Sutras e Textos Canónicos Trechos Zen/Chan

Lankavatara Sutra, o sutra da descida ao Sri Lanka

Este sutra mahayanista, certamente tardio e nitidamente influenciado pela escola Yogachara (século IV) de Asanga e Vasubandhu, serviu de ponte entre a tradição indiana do dhyana trazido por Bodhidharma e o futuro tch'an chinês. Em que medida é que este texto poderia esclarecer os praticantes acerca da sua própria Revelação? É o que vamos examinar.

A análise que se segue é um Trecho do Capítulo II: Os seis patriarcas (séculos VI-VII), do livro Os Mestres Zen, de Jacques Brosse. Editora Pergaminho. Para ler o sutra completo clique aqui.

Após ter escolhido longamente entre os sutra aquele que poderia servir de referência aos adeptos do dhyana, Bodhidharma dirigiu-se a Houei-k’o, dizendo-lhe: “Tendo considerado a mentalidade dos praticantes da Via na China, penso que apenas este sutra lhes pode servir.” Foi portanto este texto que Houei-k’o estudou junto dele durante seis anos. Posteriormente, quando entre os seus discípulos, um deles tinha dificuldade em captar o seu pensamento sobre a Revelação, Bodhidharma dava-lhe uma cópia deste sutra e dizia-lhe: “Que seja o vosso ponto de partida para o futuro1.” Esta transmissão tinha uma tal importância que a nova escola foi durante muito tempo conhecida pelo nome de Lankavatara.

Este sutra mahayanista, certamente tardio e nitidamente influenciado pela escola Yogachara (século IV) de Asanga e Vasubandhu, serviu de ponte entre a tradição indiana do dhyana trazido por Bodhidharma e o futuro tch’an chinês. Em que medida é que este texto poderia esclarecer os praticantes acerca da sua própria Revelação? É o que vamos examinar.

O Lankavatara Sutra evoca a chegada do Buda ao Sri Lanka, que aí teria sido convidado a pregar o Dharma por Ravana, senhor de Yaksha, mas, no essencial, faz referência a um diálogo entre Shakyamuni e o Bodhisattva Mahamati que o interroga acerca da natureza da sua Revelação, o estado da sua “realização interior” (matyatma-gatiogocharam). A resposta do Buda constitui o ensinamento deste sutra cuju subtítulo é “a forma suprema de todas as palavras do Buda”. É de notar que, pelo menos na versão primitiva, este texto é desprovido de todas as manifestações milagrosas, mantra e outras fórmulas mágicas que frequentemente enchem este género de textos. Se, por um lado, deveriam seduzir os Indianos, por outro lado, só conseguiam afastar os eruditos chineses que, em contrapartida, estavam aptos para apreciar os desenvolvimentos filosóficos particularmente refinados deste sutra.

A descrição da sua “realização interior” pelo próprio Buda é de uma extrema subtileza, apenas compreensível, entenda-se, por Bodhisattvas. Não se trata, pois, de a expor aqui, a não ser sob uma forma muito simplificada, necessária aliás à compreensão do tch’an. O ponto de partida é a superação dos conceitos de ser e de não ser, a compreensão do facto de que qualquer coisa, qualquer ser é fundamentalmente vazio (shunya) e não tem por conseguinte qualquer carácter imutável. Toda a individualidade distinta é puramente ilusória, uma vez que todos os seres existem somente na relação com todos os outros, existindo entre eles dependência mútua. Da mesma forma, é apenas por uma falsa discriminação que se separa samsara e nirvana, um e outro, no fim das contas, mais não sendo que uma questão de ponto de vista.

Portanto, somente quando, na meditação se atingiu a vacuidade (shunyata) e se compreendeu o seu carácter universal é que se pode de uma só vez realizar a “verdade suprema e definitiva” (paramartha-sathya)2, que é o único ponto fixo, o absoluto, cuja descoberta é Bodhi, a Revelação. Numa palavra, como saliente D. T. Suzuki, “toda a filosofia do zen, tal como o expõe este sutra, torna-se transparente e com ela a tendência geral do pensamento mahayanista… Nenhuma interpretação [da Revelação] é possível pela via do conceito, e a realização deve sair das profundezas da consciência de cada um, independentemente do ensinamento das Escrituras ou da ajuda de quem quer que seja3.”

Para o estudante do zen, não pode ser indiferente a explicação, de certa forma psicológica, do processo da Revelação que faz intervir a consciência “do mais íntimo” (alayavijnana), que literalmente significa “consciência hereditária4, base do “Todo-Espírito” da escola Yohachara. Esta oitava consciência suprema é o suporte de todas as outras que dela emanam, correspondendo as cinco consciências aos cinco sentidos, mais a sexta (manovijnana) gerada por aquilo que os budistas consideram o sexto sentido, manas (a mente, a capacidade de reflexão, o funcionamento intelectual) considerada aqui como uma sétima consciência, que sintetiza os dados fornecidos pelas outras seis.

“A consciência mental juntamente com as cinco consciências [sensoriais] forja um mundo visível e constitui a cena do teatro… A consciência dança como uma bailarina, o pensamento (manas) age como um prestidigitador5.”

Se Buda, até então, apenas tinha aflorado ligeiramente a consciência do mais íntimo, ele dá uma explicação para isso: “A consciência apropriadora, profunda e subtil, como uma corrente impetuosa arrasta todos os germes6. Receando que eles pensem que ela é um eu (atman), não a revelei aos néscios7.”

Mas Mahamati, o Bodhisattva “Grande Ser” pergunta a Buda: “Concede-lhes [aos monges reunidos para o ouvir] os ensinamentos respeitantes ao Dharmakaya (o Corpo essencial dos Budas) que celebram os Tathagata (os Budas realizados), esse domínio da consciência do mais íntimo semelhante ao Oceano e às suas vagas.”

O bem-aventurado responde:

“Quatro elementos estão na origem do funcionamento das [seis] consciências sensoriais: o desconhecimento da natureza do mundo visível, não o considerando saído da nossa própria consciência, o vínculo à agitação provocada pelo desdobramento da mente e das impregnações da forma, impregnações acumuladas desde tempos imemoriais8, a convicção de que a natureza apropriada pertence originalmente à consciência [mental], a curiosidade ardente em relação à infinita diversidade dos seres.”

“Estes quatro elementos, Mahamati, fazem vir à superfície a consciência do mais íntimo — comparável ao curso de uma corrente –, os seus remoinhos são as consciências sensoriais. Tal como o oceano agitado pelo vento, esta consciência surge instantânea ou progressivamente em cada orgão sensorial, em cada átomo e inclusivamente nos poros da pele; a esfera dos sentidos surgindo como um espelho que reflecte as coisas. Do mesmo modo, Mahamati, os incessantes remoinhos do oceano da consciência são devidos ao vento da esfera sensorial; causa, acção e caracteres não podem estar dissociados uns dos outros… E porque não se compreende a natureza própria da forma e das outras contigências, o conjunto das cinco consciências funciona; e com elas a consciência mental (manovijnana) que delimita claramente esta esfera. O corpo que delas procede efectua [por seu lado] as suas operações. Mas consciência mental e consciências sensoriais ignoram que se condicionam mutuamente e que operam na razão do seu vínculo à diferenciação do visível — o qual, na realidade, é apenas consciência; assim se desdobram as consciências, intimamente unidas, limitando a sua esfera sensorial de consciência informadora. Quando as consciências operam desta maneira [inconsciente], os próprios iogues9 que se entregam ao êxtase10 não estão ao corrente do funcionamento das impregnações subtis e pensam que, pondo termo às consciências sensoriais, absorver-se-ão no êxtase. Mas mergulham nele sem terem posto termo a estas consciências, não estando destruídos os germes da impregnação11. Se estes iogues estão desvinculados, é apenas da esfera objectiva.”

“Assim o está, Mahamati, do modo de actividade subjectiva da consciência do mais íntimo, acessível apenas aos Tathagata e aos Budas bem enraizados; ela não pode ser facilmente compreendida, especialmente pelos iogues dedicados ao ioga dos ouvintes12, os buda-por-si13 e os filósofos, porque nem as próprias eficiências14 do samadhi nem as da Sapiência15 a podem definir. Apenas aqueles cuja Sapiência discerne os sinais distintivos das terras e são hábeis em conhecimento acumulam as raízes de bem no campo infinito dos Vitoriosos16 e abandonam o desdobramento mental diferenciado do mundo visível, que, na realidade, mais não é que a sua própria consciência… Só eles podem percepcionar o fluxo do mundo visível da diferenciação sob a forma de consciência e receber a unção dos Vitoriosos que residem no campo infinito de Buda, e obter soberania, eficiência, conhecimento sobrenatural e samadhi.”

“Ó Mahamati, rodeados de Vitoriosos e de amigos benevolentes, podem saber como consciências [sensoriais] e consciência mental diferenciam o domínio da natureza própria de um mundo visível — Consciência por natureza — e atravessar o oceano dos renascimentos que engendram o acto [karma], a sede [a cobiça] e a ignorância17.”

Do discurso de Buda resulta que a consciência do mais íntimo (alaya-vijnana) mais não é do que o próprio Dharmakaya, ou seja, o corpo essencial de Buda, a “natureza de Buda”, realidade última de todos os seres:

“A consciência originalmente luminosa, matriz do Tathagata, liberta do finito ao infinito”, porque é vazia, é por si mesma vacuidade (shunyata). Sendo este germe de Buda (tathagatagarbha), realidade última dos seres, que os torna aptos para a Revelação (Bodhi), o seu “domínio é imaculado por natureza e escapa aos raciocínios e às visões dos ouvintes (shravaka), dos budas-por-si (pratykabouddha) e dos filósofos, mas parece-lhes impuro e poluído pelas impurezas ocasionais. O mesmo não se passa com os Tathagata que se apoderam com toda a evidência deste domínio tal como o fruto amalaka colocado sobre a palma da mão18…”

Por outras palavras, esta consciência do mais íntimo que, do exterior, pelo raciocínio (manas), parece impura e pejada de múltiplas reminiscências e obstáculos provenientes de vias anteriores, revela-se finalmente através da meditação suprema, a dos Tathagata, como perfeitamente pura e perfeitamente vazia. A conclusão do Buda é que, só por si, este modo de meditação é capaz de penetrar a consciência do mais íntimo na sua verdadeira natureza e fazer chegar à entrega definitiva, à perfeita liberdade.

“É como quando se vê a própria imagem num espelho ou na água, é como quando se vê a própria sombra ao luar ou à claridade de uma lâmpada, é como quando se ouve a própria voz devolvida pelo eco num vale; quando um homem se prende às suas falsas conjecturas, faz uma discriminação errónea entre a verdade e a falsidade; devido a esta falsa descriminação, não consegue ir além do dualismo dos opostos; de facto, afeiçoa-se à falsidade e não pode atingir a tranquilidade. Por tranquilidade entenda-se unidade de objectivo; e por unidade de objectivo entenda-se a entrada na elevação excelente samadhi, pelo qual é produzido o estado de nobre compreensão de realização de si mesmo, que é o receptáculo do “estado de Tathagata(tathagatagarbha).”

O Lankavatara Sutra constitui portanto a exposição da Revelação, bem como o método para a alcançar. É esse o motivo por que Buda sublinha que se trata aqui da “verdade absoluta cuja revelação fará tremer o ser de coração pouco resoluto” e que aqueles que a tenham compreendido devem “abster-se de assustar os ignorantes com semelhante ensinamento”. Mas eles próprios devem compreender que a sua formulação é apenas relativa e que não é necessário fazer dela uma doutrina: “Se, contra a tese da produção por um encadeamento de causas e de condições [a Produção condicionada e interdependente (Pratityasamupada), o ensino primitivo que, neste estádio, deve ser superado], o Mahayana sustenta a não-produção, não faz dela uma tese. Esta afirmação só tem valor nos limites da existência. Do mesmo modo, quando afirmam a universal vacuidade ou a ausência de natureza própria, os Bodhisattva devem abster-se de fazer disso uma tese.” Pelo contrário, podem ensinar “que as coisas são como um sortilégio mágico, um sonho, uma vez que são de alguma forma recebida ou não recebidas, consoante o que delas se apreende na confusão ou no discernimento19.” Em suma, trata-se apenas de indicações provisórias destinadas a guiar o praticante, mas às quais não se deve ficar preso20.

“Ó Mahamati, é porque os sutra são pregados a todas as criaturas, consoante os respectivos modos de pensar destas criaturas e não atingem o objectivo do seu verdadeiro sentido; as palavras não podem recriar a verdade tal como ela é. É como uma miragem: acostumados a ela, os animais fazem um juízo erróneo da presença da água, lá onde na realidade não existe nenhuma; mas muito mais, todas as doutrinas expostas nos sutra são destinadas a satisfazer a imaginação das massas, não revelam a verdade que é o objecto da nobre compreensão. Por conseguinte, ó Mahamati, conformai-vos no sentido profundo e não vos deixeis cativar pelas palavras e pelas doutrinas21.”

Desta magistral exposição, decorrem directamente os “quatro princípios do tch’an“atribuídos ao fundador Bodhidharma, mesmo se a sua formulação clássica é posterior:

  1. Uma transmissão especial além das Escrituras,
  2. Não depender nem das palavras nem dos conceitos,
  3. Apontar directamente ao coração do homem,
  4. Contemplar a sua natureza própria e, assim, realizar o estado de Buda.

Os mestres do tch’an não ensinarão outra coisa. Eles não descobriram o método não didáctico, a abordagem apofática (negativa, contraditória), apenas souberam pô-los em prática. Não existe portanto, contrariamente ao que foi avançado, descontinuidade e deformação, mas apenas adaptação da tradição indiana ao meio chinês. Os historiadores do zen deixaram-se hipnotizar por uma atitude repetidas vezes afirmada: a transmissão especial “fora” das escrituras. A utilização constante e até insistente pelos mestres tch’an (neles incluído o suposto “iletrado” sexto patriarca) de citações extraídas dos sutra, e isto desde a origem da escola chinesa, parece estar em radical contradição com o preceito, mas apenas se for tomado à letra. De facto, não é apenas “fora” das escrituras que é necessário entender, mas “para além” delas, o que afirma o próprio Buda, no seu “ensinamento silencioso”, e, como acabámos de ver, no próprio sentido da escritura. Como poderia ser de outra maneira, uma vez que se trata do ensinamento relativo à verdade absoluta?

Esta crítica do ensinamento por si mesmo, esta relativização, esta distanciação estão igualmente assinaladas nos outros principais textos sagrados, nomeadamente os utilizados pela escola tch’an: Vajracchedika Sutra (o Diamante cortador) e o Mahatanashraddhotpada Shastra (a Revelação da Fé no Mahayana), compêndio das grandes ideias da doutrina mahayanista, atribuído a Ashvagosha (séculos I e II), que se apresenta, entre outros aspectos, como uma iniciação à prática do Dhyana. Ao que parece, insistiu-se muito numa descontinuidade aparente, enquanto houve tradição ininterrupta e coerente entre o dhyana indiano e o tch’an, entre os ensinamentos fundamentais do Mahayana tardio e os do mestre chinês.


Notas:
1 De acordo com a Narrativa sobre a transmissão do tesouro da Lei (Tch’uan fa pao ji), de 712.
2 Por oposição à verdade relativa e convencional, samvriri-satya.
3 D. T. Suzuki, Essais sur le bouddhisme zen, I, pp. 110-111.
4 Portanto colectiva, o que a aproxima da “consciência colectiva” de C. G. Jung, uma vez que esta “consciência” é normalmente inconsciente. Ver Zen et Occident, pp. 210-215.
5 Estâncias 1, 3, 4.
6 A consciência do mais íntimo contém, com efeito, todos os germes (bija), que provêm das existências anteriores, bem como da presente.
7 Samdhinirmocana Sutra, v. 7.
8 Os samskara.
9 Iogue é aqui tomado no sentido lato: “aquele que procura a união”.
10 O samadhi, ver nota 14.
11 Não é portanto uma verdadeira extinção (nirvana).
12 Shravaka, aqueles que apenas aspiram à Revelação pessoal através da audição da doutrina.
13 Pratyka-bouddha.
14 Concentração do espírito apaziguado.
15 Sapiência traduz o sânscrito Prajna, a Sabedoria intuitiva, a perfeita clarividência do Revelado.
16 Jina, os Budas consumados enquanto vencedores do mundo.
17 Le Bouddhisme, textos traduzidos e apresentados sob a direcção de Lilian Silburn, Paris, Fayard, 1977, pp. 234-236.
18 Id., p. 233.
19 Lankavatara Sutra, pp. 166-167.
20 O que ilustra a metáfora utilizada algures por Buda da jangada (a Doutrina), graças à qual foi possível atravessar a corrente (samsara) e chegar à outra margem (a do nirvana), mas que depois não deve teimar em transportá-la às costas.
21 Esta passagem não figura em todas as traduções chinesas do sutra.


Jacques Brosse é um naturista, historiador das religiões e filósofo francês. Foi ordenado monge budista na tradição Soto Zen em 1975 por Taisen Deshimaru. Mais informações na Wikipédia-fr.


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