Mente e Psicologia

O seu cérebro alucina a consciência da realidade e constrói a experiência de um “eu” estável

No budismo existe um conceito chamado de Maya, esse termo em sânscrito é utilizado para nos referirmos à natureza ilusória da realidade. O mestre budista Dokushô Villalba diz que “esta realidade é ilusória, mas não significa que exista outra realidade que não seja. Tudo o que possamos perceber com os sentidos, tudo o que possamos pensar, categorizar é Maya, é ilusório. Porquê? Porque os nossos órgãos sensoriais são condicionados e limitados. Por exemplo, nós não vemos os ultravioletas nem infravermelhos, vemos apenas uma parte muito pequena do espectro eletromagnético. Vemos apenas uma pequena parte da realidade, e ao tomarmos a realidade como tal, então caímos numa ilusão.”

Este tipo de ideia presente no budismo há mais de 2500 anos tem sido explorado por cientistas, como é o caso do neurocientista Anil Seth.

A realidade percecionada pelo cérebro é o seu melhor palpite

Ao escutarmos o Anil Seth, como por exemplo na palestra “Your brain hallucinates your conscious reality” transmitida no TED e vista até ao momento por mais de 9 milhões de pessoas, em alguns momentos quase que parece que estamos a assistir a uma palestra do Dharma.

Your brain hallucinates your conscious reality | Anil Seth | TED (legendado em português)

Entre as várias declarações, Anil Seth diz que “o que nós percecionamos é o melhor palpite do que está lá fora no mundo. […] Em vez de a perceção depender amplamente dos sinais recebidos pelo cérebro vindos do mundo exterior, depende tanto quanto, se não mais, das previsões percetuais que fluem na direção oposta. Nós não percecionamos o mundo de forma passiva, nós geramo-lo ativamente. O mundo que nós experienciamos vem tanto, se não mais, de dentro para fora, como de fora para dentro.” Para justificar as suas afirmações Anil mostra exemplos e experiências para que nós mesmos possamos verificar e compreender.

Ele continua dizendo que “se a alucinação é um tipo de perceção descontrolada, então a perceção do ‘aqui e agora’ é também um tipo de alucinação, mas uma alucinação controlada na qual as previsões do cérebro são controladas por informações sensoriais vindas do mundo. Na verdade, todos nós estamos sempre a alucinar, incluindo agora. Só que, quando nós concordamos sobre as nossas alucinações nós damos-lhes o nome de realidade.”

Seth acrescenta que “muitas experiências mostram — e os psiquiatras e neurologistas sabem muito bem — que as diferentes formas que nós experimentamos ser um ‘eu’ podem-se desmoronar todas. Isto significa que a experiência anterior de ser um ‘eu’ unificado é uma construção frágil do cérebro. Mais uma experiência que, como qualquer outra, requer explicação. Então, vamos voltar ao ‘eu’ corpóreo. Como é que o corpo cria a experiência de ser um corpo e ter um corpo? Bom, aplicam-se os mesmos princípios. O cérebro cria o seu melhor palpite sobre o que é ou não parte do seu corpo.” Anil Seth descreve uma experiência que qualquer pessoa pode reproduzir, e que consiste em colocar a mão numa messa juntamente com uma mão falsa, uma outra pessoa esfrega um pincel na mão da pessoa submetida à experiência assim como da mão falsa e, passado algum tempo, é espetado um garfo na mão falsa. Na experiência apresentada a pessoa expressou sinais de dor, comprovando assim o que foi dito anteriormente.

Anil Seth termina a palestra dizendo que “o nosso próprio universo interno, a nossa forma de ser conscientes, é só uma forma possível de ser consciente. E até a consciência humana geralmente é apenas uma pequena região num vasto espaço de consciências possíveis. O nosso ‘eu’ individual e mundos são únicos para cada um de nós, mas todos estão fundados em mecanismos biológicos partilhados com tantas outras criaturas vivas. Estas são as mudanças fundamentais sobre como nos compreender a nós mesmos, mas eu acho que elas deveriam ser celebradas, porque, frequentemente na ciência, desde Copérnico — ‘Nós não estamos no centro do universo’ — a Darwin — ‘Nós estamos ligados a todas as outras criaturas’ — à presente data, com um maior senso de compreensão vem um maior senso de admiração e uma maior compreensão de que somos parte da Natureza, e não estamos separados dela. E… quando o final da consciência vem, não há do que ter medo. De nada mesmo.”

A ilusão do “Eu”

Anil Seth conversou com Wendy Hasenkamp num episódio do podcast do Instituto Mind & Life, uma organização co-fundada pelo Dalai Lama e que pretende estabelecer um diálogo com a ciência.

Entre os vários tópicos abordados nessa longa conversa, Wendy Hasenkamp descreve que nós temos esta ideia de nos sentirmos estáveis e imutáveis, mas o budismo diz que essa tendência é uma ilusão, o que se alinha com o trabalho de Anil, e que essa ideia também é uma das fontes fundamentais do nosso sofrimento, porque não percebemos a realidade da mudança e da interdependência de todos os fatores contextuais. Wendy pergunta se Anil já estudou budismo.

“Sempre me interessei por isso, e admito que não é algo que estudei muito explicitamente.” respondeu Anil, “li algumas coisas quando era jovem e sempre fui fascinado pela aparente sobreposição entre (pelo menos na minha compreensão limitada) a doutrina budista, a filosofia budista e a prática budista, e o que a neurociência moderna está nos ensinando.”

Anil Seth fala da ideia da perceção ser uma construção e da utilidade da experiência de um “eu” estável, mas que ao mesmo tempo também é a raiz de muitos problemas e sofrimento em potencial, dizendo que: “eu vejo esse alinhamento estreito entre os insights que estamos obtendo da neurociência cognitiva e do budismo, na medida em que as coisas não são necessariamente o que parecem, as coisas podem mudar. Há uma impermanência nas nossas experiências e no mundo. Há uma impermanência no ‘eu’. E reconhecer essa impermanência, seja através de uma espécie de confronto em primeira pessoa pela experiência meditativa, ou quer seja através de insights científicos, que eu acho que levam a um lugar similar, mas por uma direção diferente – não exatamente o mesmo lugar, eu nunca diria isso, abre espaço para a mudança. É o primeiro passo, eu acho. Uma vez que você percebe que a sua perceção é uma construção, uma vez que você percebe que o ‘eu’ pode mudar e realmente muda, isso pelo menos lhe dá o potencial que permite que a mudança aconteça, e que convida formas de fazer as mudanças, ou que habilita ou permite que outros fatores facilitem que você mude.”

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