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O que o Buda ensinou e o mundo de hoje

“A grande maioria das pessoas no mundo não pode tornar-se monge ou se retirar para cavernas ou florestas. Por mais nobre e puro que o Budismo possa ser, seria inútil para as massas da humanidade se elas não pudessem segui-lo na sua vida diária no mundo de hoje.”Walpola Rahula

Tradução de partes do Cap. VIII do livro “What the Buddha Taught” de Walpola Rahula.

Algumas pessoas acreditam que o budismo é um sistema tão elevado e sublime que não pode ser praticado por homens e mulheres comuns neste nosso mundo quotidiano, e que é preciso retirar-se dele para um mosteiro, ou para algum lugar tranquilo, se se deseja ser um verdadeiro budista.

Esse é um triste equívoco, devido evidentemente à falta de compreensão dos ensinamentos do Buda. As pessoas chegam a conclusões precipitadas e erradas por ouvirem, ou lerem casualmente, algo sobre o budismo escrito por alguém que, como não entendeu o assunto em todos os seus aspetos, dá apenas uma visão parcial e desequilibrada dele. O ensinamento do Buda destina-se não apenas aos monges dos mosteiros, mas também aos homens e mulheres comuns que vivem em casa com as suas famílias. O Nobre Caminho Óctuplo, que é o modo de vida budista, destina-se a todos, sem distinção de qualquer tipo.

A grande maioria das pessoas no mundo não pode tornar-se monge ou se retirar para cavernas ou florestas. Por mais nobre e puro que o Budismo possa ser, seria inútil para as massas da humanidade se elas não pudessem segui-lo na sua vida diária no mundo de hoje. Mas se você entende o espírito do budismo corretamente (e não apenas as suas letras), você certamente pode segui-lo e praticá-lo enquanto vive a vida de um homem ou mulher comum.

Pode haver alguns que achem mais fácil e conveniente aceitar o budismo, se viverem num lugar remoto, isolado da sociedade e de outras pessoas. Outros podem descobrir que esse tipo de aposentação entorpece e deprime todo o seu ser, tanto fisicamente quanto mentalmente, e que, portanto, pode não ser propício ao desenvolvimento da sua vida espiritual e intelectual.

A verdadeira renúncia não significa fugir fisicamente do mundo. Sariputta, o principal discípulo do Buda, disse que um homem pode viver numa floresta se dedicando a práticas ascéticas, mas pode estar cheio de pensamentos impuros e “contaminações”; outro pode viver numa vila ou cidade, sem praticar nenhuma disciplina ascética, mas a sua mente pode ser pura e livre de “contaminações”. Destes dois, disse Sariputta, aquele que vive uma vida pura na aldeia ou cidade é definitivamente muito superior e de maior excelência do que aquele que vive na floresta. [1]

A crença comum de que para seguir os ensinamentos do Buda é preciso se retirar é um equívoco. Na verdade é uma defesa inconsciente contra praticá-lo. Existem numerosas referências na literatura budista a homens e mulheres que viviam vidas familiares normais e comuns, que praticaram com sucesso o que o Buda ensinou e realizaram o Nirvāṇa. Vacchagotta, o andarilho, (que conhecemos no capítulo sobre Anatta), certa vez perguntou diretamente ao Buda se havia homens e mulheres leigas levando a vida familiar, que seguiram os seus ensinamentos com sucesso e atingiram altos estados espirituais. O Buda afirmou categoricamente que não havia um ou dois, nem cem ou duzentos ou quinhentos, mas muito mais homens e mulheres leigas levando a vida familiar que seguiram os seus ensinamentos com sucesso e alcançaram altos estados espirituais. [2]

Pode ser agradável para certas pessoas viverem uma vida retirada num lugar tranquilo, longe do barulho e da perturbação. Mas certamente é mais louvável e corajoso praticar o Budismo vivendo entre os seus semelhantes, ajudando-os e servindo-os. Talvez seja útil, em alguns casos, para um homem viver retirado por algum tempo, a fim de melhorar a sua mente e caráter, como um treino moral, espiritual e intelectual preliminar, de forma a ficar forte o suficiente para mais tarde sair e ajudar os outros. Mas se um homem vive toda a sua vida em solidão, pensando apenas na sua própria felicidade e “salvação”, sem se importar com os seus semelhantes, isso certamente não está de acordo com o ensinamento do Buda que é baseado no amor, compaixão e serviço aos outros .

Alguém pode perguntar agora: se um homem pode seguir o budismo enquanto vive a vida de um leigo comum, por que a Sangha, a Ordem dos monges, foi estabelecida pelo Buda? A Ordem oferece oportunidade para aqueles que desejam dedicar as suas vidas não apenas ao seu próprio desenvolvimento espiritual e intelectual, mas também ao serviço dos outros. Não se pode esperar que um leigo comum com uma família devote toda a sua vida ao serviço dos outros, ao passo que um monge, que não tem responsabilidades familiares ou quaisquer outros laços mundanos, está em posição de devotar toda a sua vida “para o bem de muitos, para a felicidade de muitos”, de acordo com o conselho do Buda. É assim que, ao longo da história, o mosteiro budista se tornou não apenas um centro espiritual, mas também um centro de aprendizagem e cultura. […]

Aqueles que pensam que o Budismo está interessado apenas em ideais elevados, pensamentos morais e filosóficos elevados, e que ignora o bem-estar social e económico das pessoas, estão errados. O Buda estava interessado na felicidade dos homens. Para ele, a felicidade não era possível sem levar uma vida pura baseada em princípios morais e espirituais. Mas ele sabia que levar uma vida assim era difícil em condições materiais e sociais desfavoráveis.

O budismo não considera o bem-estar material como um fim em si mesmo: é apenas um meio para um fim – um fim mais elevado e mais nobre. Mas é um meio indispensável, imprescindível para alcançar um propósito maior para a felicidade do homem. Portanto, o budismo reconhece a necessidade de certas condições materiais mínimas favoráveis ​​ao sucesso espiritual – até mesmo para um monge comprometido com a prática de meditação nalgum lugar solitário. [3]

O Buda não excluiu a vida do seu contexto social e económico; ele olhou para ela como um todo, em todos os seus aspetos sociais, económicos e políticos. Os seus ensinamentos sobre problemas éticos, espirituais e filosóficos são bastante conhecidos. Mas pouco se sabe, principalmente no Ocidente, dos seus ensinamentos sobre questões sociais, económicas e políticas. No entanto, existem numerosos discursos que tratam disso, espalhados pelos antigos textos budistas. Tomemos apenas alguns exemplos.

O Cakkavattisīhanāda-sutta do Dīgha-nikāya (Nº 26) afirma claramente que a pobreza (dāḷiddiya) é a causa da imoralidade e de crimes como roubo, falsidade, violência, ódio, crueldade, etc. Reis nos tempos antigos, como os governos de hoje, tentaram suprimir o crime por meio da punição. O Kūṭadanta-sutta do mesmo Nikāya explica como isso é fútil. Diz que esse método nunca terá sucesso. Em vez disso, o Buda sugere que, para erradicar o crime, a condição económica das pessoas deve ser melhorada: grãos e outras instalações para a agricultura devem ser fornecidas para fazendeiros e agricultores; o capital deve ser fornecido para comerciantes e para pessoas envolvidas em negócios; salários adequados devem ser pagos aos que estão empregados. Assim quando as pessoas têm oportunidades para ganharem uma renda que é suficiente, elas ficarão satisfeitas, não terão medo ou ansiedade e, consequentemente, o país será pacífico e livre do crime. [4]

Por causa disso, o Buda disse aos leigos como é importante melhorem a sua condição económica. Isso não significa que ele aprovou acumular riquezas com desejo e apego, o que vai contra o seu ensinamento fundamental, nem aprovou toda e qualquer forma de ganhar a vida. Existem certos negócios, como a produção e a venda de armamentos, que ele condena como um meio de vida perverso, como vimos antes. [5]

Um homem chamado Dighajānu uma vez visitou o Buda e disse: “Venerável Senhor, somos leigos comuns, levando uma vida familiar com esposa e filhos. O Abençoado nos ensinaria algumas doutrinas que conduzirão à nossa felicidade neste mundo e no futuro?”

O Buda diz a ele que há quatro coisas que conduzem à felicidade de um homem neste mundo: Primeiro: ele deve ser habilidoso, eficiente, sério e enérgico em qualquer profissão que esteja envolvido, e ele deve saber disso bem (uṭṭhāna-sampadā); segundo: ele deve proteger a sua renda, que ganhou assim justamente, com o suor da sua testa (ārakkha-sampadā); (Isso refere-se a proteger a riqueza de ladrões, etc. Todas essas ideias devem ser consideradas no contexto do período.) terceiro: ele deve ter bons amigos (kalyāṇa-mitta), que são fiéis, eruditos, virtuosos, generosos e inteligentes, que o ajudarão no caminho certo, longe do mal; quarto: ele deve gastar de forma razoável, em proporção à sua renda, nem muito nem pouco, ou seja, ele não deve acumular riquezas de forma avarenta, nem deve ser esbanjador – por outras palavras, ele deve viver de acordo com os seus meios (samajīvikatā).

Em seguida, o Buda expos as quatro virtudes que conduzem à felicidade do leigo: (I) Saddhā: ele deve ter fé e confiança nos valores morais, espirituais e intelectuais; (2) Sīla: ele deve se abster de destruir e prejudicar a vida, de roubar e ludibriar, do adultério, da falsidade e de bebidas intoxicantes; (3) Caga: ele deve praticar a caridade, a generosidade, sem apego e anseio pela sua riqueza; (4) Paññā: ele deve desenvolver sabedoria que conduza à destruição completa do sofrimento, à realização do Nirvāṇa. [6]

Às vezes, o Buda até entrava em detalhes sobre como economizar dinheiro e gastá-lo, como, por exemplo, quando disse ao jovem Sigala que ele deveria gastar um quarto da sua renda nas suas despesas diárias, investir metade nos seus negócios e reservar um quarto para qualquer emergência. [7]

Certa vez, o Buda disse a Anāthapiṇḍika, o grande banqueiro, um dos seus discípulos leigos mais devotados que fundou para ele o famoso mosteiro Jetavana em Savatthi, que um leigo, que leva uma vida familiar comum, tem quatro tipos de felicidade. A primeira felicidade é desfrutar de segurança económica ou suficiente riqueza adquirida por meios justos e corretos (atthi-sukha); a segunda é gastar essa riqueza generosamente consigo mesmo, com a sua família, os seus amigos e parentes, e em ações meritórias (bhoga-sukha); a terceira é estar livre de dívidas (anaṇa-sukha); a quarta felicidade é viver uma vida impecável e pura, sem cometer o mal em pensamentos, palavras ou ações (anavajja-sukha). Deve-se notar aqui que três desses tipos de felicidade são económicos, e que o Buda finalmente lembrou ao banqueiro que a felicidade económica e material “não vale uma décima sexta parte” da felicidade espiritual que surge de uma vida boa e integra. [8]

Pelos poucos exemplos dados acima, pode-se ver que Buda considerava o bem-estar económico um requisito para a felicidade humana, mas que ele não reconhecia o progresso como real e verdadeiro se fosse apenas material, desprovido de um fundamento espiritual e moral. Enquanto encoraja o progresso material, o budismo sempre dá grande ênfase ao desenvolvimento do caráter moral e espiritual para uma sociedade feliz, pacífica e satisfeita. […]

Nos dias do Buda, assim como hoje, existiam governantes que administravam os seus países injustamente. Pessoas foram oprimidas e exploradas, torturadas e perseguidas, impostos excessivos foram coletados e punições cruéis infligidas. O Buda ficou profundamente comovido por essas desumanidades. O Dhammapadaṭṭhakathā regista que ele, por isso, dirigiu a sua atenção para o problema do bom governo. As suas opiniões devem ser apreciadas tendo em conta o contexto social, económico e político da sua época. Ele mostrou como um país inteiro pode se tornar corrupto, degenerado e infeliz, quando os chefes do seu governo, ou seja, o rei, os ministros e oficiais administrativos tornam-se corruptos e injustos. Para um país ser feliz, deve ter um governo justo. Como essa forma de governo justo poderia ser realizada é explicada pelo Buda no seu ensinamento sobre os “Dez Deveres do Rei” (dasa-rāja-dhamma), conforme apresentado no texto Jātaka . [9]

Se um país é governado por homens dotados de tais qualidades, é desnecessário dizer que esse país deve ser feliz. Mas isso não foi uma utopia, pois houve reis no passado, como Asoka da Índia, que estabeleceram reinos com base nesses ideais. […]

É um consolo e inspiração pensar hoje que pelo menos houve um grande governante, bem conhecido na história, que teve a coragem, a confiança e a visão de aplicar este ensinamento da não-violência, da paz e do amor à administração de um vasto império, tanto nos assuntos internos quanto externos – Asoka, o grande imperador budista da Índia (século III aC) – “o Amado dos deuses”, como era chamado.

Notas:
[1] MI (PTS), pp.30-31.
[2] Ibid., pp. 490 e segs.
[3] MA I (PTS), p. 290 (Não se espera que os monges budistas, membros da ordem da Sangha, tenham propriedades pessoais, mas podem possuir propriedades comunitárias (Sanghika)).
[4] D I (Colombo, 1929), p. 101.
[5] Ver p. 29.
[6] A (Colombo, 1929), pp. 786 e segs.
[7] D III (Colombo, 1929), p. 115.
[8] A (Collombo, 1929), pp. 232-233.
[9] Jataka I, 260, 399; II, 400; III, 274, 320; V, 119, 378.

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