Ação no Mundo

As bases para a Ação Social

“Se quisermos assumir qualquer responsabilidade social, isso deve ser feito com o coração aberto e a mente clara.”Ajahn Pasanno

Tradução do texto “Laying the Foundation for Social Action” de Ajahn Pasanno. Adaptado de uma palestra proferida em Fort Bragg, a 23 de Março de 1998. Originalmente publicado pela Fearless Mountain na primavera de 1999. | Texto em Inglês.

De uma perspetiva budista, qualquer coisa relacionada com outras pessoas pode ser considerada ação social: como nos relacionamos com os indivíduos próximos a nós como a família ou vizinhos, com a sociedade em geral e com o mundo ao nosso redor. O campo da ação social se expande, mas começa connosco e nas nossas relações com os outros. O indivíduo está no centro de todas as relações entre as diversas partes da sociedade. Devemos sempre retornar a esse núcleo, para reconhecer que as nossas próprias ações afetam outras pessoas e a sociedade ao nosso redor. Esta é simplesmente a lei básica do Karma – tudo o que fazemos nos afeta e afeta os outros. Não é uma questão de “eu” e a “sociedade”, como se estivessem separados. Não existe realmente nenhuma separação. Os dois estão interligados o tempo todo.

O que trazemos para a sociedade em torno de nós são simplesmente as nossas próprias qualidades da mente, do coração, de ser – as nossas intenções e como elas se manifestam nas nossas ações. Para compreender os nossos efeitos na sociedade, primeiro temos que nos compreender, para vermos essas qualidades com mais clareza. A capacidade que temos de ajudar os outros, ou de fazer qualquer coisa que os afete, depende da clareza, intenção e integridade com que vivemos. Essas coisas são inseparáveis. Portanto, a maneira como nos treinamos é igualmente importante para qualquer ação que realizemos fora de nós mesmos.

Na prática budista, o treino estabelecido para um indivíduo começa com a forma como ele pratica com os outros. Isso é sila, ou virtude – não prejudicar os outros, ser honesto na maneira como lida com os outros, ter ações e palavras confiáveis. A prática de manter os preceitos já é ação social. Os preceitos nos lembram de como as nossas ações afetam os outros. Frequentemente, as pessoas podem pensar: vamos às coisas “reais” sobre o budismo – a libertação, a iluminação; observar os preceitos é apenas uma convenção social, apenas o básico. Mas essa coisa “básica” tem um efeito. É importante. O Buda reconheceu que as nossas ações têm efeitos para nós e para os outros. Enquanto a virtude se preocupa com ações e palavras, o segundo aspeto do treino budista é a meditação, ou samadhi – um treino da mente e do coração, um estabelecimento da atenção plena, consciência e compostura. Isso é essencial cultivar. Se quisermos assumir qualquer responsabilidade social, isso deve ser feito com o coração aberto e a mente clara. Devemos desenvolver um padrão para reflexão. Podemos então começar a perguntar: quais são os efeitos das nossas palavras e ações? Às vezes, as pessoas ficam entusiasmadas com a ação social e se esquecem das atividades comuns da vida. Como faço para lidar com minha família? Como faço para lidar com as pessoas mais próximas a mim? Ou mesmo como faço para atender o telefone? O que coloco no universo quando estou irritado ou chateado? São coisas muito comuns e cotidianas, que preparam o terreno para a maneira como nos relacionamos com o mundo ao nosso redor. Prestar atenção a essas coisas é ação social. Lidar com o círculo de pessoas ao nosso redor é uma ação social. Não é diferente.

De uma perspetiva budista, o próximo passo é reconhecer a qualidade da sabedoria, ou pañña. Existem muitos níveis diferentes de sabedoria, mas ver as coisas como elas realmente são é a sua essência. Com a capacidade reflexiva da mente, podemos começar a ver as coisas como elas realmente são e começar a nos voltar para isso. Isso não é simplesmente reunir novos conhecimentos ou ser eletrocutado por algum tipo de energia iluminada. É um voltar para o interior, para sermos capazes de nos abrirmos para todas as maneiras de como as coisas realmente são e permitirmos que as nossas vidas sejam guiadas por essa sabedoria. Como isso me afeta? Como isso afeta outras pessoas? Qual é o caminho para a liberdade e liberação? Qual é a saída do sofrimento e da insatisfação para mim e para os outros? Sabedoria é ver as diferentes maneiras de como nos enredamos nas coisas e as diferentes maneiras de como podemos ser livres.

Virtude, meditação e sabedoria são as ferramentas que usamos para nos treinarmos em como nos relacionar com o mundo ao nosso redor. Este treino nos ajudará a ver as qualidades que trazem verdadeiro benefício para a nossa sociedade – as qualidades de bondade amorosa, compaixão, alegria empática e equanimidade. Esses são os Brahma viharas, ou moradas divinas. De certa forma, isso pode ser considerado um objetivo da ação social: a criação de uma maneira de como o ser humano deveria viver. A bondade amorosa é o desejo pela felicidade de outrem; compaixão é o desejo de aliviar o sofrimento de outra pessoa; a alegria empática é a felicidade que sentimos pelo sucesso do outro; e equanimidade é a capacidade de permanecer centrado em meio aos altos e baixos da vida.

A qualidade da alegria empática é interessante em termos de ação social. O seu oposto é o ciúme ou a inveja. De várias maneiras, a inveja é a base da competição e do conflito. Se uma sociedade é baseada na acumulação competitiva – como algumas sociedades que conhecemos – ela pode criar conflitos e uma falta de apreciação e disposição para desfrutarmos uns dos outros. Tendo vindo para os Estados Unidos depois de morar na Tailândia por 23 anos, o senso de competição aqui é muito impressionante. Na Tailândia, há uma ampla estratificação em termos de nível socioeconómico e oportunidades dentro da sociedade, mas não há muita inveja ou competição. As pessoas geralmente são motivadas a melhorar a sua situação económica, mas não se ressentem daqueles que já têm riqueza ou privilégios. Da mesma forma, geralmente não há desprezo ou afastamento daqueles em dificuldade económica ou de origem pobre. Há uma aceitação de que as pessoas acumularam tendências diferentes e possuem habilidades diferentes.

Essa aceitação impregnou a consciência das pessoas. É um senso de Karma desempenhando o papel na vida das pessoas ao longo de muitas existências, um sentimento de “quem sabe?” Esta vida pode mudar; em outras vidas, pode ser diferente. A aceitação do renascimento é uma parte de como eles percebem o mundo – é uma visão da vida de longo prazo. Isso tira o egoísmo e a competitividade e traz um senso de apreço um pelo outro como seres humanos, uma alegria pela felicidade um do outro. Ao nos voltarmos para essa qualidade da alegria, podemos aproveitar o nosso desejo de ajudar os outros, de servir.

A aceitação também traz a qualidade da equanimidade, uma clareza não reativa que permite permanecer centrado. Equanimidade não é indiferença. É a capacidade de retornar a um lugar de quietude, de não ser reativo e de pesar as coisas com cuidado. Esta é uma qualidade importante, especialmente quando se considera a ação social ou responsabilidade social. Sem equanimidade, podemos ser atraídos para a nossa própria reatividade – nossos pontos de vistas e opiniões. Podemos pensar que estamos sempre certos, que as outras pessoas são apenas um bando de idiotas. É fácil ficar confuso e desequilibrado. Não sendo arrastado para a teia das nossas visões e opiniões, mas sendo capazes de estabelecer e refletir – perguntar, qual é o caminho do equilíbrio? – a equanimidade é essencial para empreender a ação social.

Nos projetos de ação social em que estive envolvido, a perspetiva budista me ensinou algumas coisas importantes. Veja um projeto específico, como proteger as florestas. O mosteiro na Tailândia em que eu era abade era bastante conhecido, com uma grande comunidade de monges, noviços, leigos e leigas praticando e treinando lá. Achei que iria proporcionar um bom equilíbrio estabelecer um mosteiro filial mais remoto. O nosso novo local ficava ao longo do rio Mekong. Ficava numa das últimas florestas da província e, por volta dessa época, a área foi transformada num parque nacional. Mas essa era apenas uma designação no mapa e causou muitos problemas. A área estava cheia de cepos, estava sendo explorada e muitos aldeões fizeram os seus campos aí.

A perspetiva budista foi muito útil. Não poderíamos simplesmente dizer: “Essas pessoas são horríveis e desagradáveis. O planeta seria um ótimo lugar se elas não estivessem fazendo isso.” A realidade é que elas estão fazendo isso e são pessoas como nós. Elas estão tentando cuidar das suas famílias e tentando progredir no mundo. Para fazer qualquer coisa para proteger a floresta, tivemos que encontrar maneiras de incluí-las. Como você envolve as pessoas que estão derrubando a floresta? Como você inclui os comerciantes que os estão pagando? Como você inclui os funcionários públicos que estão aceitando o suborno para permitir o corte?

Os ensinamentos nos dizem que os problemas vêm das pessoas que não entendem como estão criando sofrimento para si mesmas e para os outros. Problemas e sofrimento vêm de desejos e apegos. Você não pode simplesmente querer que isso desapareça. Você tem que trabalhar nos problemas básicos de levar conhecimento e educação para as suas vidas. Porque elas estavam derrubando a floresta? Claro, elas queriam viver com conforto, para cuidar das suas famílias. Então, tivemos que encontrar maneiras de atendê-las. Caso contrário, seria como tentar construir um muro para impedir que a maré subisse. Boa sorte! Vai encontrar um jeito. Em vez disso, você tem que pensar com clareza e encontrar maneiras de atender às necessidades das pessoas, incluí-las. Isso leva tempo.

Essa compreensão reflete a nossa própria prática espiritual. Todos nós gostaríamos de nos sentar, cruzar as pernas, fechar os olhos e nos tornar iluminados – sem mais nem menos. Em vez disso, precisamos dedicar algum tempo para estabelecer uma base, para nos tornarmos pacientes e lúcidos o suficiente para desenvolvermos o caminho de uma forma abrangente. Assim como o Buda nos ensinou as Quatro Nobres Verdades como base para a nossa própria prática – o sofrimento, as causas do sofrimento, a cessação do sofrimento e o caminho que conduz à cessação do sofrimento – o mesmo se aplica à ação social. Temos sofrimento, temos um problema. Quais são as diferentes causas desse problema? Que tipo de desfecho pode haver para esse problema? Se não entendermos o problema, não seremos capazes de ver as causas. E se não estivermos realmente lúcidos sobre o objetivo para o qual estamos trabalhando, não saberemos realmente que tipo de caminho desenvolver. Funciona na sociedade da mesma forma que funciona na nossa própria prática. Quanto mais refletimos e praticamos essas verdades para nós mesmos, mais somos capazes de aplicá-las na nossa vida, em situações muito comuns, com os nossos amigos, com a nossa família, no trabalho, com diferentes problemas acontecendo na comunidade. Isso é ação social.

Como podemos trabalhar juntos para fazer isso? Com o nosso projeto ao longo do Mekong, começámos a atrair pessoas afiliadas ao mosteiro que estavam interessadas em ajudar. Numa sociedade budista, o mosteiro é uma base sobre a qual podemos construir um campo de ação social. Porque o mosteiro depende de leigos para se sustentar, existe uma ligação quotidiana com a sociedade limítrofe. É uma teia de apoio e interação, para que, quando houver um problema na comunidade, possamos reconhecer facilmente quem está interessado em ajudar. No início, havia alguns voluntários. Quando havia muito trabalho para os voluntários, contratávamos algumas pessoas. Mais uma vez, o dinheiro para os seus salários vinha das ofertas de pessoas da comunidade para o mosteiro.

O projeto florestal continuou a crescer. Até atraímos pessoas como a polícia. Elas tinham poder, especialmente quando se tratava de controlar quem estava tirando os cepos. Em vez de entrarmos num confronto com eles, perguntámos como poderíamos trabalhar com eles. Foi muito fácil na época porque um dos apoiadores do mosteiro era o Superintendente Adjunto da Polícia. Ele foi um grande recurso para atrair outros policias honestos, que trocaram algumas palavras com ainda mais polícias e os colocaram do nosso lado. Isso leva tempo, exige paciência e clareza. Se você trabalha de forma confrontadora, é difícil conseguir isso. Por ter um forte foco na prática pratica pessoal e integridade, ao tornar-se mais lúcida, centrada e de coração puro na intenção de fazer o bem, mais a pessoa começa a se conectar com as outras pessoas. Em termos de ação social, isso parece ser um íman, atraindo outras pessoas boas. Ganha o seu próprio impulso. Até agora, o projeto florestal está funcionando. E além de ser bem-sucedido por direito próprio, foi adotado como modelo para projetos experimentais em outros parques nacionais da Tailândia.

Durante uma das recentes eleições na Tailândia, vi uma placa escrita à mão na lateral de um edifício. Dizia algo como: “As forças da corrupção recebem mais poder quando as pessoas boas recuam”. O “sistema” ganha mais impulso quando decidimos que não queremos lidar com ele, que as coisas estão perdidas. Com o trabalho de ação social, temos que ser pacientes, criteriosos, equânimes. Temos que estar dispostos a tentar e falhar. Temos que reconhecer que às vezes as coisas funcionam e às vezes não. E que sempre funcionam de maneiras que talvez nunca tenhamos concebido. Isso é o mesmo que voltar ao fundamento da própria prática: observar os preceitos; desenvolver lucidez, tranquilidade e paz de espírito; estabelecer a sabedoria por meio da investigação reflexiva; cultivar as qualidades da bondade, compaixão, alegria empática e equanimidade. Isto constitui a base que nos permite avançar para o reino da ação social.

Veja também:

Deixe um comentário