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Três Marcas da Existência [Filme completo]

Sinopse: M., um jovem que gostaria de ter uma vida melhor, decide fazer uma peregrinação pela Índia (e Nepal), visitando os quatro principais locais sagrados do budismo: Lumbini, onde Buda nasceu; Sarnath, onde deu o primeiro ensinamento; Bodhgaya, onde Siddhartha Gautama atingiu o Despertar ou Iluminação e se tornou num Buda; e Kushinagar, onde faleceu e entrou em parinirvana. Na sua jornada, M. conhece pessoas que moldam a sua compreensão do budismo de várias maneiras inesperadas. Para atingir o que deseja, M. terá que fazer uma última jornada para enfrentar a origem da sua insatisfação.

Nota de Gunparwitt Phuwadolwisid, realizador (diretor) do filme:
“O que faz uma pessoa se tornar o que ela pensa ser? É a aparência, pensamentos ou sentimentos? A individualidade realmente existe ou é apenas uma consequência da atividade mental?

Cerca de sete anos atrás, depois de uma viagem de peregrinação pela Índia, percebi que, como budista, eu não sabia nada sobre isso.Tudo o que eu consegui foi uma crença e fé que não pareciam responder à minha pergunta: Como acabar com o sofrimento para sempre?

Depois de estudar mais sobre o budismo, comecei a entender que é uma teoria de como a mente funciona. Com esse conhecimento e muita prática, a vida pode ser mais fácil de gerir. Infelizmente, essa perspectiva parece ser menos importante numa sociedade tailandesa centrada no ritual.

Então eu decidi fazer o filme Três Marcas da Existência para entregar o coração do budismo ao público. Foi um desafio transformar os conceitos abstratos do budismo numa forma de narrativa em filme. Mas, ao mesmo tempo, foi divertido desconstruir o Eu para revelar o auto-agarramento e o apego.”

FILME COMPLETO
(com legendas em português)

Comentário de Tiago Ferreira:

Preciso avisar antes de tudo que, talvez, seja necessário um conhecimento mínimo sobre o budismo para compreender esse filme. Ou, pelo menos, assistir com quem tem algum conhecimento e possa explicar algumas coisas para quem não está familiarizado com a filosofia budista. É claro que uma pessoa muito atenta pode entender o clímax do filme (a parte em que o protagonista medita e passa por uma espécie de insight), mas nem todo mundo vai conseguir captar a poderosa mensagem sem o mínimo de conhecimento prévio. Vou tentar explicar:

[Spoilers a partir daqui — contém alguns detalhes sobre o enredo da história]

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Buda pregou que todas as coisas são impermanentes e que o sofrimento provém da ilusão de acreditar num Eu independente e imutável. Essas são as três marcas da existência (impermanência, sofrimento e o Não-Eu). Por acreditar na impermanência e na constante mudança, o budismo rejeita o maniqueísmo das religiões abrâmicas e de parte do hinduísmo, ou seja, ele rejeita a dicotomia Bem X Mal. Para Buda, depositar a fé numa guerra cósmica entre o Bem e o Mal é ilusão, pois tanto os Devas (deuses) quanto os demônios, fazem parte do mesmo jogo de ilusão, da mesma Samsara.

O Budismo é constantemente chamado de religião ateísta. Isso não é bem verdade, Buda nunca negou os deuses, ele fez algo ainda mais herético e revolucionário do que isso, ele negou que os deuses possam salvar as pessoas. Buda não é um deus, mas um guia espiritual. Ele afirma que descobriu um caminho para o Despertar, mas afirma também que cada um tem que seguir esse caminho por si só! Não adianta rezar ou orar para deuses (e isso inclui o Deus Cristão, ou o Alá muçulmano e o Braman hindu), pois eles não podem nos salvar. O máximo que seres divinos podem fazer é nos dar bênçãos (como curar uma doença), mas a salvação (ou Despertar, como Buda afirmava) é pessoal e exige disciplina mental e ética para consigo e para com todos os outros seres.

A cena em que o protagonista encontra o Deus Criador é uma crítica à ilusão das religiões monoteístas. No fundo ele descobre que a felicidade, o bem, o Deus Criador, fazem parte da ilusão do maniqueísmo Bem x Mal onde estava aprisionado. Ele enxerga a verdade ao ver que o Bem e o Mal (Deus e o Diabo) banqueteiam juntos, enquanto ele continua cego servindo aos dois. Portanto, a guerra cósmica entre um Deus Criador Todo Poderoso e um Diabo são ilusões que nos afastam do caminho de libertação. Para Buda, um Criador Salvador e um Diabo são invenções do Eu, do Ego. O Eu, sendo uma ilusão da imutabilidade, precisa criar a ideia de que há Um Bem Imutável e Um Mal Imutável para manter a própria ilusão de que ele existe. Por isso precisamos, segundo Buda, abandonar o Eu e suas ilusões e rejeitarmos o maniqueísmo essencialista que ele pressupõe.

Lembrem-se que o personagem está preso nesta dualidade o tempo todo. Ele está sempre decidindo entre o Bem e o Mal, entre o Sim e o Não, e acha que é livre por causa dessas escolhas, mas ele descobre que não é. Se só existem duas escolhas já dadas (Sim ou Não), então não há escolha de fato, mas uma prisão dicotômica. Para eliminar o sofrimento, portanto, temos que deixar de lado a ideia de um Eu autônomo e eterno e suas ilusões, que incluem o maniqueísmo ontológico e a fé na salvação dada por algum deus. Se, por um lado, Buda não nega a existência dos Devas (deuses), ele rejeitava a ideia de um Deus Criador Absoluto, como existe no Cristianismo e no Islamismo. Buda não dava muita importância a questões metafísicas.

O mais importante é o caminho ético que ele propunha e não questões de origem da universo. Mesmo assim, no Agañña Sutra, Buda dá sua versão para a origem do Universo, que se parece bastante com a ideia do Big Bang, onde há expansão e contração e o universo não tem começo ou fim.

A da luta do Bem x Mal é substituída, no budismo, pela oposição entre a sabedoria e a ignorância. A partir da meditação, ao final deste filme, que o protagonista começa a adquirir a sabedoria para eliminar a ignorância instalada em sua mente. Neste caso, ele não entendia que sua visão de Deus x Diabo (Bem x Mal) era ignorância, ilusão. Portanto, é o cultivo da sabedoria (através da prática da meditação e da ética) e não dá fé em divindades que nos tira da ignorância e nos faz progredir espiritualmente.

O filme, portanto, procura demonstrar como um jovem tailandês vai numa busca espiritual e como ele descobre as verdades do budismo através da experiência e da meditação e não através de algum deus ou do pagamento de promessas.

O protagonista tinha a vã esperança de que ao peregrinar, receberia bênçãos de volta que fariam sua vida melhorar. O monge do templo afirma que fazer méritos (como se chama o ato de fazer boas ações no budismo) é algo bom, mas que isso não é o tema central dos ensinamentos do Buda. A partir daí, o monge explica para ele sobre as três marcas da existência a que eu já me referi (impermanência, sofrimento e Não-Eu), e o protagonista passa a viver na pele o que significam esses conceitos. Ele entende a impermanência ao ouvir que a Yuiko vai morrer. Só ali ele entende que ela nunca foi “dele”, como ele pensava. Ninguém é de ninguém, no sentido de que ninguém possui outra pessoa. Mesmo as pessoas a quem amamos, nossos maridos, esposas, filhos e amigos não nos pertencem de fato. Amanhã eles vão embora ou morrem. Acreditar que eles são “nossos” é a ilusão do “Eu” e do “Meu”. E é isso que leva ao sofrimento. Temos que aceitar a impermanência da vida e quebrar o Ego e viver o Anatta, ou seja, o Não-Eu.

É isso que o protagonista faz no final através da meditação. Para os budistas, meditar é tão importante quanto orar para um cristão. O budista medita para entender as ilusões da mente e atingir sabedoria e, quiçá, o Despertar. O protagonista tem seu embate com a ilusão Deus x Diabo que o atormentava desde o início, desmascarando o “complô” do Bem e do Mal que sua própria mente criara para manter seu Ego funcionando. Ali, ao experienciar o sofrimento dos outros personagens ao “viver” suas vidas e perceber que não é só ele que sofre, mas todos, o rapaz compreende a sabedoria do Ensinamento das Três Marcas da Existência e começa a sedimentar o caminho para o Despertar.

Em suma, ele descobre que o importante é a busca de sabedoria espiritual e a prática advinda dela e abandona o maniqueísmo Deus x Diabo. Isso não quer dizer que o budismo não entenda que certas ações sejam boas e outras não, mas sim que Buda rejeita o maniqueísmo (tal qual existe em religiões como o cristianismo) como apego da mente. Ele propõe, portanto, outras maneiras de lidar com os conceitos de bem e mal.

Há outros aspectos e detalhes do filme que deixei passar, mas a mensagem ficou um pouco grande e não quero mais me alongar. Eu super indico para quem quer conhecer o budismo. O filme sintetiza muito bem alguns ensinamentos dessa antiga tradição indiana e tem um clímax belíssimo. Vale muito a pena!

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