Budismo Geral Trechos

Um barco para atravessar o rio e os 5 tipos de engano

«Reflexão sobre algo que muitas pessoas dizem hoje em dia: “Não preciso de buddhismo para ser Buddha!”. Ou, em outros termos: “Todas religiões aprisionam. Enquanto alguém segue ou preserva uma religião, não poderá se iluminar”. Ou, ainda, elas explicam da seguinte maneira: “É preciso lançar fora o apego às religiões, portanto, não há porque falar de buddhismo”.»


O trecho que se segue é parte do artigo: “O que fazer com este barco que chamamos de Buddhismo?” escrito por Henrique Pires para o blog Pico da Montanha. Veja o artigo original e completo: Parte 1 e 2: Aprendendo mais sobre o barco e As maneiras errôneas de lidar com o barco; Parte 3: As maneiras corretas de lidar com o barco.

Este é um artigo que escrevo graças ao incentivo do Ven. Gensho Sensei. Trata-se de uma reflexão sobre algo que muitas pessoas dizem hoje em dia: “Não preciso de buddhismo para ser Buddha!”. Ou, em outros termos: “Todas religiões aprisionam. Enquanto alguém segue ou preserva uma religião, não poderá se iluminar”. Ou, ainda, elas explicam da seguinte maneira: “É preciso lançar fora o apego às religiões, portanto, não há porque falar de buddhismo”. […]

Os Cinco tipos de engano

Aproveitando a parábola do barco para explicar nossa relação com o Buddhismo, podemos descrever alguns modos errôneos – muito comuns! – de lidar este veículo. Lembrem-se: nosso objetivo mais básico, segundo o Buddha, resume-se a partir dessa «margem do samsara» (i.e., do sofrimento baseado na cobiça, ira e ignorância) e avançar até atingir a «margem do nirvana» (i.e. a paz perfeita e definitiva).

1) Primeiro engano: nunca começar a viagem

Algumas pessoas até desejam “fazer essa nobre travessia” e em algum momento obtém um barco (um sistema ou método de prática buddhista). No entanto, pode ocorrer que elas se encantem demasiado com tal veículo, ficando ali abraçadas com ele, admirando-o, sem jamais sequer colocá-lo na água. Se isso acontece, o veículo perde sua função e ninguém sai do lugar. Esse é o primeiro tipo de engano, típico de quem se encanta com os símbolos, rituais, e com a beleza aparente da tradição, mas que nunca se dispõe a cultivar a si mesmo.

2) Segundo engano: querer fazer tudo sozinho

Aqui, alguém deseja atravessar, mas pensa: “Vejo que existem tolos que permanecem agarrados aos barcos (religiões/tradições) nesta margem, eles não estão completando a travessia. Não estão saindo do lugar! Logo, penso eu, o barco deve ser o problema!”, e assim pensando ele se lança no rio sem barco – nem método nem nada – e, não tendo como fazer frente à correnteza, acaba arrastado daqui pra lá. Mais cedo ou mais tarde, ele é lançado de volta ou se afoga. Não chega ao objetivo. Essa analogia se refere às pessoas que não se dispõem a aprender com ninguém; elas não estudam nenhum sistema profundamente, não querem se agarrar a nada, mas se lançam à travessia com ares de arrogância: sem professores, sem instruções, sem métodos, sem ferramentas… Desconhecendo a magnitude da jornada, dizem “EU ME BASTO!”. E tal seria o segundo tipo de engano mais comum.

3) Terceiro engano: esquecer as prioridades da viagem

Neste terceiro tipo se encontra alguém que compreendeu: “O barco não serve para ficar parado, devo utilizá-lo para entrar na correnteza”. Mas, essa pessoa, vai criando um vínculo de excessiva afinidade com seu veículo conforme avança. Ela logo se esquece do objetivo final de “descer na outra margem”, e fica encantada com sua capacidade de navegar. Perde tempo comparando a si mesma com os demais navegantes, tentando convencer a si e aos demais que o seu veículo é o mais eficiente. Assim, tal pessoa bem que poderia dar infinitas voltas com aquele barco ou, senão, simplesmente se negaria a descer dele. Talvez, ela até mesmo o carregasse nas costas ao atingir a outra margem – sem nunca se libertar. E este é o terceiro tipo de engano, comum aos que se aferram demasiado à sua escola, ao seu professor, ou aos métodos e ensinamentos que receberam, promovendo disputas desnecessárias, etc..

4) Quarto engano: confundir uma etapa com o ponto final

Este tipo é interessante. Aqui, uma pessoa poderia ter feito sua jornada até certo ponto, quando ela se depara com uma grande pedra ou banco de areia. Então ela pensa: “Eu cheguei! Eu já cheguei! Completei minha travessia e estou livre”, e assim pensando ela se desfaz do barco ou simplesmente para de utilizá-lo. Por comparação, isso é o que acontece quando fazemos pequenos progressos e já acreditamos ter alcançado a realização última: talvez sejamos capazes de meditar bem, talvez estejamos nos sentindo mais felizes e serenos, talvez tenhamos cultivado uma boa disciplina ética, talvez tenhamos estudado vários ensinamentos, talvez as condições externas estejam confortáveis, etc. Mas nenhum desses fatores básicos, deve-se dizer, corresponde ainda à liberação final (ao nirvana). Se nos acomodamos e deixamos de praticar, caímos então noutro dos enganos mais comuns.

5) Quinto engano: esquecer-se das outras pessoas

O último é um dos mais inusitados. Nesse exemplo, alguém reconhece a necessidade do barco, utiliza-o, abandona-o direitinho ao chegar na outra margem e, ato contínuo, o que faz? Destrói o barco. Ao destruí-lo, grita também aos companheiros: “Esse barco é uma prisão! Vamos! Destruam os barcos! Abandonem os barcos! Vocês não precisam de barcos! Eu me sinto muito melhor após libertar-me dele!”, e assim dizendo ele destrói o veículo ao invés de oferecê-lo a outro que talvez o necessitasse. E seus companheiros de travessia, cada qual em uma etapa, começam a quebrar barcos ou abandoná-los: os que estão na primeira margem os destroem com porretes e se lançam na água, os que estão iniciando a travessia saltam diretamente na correnteza, os que se acham sobre rochas e bancos de areia despedaçam o veículo, e aqueles que estavam quase chegando afundam perto da outra margem… E assim todos perecem. Este é o quinto, e mais assustador, tipo de engano. Ao longo da história, mesmo avançados praticantes buddhistas acabaram gerando situação similar: embora suas mentes estivessem apaziguadas, muitos deles, sem a devida compreensão, esqueceram-se de cuidar dos seus amigos iniciantes. Alguns desprezaram regras de disciplina ou práticas mais básicas e acabaram influenciando, sem perceber, iniciantes que inadvertidamente acataram os mesmos procedimentos. Isso seria o contrário do que Aryadeva, citado mais acima, descrevia como “tornar-se hábil no que é benfazejo (para si e para outros)”. Trata-se de um equívoco a ser evitado.

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