Contos e Poemas

A poesia budista

A poesia é um género literário que está presente no budismo desde os seus primórdios. Essencialmente podemos distinguir os seguintes tipos de poesia budista: a poesia presente nos ensinamentos atribuídos ao Buda, que estão incluídas nos cânones, isto é, nas escrituras tradicionais; e a poesia escrita por budistas (monásticos ou leigos), que podemos encontrar tanto nos cânones, como fora deles, o que engloba qualquer poesia escrita por budistas.

A poesia em Páli nos ensinamentos atribuídos ao Buda

A língua Páli é um antigo idioma indiano próximo ao que era falado pelo Buda. Pode-se dizer que o Páli é uma forma simplificada do Sânscrito. Os primeiros textos budistas foram escritos em Páli.

Os primeiros exemplos de poesia budista podem ser encontrados nas escrituras tradicionais, como o Dhammapada, que faz parte do Cânone Páli, e segundo o qual Siddhartha Gautama (o fundador do budismo), ao atingir a iluminação, proclamou:

Em vão vagueei durante muitos nascimentos no saṃsara,
buscando o construtor desta casa (da vida).
Repetidos nascimentos são sem dúvida sofrimento! (dhp 153)

Ó construtor da casa, estás à vista!
Não construirás esta casa de novo.
Pois as tuas vigas estão quebradas e a cumeeira esmagada.
Minha mente atingiu o Incondicionado;
alcancei a destruição do desejo (Tanha). (dhp 154)

Tradicionalmente, a maioria dos sutras budistas (textos canônicos com ensinamentos budistas) tem uma componente de prosa complementada por versos (conhecidos como gatha ), que reiteram e resumem poeticamente os temas das passagens em prosa anteriores. Gatha funciona como um dispositivo mnemónico que ajuda o praticante budista a memorizar uma certa máxima doutrinária. E, de facto, as primeiras formas existentes do discurso budista aparecem em versos, o que não surpreende, considerando que os textos não foram originalmente escritos, mas memorizados.

A poesia em Páli nas escrituras tradicionais

Além da poesia atribuída ao Buda, os exemplos mais significativos são encontrados nas coleções Theragatha e Therigatha do Cânone Páli. A poesia presente nessas coleções são atribuídas a monges e monjas. Theragatha significa “Versos dos Monges Anciãos” e Therigatha significa “Versos das Monjas Anciãs”.

O monge budista chamado Vangisa, foi considerado pelo Buda como o principal dos seus discípulos no que diz respeito à espontaneidade da fala porque ele conseguia compor e declamar poesia no próprio local. Ele é considerado o autor da secção final e mais longa do Theragatha.

Calmo e quieto,
pensativo e estável—
ele se livra das más qualidades
como o vento sacode as folhas de uma árvore.
– Mahākoṭṭhita, Theragatha 1.2

Que tudo conhece e tudo vê, o Conquistador e Vitorioso,
de compaixão infinita foi o meu instrutor;
ele é o mestre do mundo e também o seu médico.

Ele me ensinou este Dhamma incomparável levando à cessação,
que, quando cultivado conduz à libertação de toda a tristeza.

Agora, tendo ouvido estas palavras, bem ditas pelo sábio,
com espadas abaixadas e as suas armas deixadas de lado,
alguns ladrões desistiram da sua ocupação criminosa,
enquanto que outros deixaram o mundo para viver a vida santa.

Dedicados aos ensinamentos do Bem-aventurado,
desenvolvendo os fatores da iluminação,
os ‘poderes espirituais’, a sabedoria, e a mente superior,
com os corações alegres e com faculdades maduras,
eles tocaram o estado incondicionado; Nibbana.
– Adhimutta, Theragatha, versos 22 a 25

As pessoas estão presas aos seus apegos,
ao que é visto, ouvido, sentido e pensado.
Inabalável, dissipe o desejo por essas coisas;
pois alguém chamado ‘de sábio’ não se apega a eles.
– Vangisa, Theragatha 21.1

Quanto ao Therigatha, é notável por ser a coleção antiga mais conhecida de literatura feminina composta na Índia e é um documento muito significativo para o estudo do budismo primitivo. O Therigatha contém passagens que reafirmam a visão de que as mulheres são iguais aos homens em termos de realização espiritual, bem como versos que abordam questões de particular interesse para as mulheres na antiga sociedade do sul da Ásia.

Puṇṇā, seja cheia de boas qualidades,
como a lua no décimo quinto dia.
Quando a sua sabedoria estiver completa,
quebra-se a massa de escuridão.
– Puṇṇā, Therigatha 1.3

Que diferença faz a feminilidade
quando a mente está serena,
e o conhecimento está presente
enquanto você discerne corretamente o Dhamma.
– Soma, Therigatha 3.8

Os meus seios costumavam ser tão bonitos,
volumosos, redondos, juntos e elevados;
agora eles caem como bolsas de água —
a palavra do veraz é confirmada.

O meu corpo costumava ser tão bonito,
como uma laje de ouro polida;
agora está coberto de finas rugas —
a palavra do veraz é confirmada.
– Ambapālī, Therigatha 13.1

Poesia budista em Sânscrito

Também na língua sânscrita foi produzida poesia, que está presente tanto em sutras como em obras não-canónicas.

Asvaghosa é um dos primeiros e mais conhecidos a compor as suas obras em Sânscrito. Ele foi um filósofo, dramaturgo, poeta e orador budista da escola Sarvastivada ou Mahasanghika, da Índia. Da sua obra faz parte o Buddhacarita (Atos do Buda), que é um poema épico sobre a vida do buda; e o Saundarananda (O belo Nanda), que conta a história do bonito primo do Buda, e que foi guiado para a libertação ao transformar a sua maior fraqueza – o desejo – num fator motivador para a prática. Também existem fragmentos de um drama chamado de Sariputraprakarana, que talvez seja até o mais antigo exemplo de drama em Sânscrito.

O respeito pelo Buda o afastou
o amor pela sua esposa o puxou de volta;
indeciso, nem foi nem ficou
como um rei cisne pressionado entre as ondas.
– Saundarananda

Shantideva foi outro dos grandes poetas de Sânscrito. As suas obras se assemelham em parte a uma coleção de ditados, mas em outros aspetos desafia a classificação.

Regozijo-me com os pensamentos virtuosos, vastos e profundos como o mar, desaguando na felicidade dos seres, e com os atos que concretizam o bem dos seres.

Possa eu ser para os doentes o remédio, o médico e o enfermeiro, até à extinção da doença!

Possa eu, em revoadas de alimentos e bebidas, atenuar o suplício da fome e da sede e, nos períodos de grande penúria dos antarakalpas, ser eu próprio a comida saciante e a bebida desalterante.

Possa eu ser para os pobres um tesouro inesgotável, resposta sempre pronta para tudo o que lhes falte!

Possa eu ser o protetor dos abandonados, o guia dos que caminham e, para os que aspiram à outra margem, ser a caravela, a barca ou a ponte. A ilha dos que buscam uma ilha, a lâmpada dos que precisam de lâmpada, o leito de quem queira um leito, o escravo de quem queira um escravo. Ser a pedra do milagre, a jarra do tesouro inesgotável, a fórmula mágica, a planta que cura, a árvore dos desejos, a vaca da abundância!
– Shantideva, Bodhicharyavatara

Conforme o budismo se espalha para outras nações, novos poetas surgem

À medida que o budismo se espalha da Índia para outros países, outras obras poéticas são criadas. A poesia budista começa assim a florescer em praticamente todas as línguas faladas por budistas.

No Tibete os exemplos mais notáveis são as obras de Milarepa.

Flores de azul turquesa, inundação no vale abaixo
Abundância de seda, uma joia de valor
A lua crescente, e o filho querido
São comparações

Ninguém antes cantou palavras tão soltas
Ninguém pode compreender seu significado
Sem escutar toda a canção

A pintura dourada se desbota ao ser completada
Isto mostra a ilusão de todas as coisas
Isto prova a passagem de todas as coisas
Pense e então praticará a lei e a consciência.

A inundação varre o vale abaixo
Logo torna-se fraca e dócil na planície abaixo
Isto mostra a ilusão de todas as coisas
Isto prova a passagem de todas as coisas
Pense e então praticará a lei e a consciência

Arroz cresce no vale abaixo
Logo pela foice é colhido
Isto mostra a ilusão de todas as coisas
Isto prova a passagem de todas as coisas
Pense e então praticará a lei e a consciência

A roupa suave de seda logo é cortada pela faca
Isto mostra a ilusão de todas as coisas
Isto prova a passagem de todas as coisas
Pense e então praticará a lei e a consciência

A joia preciosa que você admira
Logo pertencerá a outros
Isto mostra a ilusão de todas as coisas
Isto prova a passagem de todas as coisas
Pense e então praticará a lei e a consciência

Os pálidos raios da lua logo se desvanecem
Isto mostra a ilusão de todas as coisas
Isto prova a passagem de todas as coisas
Pense e então praticará a lei e a consciência

Um filho querido nasce e logo se vai para sempre
Isto mostra a ilusão de todas as coisas
Isto prova a passagem de todas as coisas
Pense e então praticará a lei e a consciência

Estas são comparações que canto
Espero que você se recorde e as pratique
Preocupação e trabalho sempre existirão
Então, deixe-os de lado e pratique agora a grande consciência

Se você pensa que amanhã é o momento de praticar,
Logo descobrirá que a vida passou.
Quem pode dizer quando virá a morte?
Pense sempre nisso e dedique-se à prática.
– Milarepa

Na China a tradição budista é particularmente rica em expressão poética. Os budistas Chan criaram uma linguagem complexa na qual a sugestão, a ambiguidade, o paradoxo e a metáfora são valorizados em detrimento da explicação direta. Os budistas Chan afirmaram que, embora a iluminação não possa ser explicada em termos comuns, a poesia, como uma linguagem especial, pode apontar o caminho. Como o monge Chan Juefan Huihong (1071-1128) escreveu: “As subtilezas da mente não podem ser transmitidas em palavras, mas podem ser percebidas em palavras”. Na poesia Chan, imagens tão simples como a lua, nuvens, barcos, reflexos na água, ameixas, flores de lótus, bambus e pinheiros, assumiram conotações complexas baseadas em ideias Chan.

A minha mente é como a lua de outono,
Tão fresca e pura quanto um lago de jade.
Mas nada realmente se compara a isso –
Diga-me, como posso explicar?
Han-Shan

Montanha Fria retirada e estranha
Os que a sobem por vezes sentem medo

O luar torna a água clara e translúcida
Quando o vento sopra as ervas sussurram

Nas árvores secas a neve forma flores
No bosque despido as nuvens são folhas

Com a chuva sinto-me fresco e animado
Com mau tempo não se pode atravessar
– Han-Shan

No Japão os budistas criaram poesia em diferentes estilos poéticos, entre os quais o Haiku, que é um tipo de poesia fortemente influenciado pelo Budismo Zen e que teve a sua origem noutros estilos de poesia clássica japonesa. O Haiku é considerado uma poesia contemplativa curta, que valoriza a natureza, as cores, as estações dos anos, os contrastes e as surpresas.

Ao sol da manhã
uma gota de orvalho
precioso diamante.
– Matsuo Bashô

Quietude –
O barulho do pássaro
Pisando em folhas secas.
– Ryushi

O ladrão deixou para trás:
a lua
na minha janela.
– Ryokan

Muitos caminhos levam
ao topo da montanha,
mas do cimo
todos vemos a mesma
única lua brilhante.
– Ikkyu Sojun

No mundo contemporâneo vários mestres budistas, assim como leigos, e tanto orientais como ocidentais, criam belas poesias. Thich Nhat Hanh (1926-2022) é um dos exemplos mais afamados.

Chamem-me pelos meus verdadeiros nomes
Não digam que parto amanhã
Porque hoje estou ainda chegando.

Olhe bem, a cada instante estou chegando
Para vir a ser botão de flor em ramo de primavera
Para ser passarinho de asas frágeis
Aprendendo a cantar em meu novo ninho,
Para ser lagarta na corola da flor,
Para ser gema oculta na pedra.

Estou ainda chegando para rir e chorar,
Para sentir medo e esperança
O ritmo do meu coração é o nascimento e morte
De tudo o que vive.

Sou a libélula em metamorfose
Em vôo sobre as águas do rio
E sou pássaro que se lança ao ar para engolir a libélula.

Sou rã que nada descuidada
Nas águas claras da lagoa
E cobra que em silêncio se alimenta da rã.

Sou a criança em Uganda, só pele e osso
Minhas pernas como gravetos
E sou o traficante que vende armas para Uganda.

Sou a jovem púbere
Que escapa em uma balsa
E que, violentada por um pirata, lança-se ao mar

Mas sou o pirata ainda incapaz de sentir e de amar
Minha alegria é como a cálida primavera
Que faz florescer toda a Terra.
Minha dor é como um rio de lágrimas,
Tão vasto que enche os quatro oceanos.

Chamem-me pelos meus verdadeiros nomes,
Para que eu possa despertar e enfim escancarar
Em meu coração as portas da compaixão.
– Thich Nhat Hanh

A quantidade de poesia budista é enorme, está presente tanto nos Cânones como em outras obras. Foi produzida por monges, monjas, leigos e leigas. Algumas poesias são um louvor ao Buda, outras transmitem ensinamentos e conceitos budistas. São inúmeros os compositores e variados os tipos de poesia e os temas abordados.

Referência: Wikipedia.

Veja também:

Deixe um comentário