confirmar que não eram como ele (renascimento ou emanação do rei) e que não eram Bon-Po (religião pré-budista), que supostamente tinham a língua negra. O Instituto de Estudos do Leste Asiático, da Universidade da Califórnia, Berkeley, num artigo de 2014, afirma que mostrar a língua é um sinal de respeito ou concordância e era frequentemente usado como cumprimento na cultura tradicional tibetana. Até mesmo no filme “Sete Anos no Tibete” uma cena dessas é retratada.

Quanto ao ato de beijar a boca, isso também acontece em várias culturas e povos sem qualquer conotação sexual, e inclusive como forma de cumprimento ou num momento de despedida. Durante a nossa evolução, era habitual a mãe alimentar os filhos com a boca, essa é provavelmente uma das origens do beijo da boca, um ato que faz parte de muitas culturas, mesmo fora do contexto romântico e sexual, como parece ser o caso da cultura tibetana. Já em algumas outras culturas, apenas um simples beijo na cara pode ser considerado inapropriado.

Numa sociedade hipersexualização mas em muitos aspetos ainda muito conservadora como a nossa, a qualquer coisa pode ser atribuída uma conotação sexual, como no caso de um beijo que pode acontecer sem essa intencionalidade. Eu próprio já presenciei varias vezes mães em público darem um selinho na boca de um filho, sem que isso tivesse gerado alguma acusação de abuso sexual.

Num artigo da Revista Máxima intitulado “Os pais devem beijar os filhos na boca? Está é a opinião dos especialista“, duas psicólogas falam sobre este assunto que divide opiniões. Se é certo ou errado, o leitor ou leitora que tire as suas conclusões, mas como podemos verificar, isso não é algo que acontece só em culturas longínquas da nossa e nem é obviamente necessariamente um abuso sexual. No inicio desse mesmo artigo, é referido e mostrado uma foto do David Beckham beijando a filha Harper de 10 anos, na boca. Esse momento foi partilhado por Beckham no Instagram*, tendo recebido alguns comentários negativos, embora a maioria tenha sido positivos, tais como: “Nada como o amor de um pai pela sua filha!” ou “lamento, mas quem interpretar isto como algo mais que [um beijo de ] família tem problemas sérios que precisa de resolver o mais rapidamente possível!”.

Voltando ao Dalai Lama, dentro desse contexto sociocultural, o Dalai Lama pode ser visto quase como um pai ou um avô, o que pode fazer com que esse episódio não seja assim tão distante como esse exemplo acima entre pai e filha.

Che La Sa: Eu te dei todo o meu amor e o doce, então é isso – tudo o que resta a fazer é, “come a minha língua”

No Facebook, Michael Gregory, acrescentou algo que também é interessante de se saber*:

«Perdido na Tradução: Come a Minha Língua
A frase tibetana “Che La Sa”

Falta um ponto-chave: na cultura tibetana, é comum ver avôs idosos não apenas beijando crianças pequenas, mas também dando um pequeno doce ou pedaço de comida das suas bocas para a das crianças – diretamente de boca em boca. Isso pode não ser a norma da vossa cultura, mas isso é comumente feito.

Depois que o Ancião dá um beijo e um doce, já que não há mais nada na boca deles, nada para dar, eles dirão a frase: “OK, agora come a minha língua” (não chupa, a sua Santidade falou errado devido ao seu ao inglês pouco proficiente).

A frase tibetana é, “Che la sa”, eles dizem isso como, “Eu te dei todo o meu amor e o doce, então é isso – tudo o que resta a fazer é, “come a minha língua”. É uma coisa lúdica que as crianças conhecem. Isso não é realmente feito na região de Lhasa, a capital do Tibete, mas é mais comum na região de Amdo, de onde vem o Dalai Lama. No entanto, é definitivamente um costume tibetano.

Se formos honestos connosco, sabemos que quando formamos uma opinião sobre qualquer assunto, sem considerar muitos aspetos do contexto, em qualquer situação, estamos optando por manter um grau significativo de ignorância no nosso raciocínio.»

Nessa mesma publicação partilhada no Facebook, é ainda acrescentada uma citação sobre perceção, do livro “Essência do Sutra do Coração“, escrito pelo Dalai Lama: “No geral, tendemos naturalmente a confiar nas nossas perceções cotidianas; assumimos a sua validade sem sequer nos ocorrer questioná-las. Acreditamos ingenuamente que a maneira como percebemos as coisas é idêntica à maneira como as coisas são. E assim, porque eventos e coisas, incluindo o Eu, parecem ter realidade objetiva, concluímos, tacitamente e muitas vezes sem nenhuma reflexão, que elas de fato têm uma realidade objetiva. Somente através do processo de análise cuidadosa podemos ver que não é assim, que as nossas perceções não refletem com precisão a realidade objetiva.”

Estes foram provavelmente os aspetos culturais que levaram ao Dalai Lama a ter esse tipo de brincadeira.

Os abusos sexuais a crianças ocorridos em instituições religiosas que ultimamente têm sido amplamente divulgados pelos média (e nesses casos ocorrendo realmente uma violação, com sofrimento real e traumatizante para as vítimas), fez com que este tema esteja na ordem do dia, o que provavelmente ainda fez aumentar mais a polémica com do Dalai Lama.

O que disse o menino e mãe após o evento? O que dizem os tibetanos sobre o ocorrido? O que disseram outros professores do Dharma?

Pela internet afora as pessoas, principalmente os ocidentais, expressaram revolta pelo que aconteceu, o Dalai Lama foi apelidado com vários adjetivos negativos, muitas pessoas disseram que a criança iria ficar traumatizada para o resto da vida. Mas será mesmo? Será que esse tipo de episódio poderá ser realmente comparável a um abuso sexual? Saberão as pessoas o que realmente isso é? O que o menino e a mãe têm a dizer? O que pensam os tibetanos? Estaremos perante um choque entre culturas?

Há que saber diferenciar o nível de gravidade das coisas. O abuso sexual é inaceitável. O que aconteceu pode ter sido inapropriado, porém fazer esse tipo de comparação a meu ver é manifestamente exagerado, injusto, eventualmente até malicioso, e de certa forma um desrespeito para as verdadeiras vítimas de abuso sexual.

Durante esse evento em que ocorreu o referido episódio, os tibetanos e não-tibetanos não expressaram qualquer sentimento negativo a esse acontecimento, nem a criança parece ter ficado particularmente traumatizada e nem a mãe que assistiu a tudo (e que trabalha com crianças) ficou revoltada, muito pelo contrário.

It was amazing meeting His Holiness: The boy who asked a hug from The Dalai Lama (Voice of Tibet)

O menino no final do encontro reiterou que:

«Foi incrível conhecer Sua Santidade. Acho uma ótima experiência encontrar tanta energia positiva. É uma sensação muito agradável conhecê-lo e receber muita energia positiva.
Não é só isso, porque assim que você recebe a energia positiva, eu acho que você está mais feliz e melhor e sorri muito mais. Foi uma experiência muito boa.»

A mãe declarou que:

«Eu sou a Dra. Payal Kanodia, curadora da Fundação MCM. Temos trabalhado em Dharamshala neste Centro de Habilidades que começámos no ano passado e desde então buscamos as bênçãos de Sua Santidade e você sabe que tivemos esta oportunidade e principalmente quando a minha família estava lá comigo e também estiveram presentes todos os alunos que se formaram em “iMpower Academy for Skills.” Somos totalmente abençoados por ter recebido estas bênçãos de Sua Santidade. Ele se dirigiu a nós pessoalmente e nos ensinou sobre a paz que o mundo precisa e como todos nos devemos sentir como irmãos e irmãs e eu não consigo expressar em absoluto o quão abençoada eu me sinto por ele. Obrigada.»

Dagmo Kalden Sakya, num texto publicado no Facebook, afirmou que*:

«Os sentimentos de milhares de tibetanos e budistas tibetanos em todo o mundo foram gravemente feridos com a recente cobertura negativa da maioria dos principais meios de comunicação de um incidente ocorrido há mais de um mês.

O vídeo desta reunião está sendo recebido com duras críticas e raiva por pessoas em todo o mundo, pois interpretam mal um momento lúdico entre o Dalai Lama e alguém do público.

Talvez os críticos não saibam sobre a natureza infantil de Sua Santidade. Talvez eles não conheçam a cultura e o humor tibetanos tradicionais. Talvez eles estejam dispostos a ver apenas dez segundos de uma vida incrivelmente ilustre de 87 anos até agora. Mas o mais importante, talvez eles estejam interpretando tudo de um ponto de vista contaminado pela “sociedade moderna e hipersexualizada” de hoje, como Jongtrukh coloca. Ele também diz: “… para muitos não-tibetanos é mais fácil se sentir ultrajado e condenado do que se aprofundar no tipo de homem que Sua Santidade é e o que ele representa e significa para tantos ao redor do mundo…”

Tenzin Topden resume maravilhosamente quando diz: “Há críticas e ódio desnecessário. Acredito que parte desse vitríolo deriva das histórias documentadas de abuso de figuras de autoridade de outras figuras e tradições religiosas”. Ele continua dizendo: “A cultura dá contextos diferentes à linguagem. Tabus profundamente arraigados em uma cultura podem ser normais em outra. Pais beijando filhos na boca é um exemplo. Onde tais gestos hoje em dia podem significar uma sentença de morte em certas partes do mundo, são vistos como um ato de afeto em outros lugares.”

Ugyan la, outro tibetano, pediu a opinião de sua mãe sobre o vídeo e ela expressa a opinião de todos os tibetanos quando vê a interação dos alunos como sendo extremamente abençoada – ter a oportunidade de conhecer, falar e tocar Sua Santidade é mais do que uma sorte. Ela também menciona o fato de que Sua Santidade beijar o aluno sem qualquer julgamento ou consideração de seu status como o status do Dalai Lama fala tão bem da humildade e do amor de Sua Santidade. É assim que a maioria dos tibetanos interpretaria o que aconteceu.

Todos nós sabemos que Sua Santidade é compassivo, mas também bem-humorado, transparente e extremamente espontâneo: qualidades tão belas que só podemos aspirar a ter. Suas qualidades puras não são contaminadas pelo medo, restrições e normas sociais às quais todos estamos presos. Além disso, Sua Santidade é um tibetano com uma maneira tibetana única de fazer e entender as coisas, bem como um monge que sempre viveu separado da sociedade regular, cujas interações com os outros são quase sempre em um ambiente formal e, portanto, inconsciente do que muitas pessoas na sociedade aprendem através do condicionamento social e da experiência.

Para muitas pessoas, ver alguém tão aberto e livre de preconceitos e bloqueios mentais pode ser perturbador e confuso, mas para mim é uma prova da total transparência e prática de Sua Santidade ser o mesmo com qualquer pessoa de qualquer idade, seja em público ou em particular, e sua total falta de julgamento em relação a qualquer pessoa de qualquer idade, forma ou forma. Muitos não podem fazer isso.

É triste que o público seja tão rápido em julgar e rotular alguém que é tão livre de julgamento.

Felizmente, porém, Sua Santidade com sua sabedoria e equanimidade está acima de qualquer tipo de julgamento e crítica, e disso eu me consolo.»

A artista tibetana Drukmo Gyal Yogini, partilhou a sua opinião, dizendo1, 2:

«Como tibetana, confidencialmente compartilho com vocês o facto de que beijei o meu avô na boca desde a infância até a idade adulta, e nos beijamos nas bochechas e nos lábios para expressar amor e relutância em partir.

Como budista e ser humano, ser capaz de expressar a autenticidade e receber expressões verdadeiras sem ficar com um sentimento de ofensa é precioso e importante.

À medida que envelhecemos, perdemos a capacidade de nos expressar de forma autêntica/verdadeira devido a muitas razões culturais, económicas, sociais, psicológicas…

Por isso, quando criança, fui provocada de várias maneiras, principalmente de maneiras que os adultos/vovós SABEM com certeza que eu não faria. Quando criança, não hesito em mostrar a minha reação verdadeira a qualquer pedido que eles tenham. Quando criança, não me importa quem é essa pessoa, que tipo de posição essa pessoa tem, que tipo de poder e riqueza ela possui. Quando criança, eu simplesmente reajo! E para a pessoa que provoca, essa é a diversão e o motivo para provocar!

Essa é a parte divertida de um adulto/vovó provocar uma criança, ver a reação aberta e direta de uma criança, porque as crianças, ao contrário dos adultos, não vão se ofender, ao contrário, as crianças REAGEM diretamente ao “pedido inusitado”…

É maravilhoso que vocês (depois de ler alguns comentários, refiro-me às pessoas que expressaram as suas preocupações com a segurança e saúde mental da criança que está sendo provocada) se preocupem com a criança que foi publicamente solicitada a “chupar a língua” de um vovô pacífico, também é um sinal de bondade e beleza humana.

No entanto, o mal-entendido é baseado em como o “dano” é causado através de “que tipo de atos” e por “quem”. A minha história exemplifica a normalidade de provocar crianças nas comunidades tibetanas com “atos incomuns” para vermos as suas reações verdadeiras… Porém, estando num contexto globalizante, é inevitável que as pessoas tenham visões diferentes daquilo que veem…

A minha mensagem aqui é para pedir que vocês adiem o vosso julgamento, pesquisem bastante antes de apontarem os dedos.

Muitos cumprimentos,
Drukmo Gyal»

Tenzin Pema, uma jornalista tibetana premiada, publicou um artigo intitulado “World Owes Tibetan Community Apology For Attacking Pure Acts Of Love”, em que declara*:

«Nenhum pedido de desculpas foi necessário de Sua Santidade. Sem desculpas. Nenhuma explicação. Nenhuma declaração.

Porque atos puros e não adulterados de amor, fé e compaixão NÃO requerem nenhum pedido de desculpas.

Porque um “oothuk” – testas tocando para representar amor puro, respeito na nossa cultura – não requer um pedido de desculpas.

Porque um beijo ou um “po” na boca dado pelos mais velhos às crianças pequenas e pelas crianças aos mais velhos é comum na nossa cultura e é outro sinal de amor puro – até, é claro, você sobrepor as suas próprias visões/culturas hipersexualizadas ou experiências negativas sobre tudo e veja cada ato de amor puro através dessa lente; nesse caso, até mesmo a visão de um avô beijando o seu próprio neto será mal interpretada como “abuso infantil”.

Porque pedir à Sua Santidade para “soprar na cara” de uma criança ou de um adulto – palavras que seriam terrivelmente mal interpretadas em qualquer outra cultura – são em nossa cultura a razão de esperança. Esperança para os pais com filhos doentes. Paz de espírito para tantos com um pai moribundo ou ente querido enquanto buscam uma última audiência e “sopro” com Sua Santidade antes que ele morra. “Sopre no meu rosto” – palavras/atos tão puros no mundo tibetano são tão diferentes em todos os outros mundos. Pois a palavra “sopro” ou o ato de “soprar” representa esperança, fé, paz, contentamento, realização, compaixão e bondade… na nossa cultura e para o nosso povo. Palavras/atos que nunca teriam sido vistos como tal por aqueles que não têm um pingo de compreensão do modo de vida tibetano.

E da mesma forma as palavras “nge che le jip” – um refrão lúdico tão comum dos anciãos tibetanos e que soa tão inocente em tibetano, mas não quando traduzido para o inglês como “chupe minha língua”.

Portanto, para reiterar – nenhuma desculpa jamais foi necessária de Sua Santidade, independentemente de quão sórdidas sejam as mentes daqueles que percebem uma cultura e uma pureza que as suas mentes nunca poderão imaginar como possível existente neste mundo de tremendo ódio, angústia e luxúria. e intenção maliciosa.

Em vez disso, o mundo DEVE ao mundo tibetano e à Sua Santidade, que é o próprio epicentro desse mundo, um pedido de desculpas. Um pedido de desculpas profundo e sincero pelo ataque sem precedentes e injustificados a tudo o que amamos. Os ataques à Sua Santidade e a facilidade com que as chamadas pessoas ‘acordadas’ tiraram conclusões precipitadas foram profundamente dolorosos para mim e para milhões em todo o mundo.

Mas principalmente para tantos tibetanos, como a minha mãe de 77 anos, que chora o dia todo e perdeu o sono nos últimos dias. Porque esse ataque viscoso, vitriólico e direcionado à Sua Santidade foi o pior ataque até agora que ela e tantos como ela sofreram em seus quase oito a nove décadas de existência. Para ela, isso – ela me disse enquanto me ligava chorando, incapaz de dormir depois da meia-noite – foi “o pior ataque até agora à fé tibetana e ao modo de vida tibetano”. E ela está certa. Pois este é um ataque flagrante a tudo o que o mundo tibetano preza – a nossa cultura, o nosso modo de vida, a nossa inocência, o nosso humor, o nosso otimismo ousado, a nossa resiliência, a nossa ingenuidade e a nossa fé.

Como mãe tibetana de três filhos – dois dos quais com necessidades especiais – o meu maior medo agora é que este incidente altere tão drasticamente o nosso mundo tibetano e o modo de vida tibetano que amanhã, mesmo que eu peça à Sua Santidade – mais uma vez, como fiz no passado – para “soprar na cara das minhas filhas”, que elas nunca serão tão privilegiadas. E meu medo é que não pare por aí – o meu medo é que amanhã, muitos outros pais tibetanos como nós nunca mais terem aquela oportunidade de seus filhos receberem as bênçãos e testemunharem os puros atos de compaixão e amor de qualquer outro líder espiritual dentro da comunidade budista tibetana novamente.

Tudo porque um dia, o mundo decidiu ver um incidente – um ato tão puro e não adulterado de amor, compaixão e fé em nossa cultura – através de suas lentes de mente baixa.

Então, novamente – para enfatizar – nenhuma desculpa, nenhuma explicação, nenhuma declaração foi necessária para ser emitida por Sua Santidade. Em vez disso, o mundo deve agora ao mundo tibetano e à Sua Santidade um pedido de desculpas.

#Desculpe-se agora

Tenzin Pema é uma jornalista premiada com mais de duas décadas de experiência em redação, edição e liderança de equipas em várias organizações de média globais e nacionais.»

Segundo a CNN Portugal*, Penpa Tsering, líder da Administração Central Tibetana, disse à Reuters que o Dalai Lama foi “injustamente rotulado com todos os tipos de nomes que magoam profundamente todos os seus seguidores”, acrescentando que se tratou apenas de uma “demonstração afetuosa inocente”, à semelhança do que faria um avô. Falando aos jornalistas na Índia, em Nova Deli, Tsering disse ainda que o lado afetuoso de Dalai Lama foi mal interpretado e que o tibetano leva uma vida de celibato e prática espiritual “para além dos prazeres sensoriais”. O líder tibetano exilado disse ainda que investigações mostram que “fontes pró-chinesas” estiveram envolvidas na divulgação das imagens de Dalai Lama a pedir à criança que lhe chupasse a língua. “O ângulo político deste acontecimento não pode ser ignorado”, defendeu Tsering.

O antecessor de Tsering, o também tibetano Lobsang Sangay, segundo a Globo*, declarou que: “Se você mostrar esse vídeo para um tibetano, ele dirá: ‘esse menino é tão sortudo. Ele abraçou sua Santidade, e ainda conseguiu um beijo””, acrescentando que: “Pela perspectiva do Ocidente, eu posso entender que é politicamente incorreto”. Lonbsang também disse que: “Ele é uma pessoa brincalhona. Puxa a barba e bigode de pessoas, e se alguém tiver cabeça grande, ele vai apontar para essa pessoa e dizer: ‘cabeça grande’; se tiver um nariz grande, vai dizer: ‘nariz grande, nariz grande’ e depois fazer uma saudação tocando o nariz. Se você for careca, ele pode dar um tapa na careca”. Lobsang Sangay também revela: “Outra história: ele estava dando uma aula na universidade Harvard. Uma funcionária estava andando ocupada. Ele então deu um tapa nas costas dela. Ela virou (…) e ele então olhou para ela e disse: ‘gorda, gorda, gorda’ porque ela era, você sabe, mais pesada. Ela riu, ele riu, eles se abraçaram. Ela não ficou ofendida por sua Santidade é honesto, não tem nenhuma maldade.

Jigme Ugen, presidente do “Tibetan National Congress”, publicou um vídeo mostrando a perspetiva tibetana:

Republicação legendada: Parem com o sensacionalismo em torno da interação inocente do Dalai Lama: Perspectiva de um Tibetano (Canal da Flor)
Original: Part1: Stop Sensationalizing the Dalai Lama’s Innocent Interactions: A Tibetan’s Perspective. (Jigme)

Ao minuto 1:35 Jigme Ugen diz que beijou durante 30 anos o seu pai na boca quando saía de casa. No final é mostrado o vídeo completo, com o miúdo a rir-se de forma bem natural depois de ter abraçado o Dalai Lama. Neste vídeo partilhado no Instagram também pode ver a interação com o miúdo que não foi mostrada no vídeo viral.

Thubten Chodron, que não sendo tibetana, é uma professora Ocidental do budismo tibetano, partilhou um vídeo em que falou sobre o ocorrido (transcrição/tradução parcial abaixo do vídeo):

Don’t Let Your Mind Go Astray 04-10-23 (Sravasti Abbey)

«Esta manhã quando eu abri a minha caixa de e-mails, estava inundado inundada de e-mails, pelo conteúdo emocional desses e-mails, você pensaria que houve uma explosão em todo o país que foi quase demolidor. As pessoas ficaram extremamente chateadas. Elas me contactaram e disseram o que se estava a passar. […] As pessoas estavam mesmo chateadas, saiu no New York Times, na CNN, em todo o lugar…

Então, eu quero falar sobre isso de diferentes pontos de vista, primeiro se é um video real, segundo, considerações culturais, terceiro, a nossa resposta.

A primeira pessoa que me enviou o e-mail estava muito chateada mas se perguntou se não seria inteligência artificial, não sei se vocês já viram vídeos feitos com IA, eles podem ser muito convivences. [o vídeo é real] […]

Segundo, se é um vídeo real, quais sãos as considerações culturais nisto tudo? Porque aqui estamos lidando com um evento que aconteceu na Índia, entre uma criança indiana e um monge tibetano. Só para que você saiba, na Índia alguns costumes são muito diferentes daqui. Por exemplo, homens na Índia andam de mãos dadas, eles não são gays, são homens heterossexuais, mas eles dão as mãos, o que é perfeitamente aceitável na Índia. Eles raramente andam na rua segurando as mãos de uma mulher, isso não é aceitável, mesmo que sejam as suas esposas, muito raramente você vê isso. Então é um ambiente diferente.

Quando o que ocorreu no vídeo aconteceu, ninguém na plateia, que eram todos indianos, isso foi com uma criança indiana, ninguém se levantou e disse “O QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO COM ESSA CRIANÇA?”, em vez disso, eles riram e aplaudiram. Eles viram como Sua Santidade sendo brincalhão. E foi assim que eu vi… Eu estive com a Sua Santidade em muitas e muitas situações, e ele é muito brincalhão, e gosta muito de brincar, e eu posso muito bem ver isso como algo… que ele fez dessa maneira, e que o público respondeu dessa maneira… Então apenas para considerar isso.

A parte realmente importante de tudo isso, é qual é a nossa reação. Em vez de olhar Sua Santidade, qual é a nossa reação a isso. Você está chocado? Está escandalizado? Você ri e diz que é um incidente que ocorreu por 1 segundo, talvez 2 ou 3 segundos… Ou você considera isso como algo que faz você perder toda a sua na Sua Santidade para todo o sempre, e diz que tudo o que ele lhe ensinou era falso porque você viu aquele vídeo?

Eu posso olhar para ele, eu conheço a Sua Santidade bem, acho que é divertido, e dizer que para mim não é grande coisa [o que aconteceu]… Porque eu conheço a Sua Santidade bem, recebi ensinamentos dele, sei que ele é 100% um excelente professor, sei que o seu comportamento ético é muito bom.

Então, tem esse vídeo, sim… a ação teria sido melhor se não tivesse sido feita, porque pode parecer inapropriado para outras pessoas… mas eu me pergunto porque foi trazido à tona dois meses depois de ter acontecido? E se foi realmente tão horrível, os pais não fizeram nada naquele exato momento…

Mas o ponto é, você perde toda a sua fé por causa de algum erro que alguém cometeu? Isso nos faz descartar completamente tudo de bom que essa pessoa fez?

Foi interessante, eu estava trabalhando esta manhã no livro da Ven. Williams, e me deparei com uma frase onde ela disse que” mesmo aryas e abades e abadessas comentam erros.” [Thubten ironiza fazendo uma expressão corporal de chocada]

Sim… eu provavelmente cometi muitos mais erros do que aryas, abades e abadessas. Muitos mais erros… eu quero que as pessoas me julguem com base em um inadequado…? você sabe… não foi… ele não acariciou a criança toda, você sabe… não foi nada disso, foi algo que durou 2 ou 3 segundos… e a criança não tocou a língua dele…

Você sabem como a nossa própria mente funciona, nós colocamos as pessoas em padrões impossíveis, e fazemos julgamentos rápidos, especialmente nos dias de hoje… e em que estamos lidando interculturalmente.

Uma ação inapropriada significa que o que essa pessoa já lhe ensinou ou fez na sua vida, agora é inútil? E você fica destruído para todo o sempre?

Ainda se fosse um enorme escândalo… alguém que sabe o que está acontecendo, com um desfile de mulheres e blá blá blá… então você poderia realmente questionar… mas este tipo de coisa? Que era realmente a Sua Santidade e o seu senso de humor…

Vamos jogar tudo fora? Bem… essa é a nossa escolha… Em cada caso sempre alguém faz algo inapropriado neste mundo, então não teremos fé em ninguém… incluindo vocês mesmos… oh… exceto vocês porque eu sei que são todos perfeitos. [risos]

Pensem nisso, eu sou perfeita? Eu posso ser capaz de perder toda a fé em mim porque eu fiz algo culturalmente inapropriado… Então pensem nisso… acalmem-se, relaxem um pouco. Como alunos de Sua Santidade, lembrem-se de tudo o que ele ensinou a vocês. Ou você vai jogar tudo fora e dizer “a minha fé está destruída para todo o sempre”? Onde isso vai colocar-vos em termos da vossa prática do Dharma? Onde isso vai colocar-vos em relação a todos no planeta?

Cada pessoa será inevitavelmente errada ou má aos vossos olhos… e o que o Dharma está tentando é exatamente nos ajudar a ver que as pessoas não são 100% isso ou aquilo… e serem capazes de discernir e descriminar diferentes coisas, e não apenas explodir e fazer um monte de acusações.

Se você acha que o que a Sua Santidade fez foi total pedofilia, então e quando eu vou para países latinos e dou uma palestra e homens que eu não conheço vêm cá e me beijam, isso acontece em países latinos, [beijo] em cada bochecha, me abraçando… Eu devo gritar VIOLAÇÃO? Não… eu demorei um pouco para me acostumar que isso é como as pessoas nos países latinos mostram a sua afeição e acolhimento. Eles não sabem que não se deve tocar em monjas budistas. No começo eu fiquei tipo, “o que é que esses sujeitos estão fazendo?” Mas então… “ok, relaxa”, este é o costume deles, e é um lindo costume. Eu simplesmente me acostumei com isso e “graças a Deus” que é não gritei “violação”, você sabe, no meio da Cidade do México, isso não teria acabado muito bem… […]»

Joseph Goldstein, professor Theravada e co-fundador da Insight Meditation Society, afirmou*:

Neste mundo veloz da internet e dos média globais, é importante entender a história completa dos eventos antes de fazer julgamentos e conclusões apressados.

Por ter conhecido o Dalai Lama por muitos anos e por ter assistido à versão completa do vídeo mostrando a interação do Dalai Lama com um menino indiano pedindo uma bênção, ficou claro para mim que essa troca foi uma troca amorosa, divertida e uma interação benevolente. O Dalai Lama passou toda a sua vida manifestando compaixão e bondade para com todos, e essa troca não pareceu exceção.

A angústia sentida por tantos é compreensível; houve tantas revelações de abusos em comunidades religiosas, tanto por budistas como por outras, e essa era uma criança no centro de tudo. É lamentável que uma versão cortada e editada tenha sido divulgada sem levar em conta o que realmente aconteceu, como atestam a mãe do menino e os presentes. O compromisso do Dalai Lama com a paz e a compreensão mundial foi e continua sendo uma grande bênção para o mundo.

Claro, estou simplesmente compartilhando a minha perspetiva e gostaria de encorajar qualquer pessoa interessada a assistir ao vídeo inteiro e tirar as suas próprias conclusões.

Outras questões se levantaram

No passado, um Tibete idealizado que nunca existiu, no presente, um Tibete politicamente reprimido

Esse episódio também serviu para levantar outras questões, muitas pessoas começaram a referir os problemas que existiam no Tibete antigo.

E sim, de facto, o Tibete foi muito romantizado e idealizado, como se fosse um paraíso na terra. Mas ainda que isso possa não ter sido a realidade, nada legitima a invasão e a repressão que ainda continua a ocorrer no Tibete, conforme descrita no Jornal Sol*:

«[…] Sob o Partido Comunista Chinês, ninguém é livre.

No entanto, os tibetanos têm menos direitos civis e políticos do que a maioria. Desde a vigilância em massa da polícia nas movimentadas ruas de Lhasa até à frequente tortura que ocorre nos centros de detenção secretos do Tibete. Todos os dias o governo chinês sujeita os tibetanos a um sufocante controlo de todos os aspetos da sua vida, sem problemas em recorrer ao uso da violência.

Todos os aspetos da vida tibetana estão sob cerco. Dissidência, protesto ou mesmo desejar um feliz aniversário ao Dalai Lama ou ter uma bandeira tibetana no telemóvel é crime. Os tibetanos têm que se autocensurar para evitar a certissima prisão e tortura.

Ainda hoje, em 2023, protestos pacíficos são reprimidos com violência severa. Manifestantes são presos, torturados e até mesmo mortos a tiros. A China tem repetidamente violado as convenções da ONU através do uso extensivo de tortura contra prisioneiros políticos tibetanos. As prisões no Tibete estão cheias de pessoas detidas simplesmente por expressarem o seu desejo de liberdade. São presas e condenadas por atos pacíficos, como acenar a bandeira tibetana, pedir o retorno do Dalai Lama e enviar informações sobre eventos no Tibete para o exterior.

Muitos tibetanos são presos por acusações não especificas e sem julgamento, e as suas famílias são alienadas do seu paradeiro. É negado o acesso a apoio jurídico adequado e enfrentam julgamentos (quando os há) que não respeitam os padrões internacionais de justiça.

Tibetanos acusados de “separatismo” (atos destinados a dividir ou prejudicar o estado chinês) podem enfrentar penas que incluem a morte. Isto estende-se a crianças.

O Partido Comunista Chinês tentou apagar o Dalai Lama do Tibete. Possuir imagens do Dalai Lama ou mencioná-lo em público pode resultar em prisão, tortura e morte. Não só no Tibete, mas em toda a China, escritores, cantores, artistas e professores são presos por celebrarem a identidade nacional tibetana e por qualquer crítica ao governo chinês.

Mas nada disto interessa, ou interessa menos às redes sociais. É mais fácil reduzir a vida de um homem a um momento, e um problema humanitário internacional, que desde sempre foi varrido para debaixo do tapete, a um problema que não é nosso. Podemos assumir e criticar os erros do líder espiritual com facilidade, nojo e escárnio, mas não o podemos receber. Esta dicotomia chama-se medo da China, e respeitinho. […]

Novamente, e para concluir, não estou a isentar ninguém, mas as crianças tibetanas, também são crianças.»

Existem realidades problemáticas, mas o Dharma está acima disso tudo

Outras situações que começaram a ser apontadas foram os abusos em alguns mosteiros budistas tibetanos (e não só), assim como outras situações problemáticas ocorridas em países como o Myanmar. E sim, é um facto que existem realidades problemáticas, umas mais e outras menos gravas. Existem inúmeros fatores na origem de muitos desses problemas. Os budistas não são Budas, muitos são budistas só de nome, e assim como qualquer outra pessoa operando com uma mente pouco esclarecida e lúcida cometem ações não-virtuosas e em desacordo com os ensinamentos. Isso é o Samsara, mas o Dharma de Buda está acima de tudo isso.

Foi impressionante notar a cultura de ódio que existe nas redes sociais e como as pessoas facilmente apontam os dedos sem olharem para si mesmas. É impressionante como facilmente se fazem graves acusações sem todo o conhecimento de causa e pessoas são linchadas em praça pública. O episódio ocorrido com o Dalai Lama motivou uma enxurrada de criticas, algumas plausíveis e legítimas, mas muitas delas de forma bem agressiva e exagerada, inclusive vindo de pessoas que não são propriamente o melhor exemplo de virtude. Como alguém disse, defendemos a liberdade e as diferenças, mas depois descriminamos toda uma cultura, vivemos num mundo em que as pessoas têm um grande apego disfuncional a ter opinião mesmo quando esta carece de fundamentos e meramente repetimos cegamente aquilo que nos é servido de bandeja; falsos moralistas que se deleitam com os eventuais erros dos outros para se sentirem um pouco melhor. Mas lá está, é sempre mais fácil apontar o dedo do que olharem para si mesmas. Dito isto, não significa que um mestre ou mestra não seja infalível, e seja qual for a sua posição, não possa ser criticado, escortinado e responsabilizado.

Existem várias formas de ver e interpretar o mundo, a forma que nós estamos habituados a ver não é necessariamente a mais correta que outras.

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